Volume 2
Capítulo 26: Mudanças
O corredor parecia mais longo do que na última vez que ela havia visto. Lenna não sabia dizer se sempre foi assim ou se seu andar era mais lento. Mesmo indo direto ao quarto do jovem guerreiro, cada passo parecia uma eternidade.
“O que estou fazendo? Por que estou aqui? Não devo nada a ele...”, pensava ela enquanto batia insistentemente na porta, mas sem resposta.
Após alguns minutos, Lenna percebeu que não teria uma resposta, então sentou-se apoiando na porta se questionando se as coisas se resolveriam sozinhas.
“Uma hora ele terá que sair”.
Abraçando as próprias pernas, ela se aninhou e ficou ali esperando, no aguardo de uma chance de se explicar. Com o passar das horas nada aconteceu.
“Mas, com o que eu estou preocupada, ele se portou como um babaca comigo desde o início”.
— Droga! Estou cansada. Nem sei o porquê continuo aqui, acho que vou emb... — Ela acabou caindo no sono ali mesmo.
O corredor estava silencioso, aparentemente todos do grupo já tinham ido dormir. A enorme caldeira de água já havia sido desligada, somente a função de aquecimento ainda funcionava nesse horário para manter o interior do castelo habitável durante a noite.
No quarto, o vapor se espalhava. Após um banho quente, Vladmyr só queria descansar. Estava tão sonolento que acabou cochilando na banheira e nem ouviu que alguém o chamava. Enquanto caminhava para a cama, um barulho estranho vindo de fora chamou sua atenção, o fazendo finalmente sair. A cena o fez revirar os olhos em desaprovação ao que via. O barulho era Lenna, que esbarrou na porta quando caiu no sono.
O corredor estava bem mais frio que o quarto. Todas suas roupas ainda estavam molhadas pela neve, o que lhe restava era apenas uma enorme e aconchegante toalha que pegou no banheiro para se cobrir. Sem muito sucesso em acordar a pequena maga, ele a apanhou no colo. Lenna estava tão cansada que nem reparou quando ele a levou de volta a seu quarto.
“Mas o que...?”
Vladmyr ficou surpreso, as pequenas mãos da maga estavam tão geladas, que ele sentiu um grande arrepio na espinha, quando ela o abraçou fortemente. Provavelmente, o calor do corpo de Vladmyr a deixava confortável.
— O que deu em voc... — O guerreiro se interrompeu ao perceber que ela ainda dormia.
Ele não queria acordá-la, porém, ela não o soltava. Sua força o deixou surpreso.
— Por que você não usa toda essa força a seu favor? — ele sussurrava enquanto olhava para ela.
Seus pensamentos foram interrompidos quando ela, acidentalmente, segurou em sua toalha fortemente. Com a ação inesperada, ele acabou usando ambas as mãos para evitar que ela o despisse, soltando a maga rapidamente. Isso fez com que ele perdesse o equilíbrio, caindo junto dela.
Apesar de seu sono profundo, ela não parava quieta se contorcendo na cama. Foi quando se aconchegou no corpo dele, deixando-o sem reação. Sua respiração estava ofegante. Aquela situação o deixava excitado, afinal estavam em uma cama juntos, com ele seminu e com aquela garota linda.
— Ssghnn... Ssghnn... Que... cheirinho bom... — Ela murmurou quando aproximou seu rosto ao pescoço de Vladmyr.
A atitude da maga o fez engolir seco. Para sua surpresa, ela estava sonâmbula. Nesse momento, ele lutava contra os instintos de seu corpo. Em uma atitude desesperada, a embrulhou no grande cobertor que estava na cama, de forma que ela não pudesse se mover mais até acordar. Saiu rapidamente do quarto dela, indo deitar em seu próprio quarto. Seu coração parecia que sairia pela boca, estava mais vermelho que um pimentão. Seu corpo dizia para voltar, mas ele sabia que, nem de longe isso seria apropriado.
As horas se passaram e ele não conseguiu pregar os olhos. Todas às vezes que o sono ameaçava vir, ele se lembrava do que aconteceu no quarto, o fazendo acordar imediatamente. Quando finalmente conseguiu cochilar, uma batida em sua porta o fez despertar. Extremamente mal-humorado, ele levantou para ver o que era.
— O Sr. Beothoro pediu para... — um homem começou a falar repentinamente, até que se interrompeu ao ver o estado do guerreiro.
Um guarda da sede trazia consigo várias peças de roupas e acessórios embrulhados em uma espécie de manta empoeirada. Estavam organizados em um grande cesto. Era intimidador e, ao mesmo tempo, constrangedor ver como Vladmyr o encarava, como se o pobre guarda tivesse alguma culpa por ele não ter dormido bem.
— Bom... ele pediu para lhe entregar e também para você que distribuir aos demais do grupo. — O guarda bateu continência, entregou o cesto rapidamente e voltou a sua ronda.
Vladmyr esbravejava em sua mente imaginando o que o druida tinha contra ele. Apesar de que, pelo pouco que conversou com seu mestre enquanto caminhavam na neve, era provavelmente por sua vitória na última batalha. Mas ele admitia que, se fosse o contrário, ele também “pegaria no pé” se tivesse a oportunidade.
No cesto havia algo que lembrava uniformes, porém ele não os reconhecia de nenhum lugar. Uma capa longa e acinzentada de gola alta, com finos detalhes em dourado. Uma blusa de manga comprida no mesmo tom, com detalhes e abotoaduras também em dourado que se fechavam na lateral. Havia um símbolo, à esquerda, do reino de Ancor bordado na mesma cor dos detalhes. A calça não fugia do mesmo padrão, acompanhada de botas pretas e reforçadas de cano médio. Luvas brancas, alguns cintos e fivelas para carregar equipamentos, armas ou bolsas. Talvez o que mais se diferenciava era o feminino, que ao invés de calças, era um short com meiões grossos que, aparentemente, iam até o meio da coxa. Ele não entendia o motivo da diferença, mas era o que tinha no momento.
As vestimentas eram confortáveis e pareciam bem resistentes. Tanto Ector quanto Cázhor também não reconheciam o tal uniforme, porém, o emblema de Ancor lhes parecia autêntico de alguma forma. Se questionavam se era de algum tipo de aliança que se formou, e só agora que veio à tona. A cada hora, surgiam mais e mais perguntas sem respostas.
“O que aconteceu na nossa ausência?” Ector se questionava.
Estavam aguardando Lenna e Eduardh, sendo os últimos a receberem as novas roupas. Coincidentemente, ambos saíram ao mesmo tempo. O jovem guerreiro ficou deslumbrado com a cena quando seus olhos encontraram os dela.
— Linda! — O elfo disse, inconscientemente.
Eduardh, nem ao menos se deu conta de que disse isso em voz alta.
— Ahahah, você não perde tempo, não é mesmo elfo? — Ector ria enquanto tentava ajeitar, com certa dificuldade, seu machado nas presilhas.
Lenna não disse nada, mas também não escondeu que gostou de ouvir tais palavras, ficando levemente corada.
— Vamos! — disse um soldado, que aguardava pacientemente todos o seguirem.
Após uma reforçada refeição, todos aguardavam impacientemente a chegada de Varbbek. Ainda não entendiam o que estava acontecendo. Muitas coisas ainda não faziam sentido depois que saíram da caverna. A urgência em reportar o ocorrido parecia não importar tanto nesse momento.
— Mas que demora. — Vladmyr tremia a perna impacientemente.
— Petulante, como sempre — balbuciou Varbbek quando finalmente chegou.
Com um semblante sério, ele ainda olhava incrédulo para o grupo, enquanto os guiava até uma sala quase no centro da sede. Os olhares curiosos dos guardas demonstravam a ansiedade em saber o que estava acontecendo. Mas logo foram frustrados quando o líder druida fechou a grande porta dupla do salão.
— Diga logo, Sr. Beothoro. Esse clima anormal, a destruição na floresta, sem contar a estranha abordagem quando nos encontramos. Afinal, o Sr. Akhas não já havia esclarecido tudo há alguns dias? — Cázhor estava claramente impaciente com tanta demora e o atraso para reportar o que havia acontecido na caverna.
— Alguns dias atrás? Varbbek, ao ouvir o nome de seu avô, parecia triste, ao mesmo tempo que estava confuso com as declarações do grupo — Acho que não é o melhor momento para brincadeiras, Sr. Wilheiman, meu avô faleceu há quase um ano.
— Sr. Beothoro, eu jamais brincaria em uma situaç... espera... seu avô, o quê?
— Há três meses eu assumi a resistência, juntamente ao reino de Carmim, após a invasão em Mizuyr dos autoproclamados seguidores de Vastyr — Varbbek ignorou o questionamento do mago.
Olhando fixamente nos olhos de Cázhor, ele continuava a contar o que havia acontecido.
— Esses demônios acreditam que temos alguma informação sobre um tal receptáculo. Tudo isso, por causa daquela maldita caverna. Um homem, que se apresentou como Thorm, o púrpura, matou a maioria dos nossos e declarou guerra a todos os reinos. Desde então nós e a nova aliança estamos lutando bravamente lado a lado — Varbbek tentava ser o mais sucinto possível para atualizá-los.
Tudo indicava que esse homem, que se apresentou como Thorm, era o mesmo que havia atacado o grupo na caverna, mas as datas não batiam. Não fazia nenhum sentido o relato do druida, apesar de que, o que viram lá fora, também não.
— O reino está aguardando o retorno de vocês há quase dois anos, já nem acreditávamos mais que estivessem vivos. — Varbbek parecia cansado com toda a situação.
Essas palavras caíram como um banho de água fria. O grupo tentava achar a peça que não se encaixava nessa explicação.
— Mas nós não ficamos nem cinco dias fora. — Lenna dizia na expectativa de que alguém, a qualquer momento, dissesse que tudo não passou de uma brincadeira de mal gosto. Mas o druida não parecia estar brincando.
— Como assim? Esse demônio... nós o vimos recentemente na caverna. Tem certeza de que foi o mesmo que causou todo esse estrago? — Eduardh parecia tão confuso quanto os outros.
— Achamos que vocês estavam mortos — engolindo seco e com um olhar frio, ele continuou — Aqueles olhos... jamais esqueceria seu nome e a dor que ele causou a esse reino.
Mais questionamentos surgiam antes mesmo que pudessem obter alguma resposta. Da forma mais breve possível, Varbbek tentava atualizar o que aconteceu após ingressarem à caverna.
— A descoberta dos demônios humanoides, os seguidores de Vastyr liderados por Thorm, uma nova guerra... a combinação desses fatores, foi o ápice para erguer aliança dos três reinos: Ancor, Carmim e Mizuyr — estava claro que era um assunto delicado, principalmente para os druidas.
— Agora faz mais sentido as vestimentas dos guardas — disse Ector, enquanto observava os soldados.
— No primeiro ataque, fomos pegos de surpresa. Nunca imaginei ver um demônio humanoide frente a frente, quem dirá um exército deles. Mas, agora, isso já não importa mais. Foi um massacre, não fazíamos ideia da força desses seres infames. Isso só me lembra de como falhei com meu povo.
Varbbek contou que os sobreviventes, e os que não tinham condições de lutar, foram abrigados nas províncias da divisa do reino de Ancor e Carmim. Boa parte do reino dos druidas foi afetada no confronto. Estavam às cegas, ao menos até agora.
— Sei que qualquer informação será valiosa e que é de extrema importância que relatem tudo o que aconteceu na caverna ao Conselho Mundial. Mas, antes de tudo, que droga vocês estiveram fazendo durante todo esse tempo? Eu também estou tão confuso quanto vocês depois que nos encontramos. Onde vocês estavam? — A chuva de acontecimentos súbitos também atormentava a mente do druida.
— Você não ouviu? Estávamos na caverna. Também fomos atacados por esse maldito. Saímos por pouco. Por que parece não acreditar? — disse Vladmyr impaciente.
— Sim, ouvi! Das primeiras vinte vezes que falaram, depois só ignorei.
— Seu babaca!
— Calma, garoto! — disse Ector enquanto puxava o jovem guerreiro para longe do druida.
— Senhor, como ele pode brincar num momento como esse?
— Eu não estou brincando, esquentadinho. Eu realmente ignorei, pois não faz nenhum sentido o que disseram. A não ser que...
— Que o quê? — retrucou Vladmyr impaciente.
— Será que o tempo passou de forma diferente dentro e fora da caverna? Isso explicaria muita coisa, apesar de ser algo inacreditável — disse Cázhor, incrédulo com suas próprias palavras.
Desde que adentraram na caverna, o grupo sentiu que algo estava estranho além do que já haviam visto. A sensação de tempo e espaço divagava, porém, acabava passando desapercebida devido à importância da missão.
— Viagem no tempo? — disse o elfo, desacreditado.
— Talvez mais como duas dimensões, cada uma seguindo um fluxo específico. Nunca ouvi ou li nada parecido. Nenhum tipo de magia. Nem mesmo nos antigos manuscritos dos sábios de Manshur tem alguma citação. Se for real, é algo realmente incrível. — Cázhor estava deslumbrando com o leque de possibilidades que se abria.
— Seu avô... sinto muito por ele — Lenna parecia triste.
— Desculpe nossa insensibilidade. Sentimos muito por sua perda... — Disse Ector, respeitosamente.
Todos se lembraram de como ignoraram quando o druida mencionou a morte de seu avô. De repente, um clima pesado se instaurou na sala. O ar parecia se esvair lentamente, trazendo uma atmosfera seca e sufocante.
— Foi por causa daquele desgraç... — Ector quebrou o silêncio.
— Não! — interrompeu o druida — Ele faleceu meses antes de isso tudo acontecer. Agora, ele está nos braços de Gaia.
Estava claro que, apesar de toda a pose de alguém que não se importava tanto, Varbbek se sentia incomodado em falar do avô. Mesmo com todas as discussões e desacertos, os dois eram família e Akhas sempre esteve presente, mesmo antes, quando os pais do druida ainda eram vivos. O ancião havia ensinado tudo ao neto. Se tornar o líder de um reino, grande parte disso, foi graças a seu avô. Varbbek sempre ouvia que se tornou o espelho de um bom líder graças aos ensinamentos daquele velho e franzino homem.
— Bom... de qualquer forma, teremos tempo para falar sobre isso depois — Varbbek disse de supetão, evitando o assunto.
O jovem druida olhava para a situação do grupo, estavam aos cacos. Precisavam se recuperar se quisessem chegar vivos à sede.
— Os demônios criaram uma espécie de barreira mágica que nos impede de chegar à sede de Ancor. Ainda não descobrimos como passar. Todas as tentativas anteriores envolveram muitas perdas e sangue do meu povo. Eles chegaram como uma tempestade, arrastando tudo pelo caminho sem que pudéssemos ou tivéssemos tempo para revidar. Então, até acharmos uma forma segura de passar, sugiro que fiquem aqui — concluiu Varbbek.
Após uma longa e tensa conversa, o grupo explicou o que descobriram e vivenciaram na caverna. O druida também os pôs a par da atual situação após a súbita revelação dos demônios. Como, em pouco tempo, o caos se instaurou, alastrando a desordem como uma praga no campo.
— Vamos tirar o tempo para nos reestabelecer e treinar. Da última vez, cinco de nós não fomos páreo para um deles — disse Ector, enquanto cerrava os dentes entre uma palavra e outra.
— Isso de viagem no tempo, demônios, guerra e alianças... tudo aconteceu tão rápido. Não quero mais ter medo, quero proteger as pessoas importantes para mim. — Lenna disse com uma voz triste, mas com o semblante determinado.
— Ótimo! Já que todos concordam, vamos ao trabalho! — Ector já estava mais empolgado, mesmo com toda a situação em que se encontravam.
— Calma lá, velho. Você e o mago estão caindo aos pedaços, literalmente. Deixe os curandeiros fazerem seu trabalho e cicatrizar esses ferimentos. Não precisamos de mais mortos em campo — tagarelava o druida enquanto se afastava do grupo, indo em direção à saída.
— Ora, seu... — disse Vladmyr, mas foi interrompido por seu mentor.
VHAAAP!
O som do machado do guerreiro tiniu, causando o grande estrondo ao colidir com a barreira do druida, que se ergueu na mesma velocidade.
— Vejo que alguém andou treinando nesses dois anos em que estivemos fora, não é mesmo? — Ector disse de forma irônica e levemente irritado.
— Bom que meus reflexos continuam em dia. — Varbbek tentava esconder o espanto na voz, ao perceber o quão fundo o machado penetrou em sua barreira.
“Velho idiota. Queria realmente me matar?”
Os soldados locais se encarregaram de mostrar a nova sede e fornecer todo o suprimento necessário ao grupo durante sua estadia. Depois de todo alvoroço, tudo o que eles menos queriam era um conflito interno.
— Chega de brincadeiras, Sr. Brugnar. Não se esqueça de que, além de tudo, ainda temos que arrumar uma forma de remover esse selo do Sr. Hardro — disse o mago, soltando um longo suspiro.
Eduardh sabia que retirar sua maldição não era prioridade, afinal, era preciso ir à sede do reino de Manshur para tal, e era quase o oposto do objetivo atual. Agora precisavam focar na busca por mais informações sobre a marca que receberam, explorar esse novo poder e conhecer melhor o inimigo.
A conversa foi longa e com ela veio o entardecer. Devido ao clima pesado e denso, o dia parecia ser mais curto, e logo as mesmas caldeiras que a pouco se apagaram, ardiam em brasa novamente, trazendo um pouco de conforto do frio que também queimava.