Volume 2
Capítulo 27: Adaptação e evolução
O vento assobiava por entre as frestas. Ainda que o vapor das caldeiras inundasse os cômodos, isso não era o suficiente para amenizar o frio. A arena de treinamento, apesar de coberta, era a parte mais gelada da sede. Provavelmente, o enorme espaço livre era o que gerava essa sensação.
— O lugar já existia, mas precisou ser ampliado para acomodar o pessoal de fora — comentou um druida, aproximando-se do grupo enquanto observava o local.
— Fiquem à vontade — disse o guarda com indiferença, sem ao menos se mover.
A arena estava relativamente vazia. A maioria dos vigilantes fazia sua ronda, uma vez que tiveram uma grande baixa na última investida à barreira. Podia-se ver alguns grupos ali e acolá que, hora ou outra, soltavam alguns murmurinhos, sempre olhando em direção ao grupo, até que finalmente resolveram se aproximar.
— É verdade que vocês lutaram contra aquele demônio dos olhos púrpuras? — uma jovem e formosa druida indagava o grupo enquanto segurava, vibrantemente, a mão do elfo.
Eduardh, por sua vez, não conseguia deixar de notar as belas curvas da moça. Seus longos e trançados cabelos negros davam um lindo contraste à sua pele clara.
— Não creio que lutar seja o melhor termo — afirmou Eduardh, meio desconcertado — nós mal encostamos nele.
— Ele é muito modesto, mas foi graças a ele que estamos aqui — disse Lenna, apoiando sua pequena e delicada mão no ombro da moça que segurava a mão do elfo.
O tempo que ficaram longe dos grandes reinos e os eventos ocorridos na caverna pareciam ter suprimido as memórias do grupo em relação aos transmorfos. Mesmo com tantos percalços e batalhas que passaram recentemente, eles pareciam estar em harmonia. Mas a dura realidade estava ali, presente nos olhares ignorantes que cercavam Lenna, que entalhavam, novamente, as lembranças dolorosas e amargas à garota.
— O que pensa que está fazendo? — perguntou a jovem druida, arqueando uma das sobrancelhas.
— Tire a mão dela e volte para o buraco de onde saiu, aberração! — um dos rapazes que acompanhava a druida gritou enquanto segurava fortemente o braço de Lenna.
— Solte-a agora mesmo! — Eduardh estava enfurecido — Nunca mais se aproxime dela!
Um clima tenso se instaurou rapidamente. Os guardas locais já se prontificavam, levando suas mãos às armas. Um pequeno estalo ecoou dos ossos do braço do garoto druida, fazendo-o soltar um gemido de dor, enquanto ainda era encarado pelo elfo.
Um leve brilho na mão de Eduardh, onde a marca de Fazhar estava, se fez presente, mas logo desaparecera quando Varbbek interrompeu a cena.
— Eu não posso deixar vocês sozinhos por cinco minutos? — resmungou o líder druida, suspirando enquanto revirava os olhos.
O grupo se colocou à frente de Lenna, formando uma barreira entre a garota e os demais. Vladmyr já estava a postos para dar frente a uma discussão em resposta à pergunta do druida, mas foi precedido pela voz do mago.
— Pode não parecer, mas temos motivos para defendê-la. Explicar isso agora seria complicado, mas peço que confie em minhas palavras, senhor. — disse Cázhor, tentando amenizar os ânimos.
— Considerando toda a história, é difícil acreditar que tais palavras venham de você, mago — retrucou Varbbek. — Contudo, confio em seu julgamento, pelo menos por enquanto. Na verdade, não me importa muito a presença dela; só garanta que seu grupo fique na linha e não me traga mais dores de cabeça.
Apesar da constante informalidade do grupo com o druida, querendo ou não, Cázhor sabia que Varbbek era o líder de um grande reino e, mandados ou não pela sede geral de Ancor, deviam respeito e obediência, principalmente em suas terras.
— Minhas sinceras desculpas, Sr. Beothoro. — Finalizou Cázhor, assentindo com a cabeça.
— Tsc... — Indignado, Eduardh soltou imediatamente o braço do rapaz, que logo em seguida se afastou rapidamente do elfo, com um olhar de desespero.
— Calma, garoto. Se não, vamos piorar ainda mais as coisas — advertiu Ector, enquanto segurava firmemente Vladmyr, o impedindo de avançar para cima do druida, que já estava acuado. Apesar da ordem dada, o próprio Ector também tentava se conter.
As poucas pessoas que estavam na área de treinamento se afastavam, lançando olhares cheios de julgamentos e acusações. Lenna se sentia estranha com toda situação, afinal, não tinha o costume de ser defendida em público. Até mesmo seu mestre se pronunciara a seu favor, algo raro de se ver.
— Vamos! Deixe-me ver isso — disse uma senhora emburrada, olhando em direção ao grupo de Lenna enquanto cuidava do braço do jovem rapaz.
— Pelos deuses! — Varbbek parecia cansado de toda a situação. — Bom, vim colocá-los a par de nosso atual cenário. Como disse, estamos ilhados aqui, isso até descobrirmos uma forma de passar aquela maldita barreira. Ela estranhamente abrange uma gigantesca área. Me parece que eles têm vários pontos de apoio por todos os reinos, só assim explicaria tamanho alcance.
— Ao invés de desfazê-la, não daria apenas para destruir um desses pontos de apoio? Creio que isso quebraria o elo entre elas, nos dando uma brecha para passar — disse Lenna, pensativa.
— Diga isso aos homens que jamais voltaram das fronteiras. Odeio admitir, mas a maioria das ralés dessa laia é mais forte que muito de nossos soldados de elite. Isso é frustrante. E, com a escassez de recrutas, estamos de mãos atadas, apenas esperando para ser encurralados. — Era claro o tom de preocupação do druida enquanto encarava a face de seus homens cansados e abatidos.
— Vejo que seus homens estão fragilizados. A guerra não é para qualquer um. Precisam se organizar logo, caso contrário, não sobreviverão a um ataque surpresa — analisava Ector.
— Fomos para o tudo ou nada. Nossos melhores guerreiros e especialistas, ao menos os que sobraram, estão em campo: resgatando sobreviventes ou buscando alguma forma de contactar a Sede Mundial. Tudo foi muito rápido. Quando começamos a associar o que estava acontecendo e nos organizávamos para contra-atacar, nosso contato foi cortado. Nem mesmo magia atravessa. Nunca vimos nada tão poderoso em tamanha proporção.
Os druidas, em sua maioria novos recrutas, treinavam incansavelmente para terem alguma chance na batalha contra os demônios. Porém, sem a coordenação de seus superiores, não tinham uma liderança que os guiasse de forma eficaz e rápida. Varbbek sempre saía com seus guerreiros mais hábeis para explorar os arredores, garantindo que nenhum demônio se aproximasse demais, não lhe sobrava tempo para treinar os recrutas.
— Deixe comigo. Posso estar de muletas, mas até mesmo sem os dois braços eu conseguiria dar uma coça nesses franzinos — disse Ector, soltando sorriso levemente debochado.
O mago arqueou uma das sobrancelhas, em resposta à provocação do comandante, mas não disse nada.
— Não tenho objeções. Seus feitos pelo reino são conhecidos por todos os cantos. Nossos estilos de luta são... bem, um pouco diferentes, mas será uma honra tê-lo aqui — respondeu o líder druida, assentindo com a cabeça.
Nesse momento, todos os próximos ao grupo estranharam tamanha formalidade de Varbbek. Até mesmo com seu próprio povo, ele sempre deixava transparecer uma pontinha de arrogância na voz, hora ou outra. Vê-lo reconhecer outra pessoa de forma tão respeitosa trouxe espanto aos olhares arregalados.
— Espero que não tenham problemas com minha decisão — disse Varbbek. — Qualquer um que se oponha ou desacate minhas ordens sofrerá as consequências. Este homem estará na liderança de nosso exército a partir de agora. Deixarei que ele mesmo se apresente, pois tenho outros afazeres. Estamos entendidos?
— Sim, senhor! — Todos os druidas presentes bateram continência sem pestanejar, acatando a ordem de seu líder.
— Vamos, Sr. Wilheiman. Precisamos de toda a ajuda possível para desfazer essa maldita barreira. Então, conto com seu apoio — disse firmemente Varbbek, aguardando o consentimento do mago.
— Claro! Vamos.
Então, o mago, juntamente com o líder druida e seus guardas, seguiu para dentro da instalação, cerrando os densos portões de madeira maciça e áspera que separavam a área de treinamento do interior da sede.
— Bom, para aqueles que não me conhecem, sou líder e comandante das tropas gerais da Sede Mundial em Carmim, Ector Brugnar.
Estava claro para todos quem era o homem imponente que carregava um gigantesco machado nas costas. Nem mesmo as muletas diminuíam sua presença marcante. O título que carregava não era dado a qualquer um. Ver Ector pessoalmente dissipava o cansaço e o desânimo, renovando uma fagulha de esperança nos abatidos soldados druidas.
Ector, então, reuniu todos e os incentivou a se apresentarem, conhecendo as habilidades de cada um para dar início ao treinamento. Apesar do avançar da noite, o comandante sabia que não poderiam se dar ao luxo de perder mais tempo. Contudo, também não era tolo a ponto de esgotar ainda mais aquelas pobres almas. Propôs que começassem ao amanhecer, assim que o sol surgisse no horizonte.
Os druidas soltaram um suspiro de alívio. Uma pausa era bem-vinda.
— E vocês... — Ector se dirigiu aos três do seu grupo, que até então só observavam calados — já descansaram demais. Começam agora.
— O quê?! — o questionamento foi unânime.
— Parem de reclamar, seus fedelhos. Precisamos melhorar o trabalho em equipe de vocês. Separados, são bons guerreiros, mas juntos parecem que ficam imbecis. E eu não preciso de peso morto na minha equipe.
Apesar das duras palavras, eles sabiam que ele tinha razão. Não tinham nenhuma sincronia como grupo. Até mesmo o próprio Ector duvidava que fosse fácil alcançar, mesmo com mais tempo de treino. Ainda assim, o comandante estava determinado a estimular a confiança entre eles. Sem isso, seria impossível enfrentar um inimigo tão poderoso.
— Garoto, ataque corpo a corpo. Elfo, ataque mágico à distância. — Ector apontava o dedo para cada um enquanto falava. — E você, maga... bom, você é boa em proteção com seus escudos; já nos tirou de várias enrascadas. Entretanto, é só isso. Não digo que você é fraca. Pelo contrário, na luta contra o Cérbero, você demonstrou muito poder “até demais”. Mas não tem controle nem resistência. Meu objetivo será pegar os pontos fortes de cada um e aprimorá-los.
— Como assim, aprimorá-los? — Lenna indagou, cabisbaixa, após ouvir a avaliação do comandante.
— Simples. Vou colocá-los para lutarem entre si, para aprenderem uns com os outros, enquanto eu avalio. Só, por favor, não se matem. Se o fizerem, eu mato vocês primeiro.
— Vai ser bom mostrar um pouco de habilidade para esse idiota — disse Eduardh, com desdém.
— Tá se achando só por segurar o braço daquele druida magricela, né? — provocou Vladmyr. — E aquele teleporte? Era o mínimo que podia fazer. Você ainda vai aprender que batalha de verdade é no mano a mano, e não à espreita, como você gosta de ficar.
— E lá vamos nós de novo... — Lenna suspirou, impaciente ao ver a cena.
A rivalidade entre os dois era evidente; seria estranho se concordassem em algo. Mesmo assim, Ector parecia animado. Para ele, um pouco de distração naquele momento poderia ajudar a aliviar o estresse. Pelo menos, era o que ele acreditava.