Volume 2
Capítulo 24: Aflição
Uma extensa manta branca se fazia diante deles. O vento soprava intensamente, a vegetação não tinha mais as cores do outono, quase tudo era pálido e acinzentado. A neve se amontoava rapidamente ao redor do grupo. Só havia eles, nenhum animal, outras pessoas ou construções. Algumas longas árvores ainda resistiam com suas folhagens grossas e queimadas pelo gelo, resultando num tom de verde-escuro, que mesmo assim, pouco contrastava com o cenário.
— Garota... garota... Lenna! — Ector gritava contra o forte assobio do vento que abafava sua voz.
As imagens pulsavam em sua mente. A pequena maga estava desorientada. Não sabia o que fazer, estava colapsando.
— Espere! Pare de se mover tanto, precisamos estancar esse sangue — disse Vladmyr enquanto tentava, sem sucesso, imobilizar o mago.
— Me solte, Sr. Polan!
— Você vai morrer se continuar a sangrar assim...
— Mas que droga!
Antes que Vladmyr pudesse pensar em outra forma de convencer o mago, foi surpreendido por uma ação inusitada. Cázhor conjurou uma pequena, mas densa esfera de fogo, as chamas pareciam ter vontade própria. Dançavam intensamente enquanto eram esmagadas por uma força externa. O calor emanado era o suficiente para afastar o guerreiro, que sentiu sua pele arder.
— O que você está fazendo?
A resposta veio mais rápido do que ele imaginava. Cázhor pressionou a pequena esfera incandescente contra seu braço amputado. Ele mantinha a pressão enquanto urrava de dor, interrompendo apenas quando teve a confirmação de que o sangramento havia cessado.
— O senhor é louco?!
— Saia da frente, garoto! — Cázhor movia-se com dificuldade em direção à sua pupila.
O mago sentia uma dor excruciante, mesmo assim, tomou Lenna em seu braço, trazendo para si, gentilmente.
— Seja forte e mantenha o controle, você não está sozinha! — disse o mago gentilmente enquanto suportava a dor.
Mesmo que debilitado, o abraço forte trouxe a estabilidade novamente à pequena maga. A visão enevoada agora clareava aos poucos, revelando o cenário desastroso. O cheiro de carne queimada e o excesso de sangue nas vestes do mago causavam pequenos surtos de ansiedade em Lenna, tornando sua respiração irregular. A tristeza tomava conta de sua face.
— Eu não consegui fazer nada... Nada! Seu braço, o Ed... — Ela vacilava entre uma frase e outra — Não aguento mais!
— Shiu! — Cázhor sussurrava enquanto apoiava gentilmente sua testa na dela.
Lenna sabia que tinha de manter o controle, mas ainda não sabia como fazê-lo sem ajuda dele.
— Ed teleportou o grupo inteiro, mesmo com sua magia selada. E o que eu fiz? Nada! Não sei o porquê de você me escolher. — Lenna estava inconsolável.
— Ei? Quando você me viu errar numa escolha?
— Nunca...
— Então, confie mais nas minhas decisões e acredite mais em você.
— Não queria interromper — era clara a expressão de cansaço e dor de Ector — mas precisamos sair daqui. Estamos muito vulneráveis.
— Tem razão. — Assentiu o mago.
Apesar de saírem com vida, a missão foi um fracasso. Além de perderem o livro, era o inimigo que estava em sua posse. Cázhor olhava desesperançado em direção ao elfo, a julgar pelo seu estado, era fácil concluir que foi extremamente doloroso ter feito aquilo.
“Por que ele se sujeitou a isso? Há pouco tempo, nem sonhávamos em andar juntos. Por que se esforçar tanto?” Com os olhos marejados, Lenna observava o elfo, na expectativa de ver se ele ainda respirava.
— Vá até ele, eu ficarei bem — disse Cázhor, após o longo abraço.
Antes que ela pudesse tocá-lo, se surpreendeu ao ouvir uma voz fraca e irregular.
— Olha... vocês precisam parar de depender de mim... — rindo, ele continuou entre uma tosse e outra — Eu... não vou mais fazer isso... não até desfazer essa merda de selo... é uma nota para mim mesmo...
Lenna foi desesperada em direção ao elfo, estava consideravelmente perto e acabou se arrastando pela neve. Ela apoiou gentilmente a cabeça de Eduardh em seu colo, enquanto removia a neve que se acumulava rapidamente.
— Vamos dar um jeito! Aguente mais um pouquinho. Abra os olhos, converse comigo... Ed? — O silêncio como resposta a deixou aflita — Senhor, tem outra poção experimental igual àquela? Por favor?!
— Eu disse, era a única. Não se desespere, ele apenas, finalmente, desmaiou. Talvez isso nos dê mais tempo.
O mago levantou-se com grande dificuldade, a manta de neve dificultava sua locomoção, e apesar de ele não admitir, seu estado também era grave.
“Impressionante ele ainda estar vivo. Na verdade, ele está bem melhor do que deveria. Dada a situação, ele não deveria nem ter conseguido nos trazer até aqui”, questionava Cázhor, enquanto avaliava o estado do elfo.
Algo inusitado chamou a atenção do mago ao se aproximar do arqueiro. Olhando para o desenho em sua mão, percebeu que ele ainda emitia leves e quase imperceptíveis feixes de luz.
“A magia de Fazhar influenciou tanto assim nas habilidades dele?”
— Interessante... — disse Cázhor, levemente entusiasmado.
Por mais que Eduardh ainda não corresse risco de vida, era preocupante seu estado. Todo aquele sangue e o desmaio, provavelmente, foram resultados do grande esforço associado ao selo infligido por aquele homem. O mago deu sua última poção, já que a outra acabou se perdendo na corrida desenfreada pela caverna que desmoronava.
— Não chega nem aos pés da anterior, mas o manterá vivo por mais algumas horas.
— Dessa vez, não há necessidade de obrigá-lo a engolir, né? — Vladmyr, discretamente, questionava o mago.
— Creio que não.
Lenna escutava tudo em silêncio. Tentava esquecer o que havia feito na última vez, porém seu rosto vermelho deixava transparecer como ela se sentia. Além disso, outra preocupação era o estado atual do grupo e a escassez dos recursos. Estavam caminhando para outra situação complicada que só piorava a cada passo. Essa realidade deixava todos ainda mais tensos.
— Garoto, você vai ter que levar o elfo.
Vladmyr claramente não queria, mas sabia que tinha que fazer, estavam sem opções. Então, colocou Eduardh, desacordado, em suas costas para seguirem o caminho. Lenna fez um curativo paliativo na perna de Ector, que se apoiava em seu machado para conseguir andar, enquanto Cázhor hora ou outra, lhe servia de apoio.
Aparentemente, tudo indicava estarem nas províncias da floresta de Mizuyr. Mas toda essa neve era algo inusitado. Apesar de familiar, estava tudo tão diferente. Apenas restava seguir em frente e torcer para conseguirem abrigo.
— Nunca vi nevar nessa região — o guerreiro questionava sobre o clima.
— Esse frio não me parece algo natural. — Cázhor olhava, apreensivo, ao redor.
Lenna seguia junto a Vladmyr. Os dois andavam um pouco mais a diante. Apesar de estarem fisicamente melhores, toda aquela correria os deixou bem cansados. Não podiam parar, era questão de vida ou morte chegar quanto antes na cidade.
A caminhada seguia silenciosa, tentavam achar algo familiar, algum ponto de referência. A cada passo, o clima somente piorava. Fortes rajadas de ventos faziam a sensação térmica despencar. As poucas árvores que ainda possuíam folhagens, estavam encobertas pelo manto branco. O ar era pesado. Apesar de o ambiente estar relativamente claro, o céu nublado e as nuvens carregadas traziam um clima angustiante. Era inquietante, mal dava para ouvir os próprios passos, o vento zunia tão forte que dificultava até mesmo a respiração.
Após andarem por várias horas, finalmente conseguiram visualizar a silhueta de algumas construções. Estavam exaustos. Uma forte nevasca se iniciava, tornando cada vez mais insuportável ficar exposto ao tempo. As pontas dos dedos já estavam dormentes e escuras. Seus lábios estavam secos, duros e quase sem cor.
De longe, o lugar lembrava um pouco as ruínas que viram pouco antes da batalha com o golem. Ao mesmo tempo, tinha traços de onde o povo mais simples de Mizuyr morava. Uma sensação estranha trazia um ar mórbido ao cenário. Atentos, andavam em busca de algum lugar coberto.
Ao finalmente se aproximarem o suficiente, a visão que tiveram era estarrecedora. Não se parecia em nada com o que eles se recordavam. Chegaram ao ponto de se questionar se realmente era o mesmo lugar. As casas, cujas lembranças eram povoadas e cheias de vida, bem construídas e movimentadas, estavam abandonadas, algumas aos pedaços.
— Mas o que aconteceu aqui? — Cázhor estava espantado.
— Uma guerra! — disse Ector incrédulo.
Para um guerreiro treinado como Ector, era fácil identificar os sinais de combate. Os demais do grupo se olhavam tentando buscar uma resposta. Mas, como já esperado, todos estavam tão perdidos, que o silêncio era a única coisa que restou nesse momento.
— Ali! Tem uma que continua inteira! — disse Lenna aliviada, enquanto andava mais rápido em direção à casa.
— Senhorita Weins! Espere!
— Deixa ela, mago. Eu também correria até lá, mas... — Ector olhava para sua perna direita, envolta por uma bandagem encharcada.
— Vamos descansar um pouco. Já está escurecendo e o clima não está ajudando — Vladmyr ajeitava o elfo em cima de uma cama que ainda estava em condições de uso.
— Precisamos fechar essas janelas. Tem uma lareira ali, acho que dá para acender.
— Relaxa, deixa que cuido disso. Vai lá cuidar do elfo, ficaremos bem. — Vladmyr sabia que o estado dele era grave e não queria que ela se sentisse culpada por não fazer nada, caso algo pior acontecesse.
Sem muitos recursos, Lenna se virava da forma que podia. Enrolando tiras de sua capa e fazendo compressas para tentar estancar o sangue.
— Deixe-o descansar. A poção já deve estar fazendo efeito. Depende dele agora — disse Cázhor, enquanto se encostava na parede de tijolos e deixava seu corpo escorrer até sentar no chão.
Assim como as outras, a casa parecia abandonada há um tempo. O mato invadia alguns cômodos que ainda não haviam sido tomados pela neve. A estrutura parecia resistir a ruir. Grandes trincas contrastavam com manchas de fuligem. Talvez uma explosão tenha causado as avarias, mas a ação do tempo dificultava qualquer avaliação.
Os cristais ainda funcionavam, porém, a luz era bem fraca. Lenna tentava imitar seu mestre e alimentar a luz com sua magia, porém sem sucesso. Ela encarava incansavelmente a pequena pedra, tentando de novo e de novo.
— Deixe assim, é até melhor para não chamar mais atenção — Vladmyr segurava as pequenas mãos da maga, interrompendo a ação repetitiva — você precisa descansar, deixa que cuido do resto.
Talvez o cansaço tenha colaborado com sua falha, mas ainda assim, ela se sentia inútil.
— Ei... dê um tempo para você. Está pegando muito pesado consigo mesma.
Vladmyr juntava o que ainda era aproveitável para acender a lareira, ao mesmo tempo, conferia se os demais acessos à casa estavam devidamente bloqueados.
— Senhor? — Lenna se aproximava devagar até seu mestre, preocupada por não ter nenhuma resposta.
— Venha aqui. Deixe-os descansar, ele está apenas dormindo, coisa que você deveria fazer também. — A pequena maga se surpreendeu com a gentileza de Vladmyr.
Ele a trouxe para perto da pequena lareira que havia acabado de acender, sentou e deu um leve tapinha no chão ao lado dele, indicando para que ela se sentasse. Lenna estava muito cansada, acabou se sentando sem fazer nenhuma objeção. Estava com o corpo gelado, suas mãos e pernas tremiam tanto que, qualquer criatura a metros de distância, conseguiria perceber.
— Gostaria de ajudar mais do que simplesmente fazer escudos e me esconder. Ser uma maga de combate — disse Lenna baixinho, olhando para seu mestre.
— Seus escudos, salvaram minha vida. Sou grato por isso.
— É... mas, muitas vezes, eu fiquei só observando vocês lutarem, sem conseguir fazer mais nada.
— Você não tem experiência em combate, não é mesmo?
— Não.
— Bom... posso te ajudar.
— Sério?! — A expressão de Lenna mudou rapidamente, seus olhos brilhavam de uma forma contagiante.
— Sim. Não acho que você se daria muito bem com espadas, mas posso te mostrar como deixar seu corpo mais resistente e contra-atacar de maneira efetiva. Você só terá que convencer seu mestre primeiro, não creio que ele permitirá que você fique na linha de frente.
— Você podia conversar com ele, Cázhor nunca me escuta...
— O quê? Você está louca? Se ele não te escuta, por que acha que...
Vladmyr se interrompeu quando percebeu um leve toque em seu ombro. Lenna havia adormecido, apoiando sua cabeça no jovem guerreiro. Apesar de confusa, a cena arrancou um grande sorriso do garoto, que preferiu ficar em silêncio e apenas curtir o momento.