Volume 1
Capítulo 9: Sentimentos
Já mais afastado daquela instalação, Lenna reparou que ao sair precocemente da sala, esqueceu de perguntar onde podia se banhar. Estava com seus pertences em mãos, mas não havia uma alma viva por perto.
O local onde ela estava era mais afastado das demais construções do que imaginava. Lembrando das palavras que o druida lhe falou mais cedo, preferiu ir a um lago que havia visto perto dali, quando se dirigiam à sala de espera. Já estava acostumada com a natureza, ficar ao ar livre era algo normal para ela.
Ali era um bom lugar, aconchegante e vazio. Estava sozinha, mas era melhor do que ficar perambulando por aí. Tinha de ser o mais breve possível, além de estar muito cansada, não sabia onde seriam os dormitórios.
“Tenho certeza que Cázhor não vai me esperar”.
Chegando naquele pequeno lago, para sua sorte, a água estava consideravelmente quente. Provavelmente alguma fonte termal o alimentava. Estava escuro. A pouca luz do luar que passava entre as folhagens das grandes árvores davam um tom de tranquilidade ao local e garantiam uma boa visibilidade em meio às sombras.
Enquanto isso, o clima continuava pesado entre o grupo. Mesmo após a grande revelação feita, todos tinham a sensação que havia, ainda, alguns pontos a serem esclarecidos. Vladmyr estava totalmente desconfortável com a situação, nem tanto por ser injusto nas acusações contra Lenna, mas sim por ser enganado pelo reino que tanto defendia.
No meio disso tudo, finalmente o druida voltou para levá-los aos seus aposentos. Cázhor percebendo que Lenna não retornaria a tempo, perguntou a Eduardh se após estabelecerem-se nos quartos, poderia encontrá-la e guiá-la até eles. Assentindo, Eduardh concordou sem hesitação. Um grande silêncio, novamente, tomou aquele lugar.
Enquanto seguiam Varbbek, só se ouviam os passos do grupo pelos corredores. O druida percebeu que claramente havia algo de estranho, mas naquele momento, não se importava muito em saber o porquê. Estava fadigado e só pensava em repousar para se recuperar quanto antes.
Quando chegaram ao tal lugar, perceberam ser mais aconchegante do que o druida lhes falou. Apesar de bem simples, as pessoas que limparam e organizaram aquele local se atentaram a detalhes. Separaram uma parte do alojamento dos demais, com uma grande membrana escura feita de linho. Provavelmente no intuito de dar mais privacidade à mulher do grupo.
Eles não tinham muitas coisas para guardar, somente as bagagens e bolsas que levaram consigo para viagem. A maioria dos itens se perderam durante a fuga dos cavalos. Após rapidamente se acomodarem, Eduardh foi atrás de Lenna, havia se passado algum tempo desde sua saída, talvez ela já tivesse terminado ou estaria voltando para tentar se encontrar com o grupo.
Ao adentrar-se na floresta um pouco mais atrás do local onde estavam, seguiu em direção a uma pequena trilha à esquerda do caminho principal. Estava bem escuro, mas isso não implicava em quase nada, a visão dos elfos sempre foram bem superior às demais raças. Mesmo sendo mestiço, ainda assim, suas habilidades em rastreio facilitaram muito ao identificar o caminho que Lenna utilizou. Considerando que ela não estava tentando se esconder, isso só tornou tudo mais simples.
Por natureza, Eduardh era muito furtivo em seu caminhar, fazendo com que Lenna nem percebesse sua presença quando finalmente a encontrou. A pouca luz que transpassa pelas folhagens, juntamente com a leve fumaça do vapor que saia da água, deixavam o ambiente um pouco embaçado. Mas o suficiente para Eduardh visualizar perfeitamente Lenna.
Ela parecia se divertir, conversando sozinha, enquanto utilizava uma esponja pequena que deslizava pelo corpo. Despejava uma loção que gerava uma leve espuma, mas parecia algo natural. Eduardh reparou que ela, na verdade, estava imitando Vladmyr de forma boba e irônica, como se fosse uma criança birrenta que caçoasse um adulto que lhe irritou. Tal cena arrancou uma risada de Eduardh que precisou se conter logo em seguida, com medo de ser descoberto.
No intuito de não a interromper, por um momento ficou admirando a sua figura por trás das folhagens. Assistir aquela cena o deixava de certa forma admirado. Porém, essa sensação logo se desvencilhou ao perceber que Lenna olhava para seu punho esquerdo com uma feição estranha. Ele não entendia bem o porquê, talvez fosse uma ferida causada pelo golem. Não parecia que ela estava sentindo dor e sim chateada com a situação que provavelmente tinha gerado sua dor.
O olhar de Lenna, trazia lembranças que o elfo queria esquecer: a hesitação de Vladmyr em tentar ajudá-la. Sem entender o motivo, aquela lembrança trouxe um surto de raiva repentino, que o fez desferir um golpe em uma árvore próxima de onde estava. Tal pressão fez com que ela chacoalhasse e muitas folhas caíssem.
Apesar de estar em meio a uma floresta, tudo naquele momento estava muito silencioso e o barulho causado por ele, fez com que Lenna voltasse sua atenção em direção a ele, que instantaneamente, afastou-se ficando atrás dos arbustos para não ser percebido.
Lenna, preocupada de que poderia ser algum animal perigoso, resolveu cessar o seu banho antes da hora, saindo da água e indo em direção à borda na qual estavam dobradas suas roupas junto a seus apetrechos. Nesse momento, ela expôs totalmente o seu corpo nu, um feixe de luz a iluminava, descendo em diagonal e a atingindo da cabeça aos pés. Foi só nesse momento que Eduardh se deu conta do que estava de fato fazendo, espionando uma mulher durante seu banho.
Uma mistura de sentimentos tomou conta de Eduardh. Ver aquela cena fez sua face corar de tal forma que ele não tinha mais nenhuma reação. Seu rosto queimava de vergonha e seu coração palpitava, mal conseguia raciocinar direito. Sabia que sua atitude era idiota, mas o encanto daquelas curvas iluminadas, a pele delicada e sua pureza não permitiam que seus olhos mudassem de direção.
Por fim, quando Lenna finalmente se vestiu e seguiu em direção a Eduardh, instintivamente ele se recolheu, virando-se de costas e escorando em uma árvore mais adiante. Aguardava Lenna chegar até ele, torcendo para que ela não tivesse reparado na grande idiotice que ele acabou de fazer.
— Nossa! Que susto! — Lenna ficou surpresa ao encontrar Eduardh pelo caminho.
— Desculpe! Não era minha intenção. — Ele mal conseguia encará-la. Estava tão envergonhado de sua atitude que não sabia como reagir se olhasse diretamente.
— Aconteceu alguma coisa? — Ela o encarava sem entender muito bem o que havia acontecido, o motivo pelo qual ele a evitava, sendo que momentos antes, ele mesmo estava ali, se apresentando de joelhos.
Ao se aproximar, uma leve e agradável fragrância exalava de seu corpo. Para ela, algo natural, estava acostumada, já para ele, era quase afrodisíaco, considerando toda a situação.
— Só vim te buscar — disse ele, sem jeito — o Sr. Wilheiman achou melhor garantir que você não se perdesse.
O caminho era um pouco longo, Lenna quis aproveitar para tentar conversar um e conhecer o novo integrante do grupo, afinal, depois de todo aquele tumulto, não houve uma oportunidade de conversarem adequadamente.
— Cázhor me contou... Obrigada por me salvar.
— Tudo bem.
— Estava me esperando há muito tempo?
— Não... não! Acabei de chegar — respondeu rapidamente. Eduardh evitava conversar naquele momento, estava com receio de falar demais e acabar se entregando, sendo tachado como um suposto pervertido. Lenna acabou desistindo, ao seu entender, ele não queria muito papo, então preferiu deixar da forma como estava. Seguiram caminho em um silêncio constrangedor.
Nos aposentos, Cázhor e Ector já se preparavam para dormir. Vladmyr estava inquieto, aparentemente ainda estava irritado com toda situação que aconteceu e tudo que acabou de ouvir.
— Você está atrapalhando meu sono, moleque! — Ector já estava aborrecido com aquela movimentação — Deite-se logo! Uma boa noite de descanso, para absorver melhor toda a situação e assimilar tudo que ocorreu, ajudará mais do que ficar acordado durante toda a noite.
Até mesmo Ector estava tentando compreender tudo, mas ficar irritado daquela forma não adiantaria muita coisa. Afinal, toda aquela história fez parte do passado e nada que poderia mudar o que já aconteceu.
Vladmyr sabia que ao menos devia um pedido de desculpas por suas atitudes, mas ainda não sabia como fazê-lo. Muita coisa que acreditava mudou de repente, mas esse sentimento, ele sabia que não mudaria tão facilmente.
Na tentativa de espairecer a mente, resolveu sair e sentar-se do lado de fora da cabana, em uma parte um pouco mais acima, num pequeno banco de madeira. Não conseguia dormir, então achou melhor pegar um pouco de ar fresco para se acalmar e organizar seus pensamentos. Após um longo período, percebendo que não adiantaria muito ficar por ali, resolveu levantar-se e voltar à cabana para tentar finalmente dormir.
“Sei que a culpa não foi dela... esse mago podia ter falado isso antes.”
Quando estava quase chegando ao dormitório, Vladmyr deu de frente com Eduardh. Algo tão repentino que, por estar distraído, Eduardh parou bruscamente, fazendo Lenna, que vinha logo atrás, trombar em suas costas. Um momento constrangedor se instaurou, a situação fez com que ambos não comentassem nada, porém essa cena só fez com que a situação ficasse mais estranha entre eles.
Finalmente esse dia havia acabado. Após uma breve noite de sono, todos estavam ansiosos e por isso acordaram bem cedo. Varbbek, aparentemente, estava sem condições de guiá-los até a caverna, no fim das contas não havia dado notícias desde então. O grupo julgou, que precisaram ficar por ali um pouco mais. Um bom descansar e se organizar melhor para o próximo trajeto era a melhor decisão, afinal era impossível prever o que encontrariam pela frente.
— Aquele druida arrogante, nem ao menos deu as caras para nos avisar que não viria! — disse Vladmyr bem frustrado.
— Provavelmente ele está tão feliz quanto a gente em ser nossa companhia — concluiu Ector.
Inesperadamente, um homem trajando vestes leves, porém bem refinadas, veio ao encontro do grupo para direcioná-los ao saguão principal.
— Que bom que estão todos juntos, isso facilita o processo — disse o homem — Sr. Akhas, me pediu para auxiliar no que fosse necessário. Ele viria pessoalmente, mas precisa resolver assuntos pendentes da vila, enquanto seu neto ainda se recupera.
Após todos se organizarem e depois de um rápido banho, foram direcionados a um grande refeitório na sede, onde normalmente os guardas e as pessoas de maior escalão costumam se reunir.
Assim como os demais cômodos da sede, tudo era bem organizado, com móveis bem esculpidos, tudo alinhado da forma mais elegante possível. Não era para menos, aquele lugar representava um ponto de referência e autoridade daquela região. Um dos locais mais nobres daquela parte do reino, que apesar de bem escondido, era referência em todo reino de Mizuyr.
Todos se dirigiram às grandes mesas de mármore envernizadas para se servirem de um abundante café da manhã. A situação ainda estava estranha entre Eduardh, Lenna e Vladmyr. Ector fisicamente se encontrava em melhor estado, além de seu grande vigor, sua recuperação natural era bem mais acelerada que a maioria dos humanos. Apesar de ter sofrido bastante dano na luta contra o golem e logo em seguida no combate contra Varbbek, aparentava estar pronto para uma nova batalha a qualquer momento.
Cázhor não teve ferimentos, mas se desgastou muito com uso contínuo de poder mágico e a conjuração de suas grandes magias, o descanso foi o suficiente para recuperar parte de suas energias e conseguir dar suporte ao grupo. Ainda assim mantinha a mesma postura de sempre.
Dessa vez, todos se sentaram na mesma mesa. Os habitantes daquele local claramente estavam desconfortáveis em permanecer no mesmo lugar que o grupo, então, acabaram os isolando, evitando sentar-se próximos. Ainda desconfiavam dos forasteiros. O homem encaminhado por Akhas estava aguardando que o grupo terminasse sua refeição, para levá-los ao local onde poderiam se organizar, pegar mantimentos e colher informações necessárias para continuar a viagem.
Para evitar atrasos, agilizaram o final do banquete, afinal, era incômodo aquele homem parado ali, os aguardando. O rapaz os levou a um local próximo ao salão principal, parecido com uma grande varanda coberta. Uma abertura na frente fazia a pouca luz bater no chão iluminando todo o local com a ajuda dos cristais.
Ector se prontificou a verificar na região, suprimentos que pudessem ser levados na próxima viagem, apesar do banquete, sabia que não poderiam contar com a sorte. Preferiu então, fazer um reconhecimento na região para verificar o que poderia ser utilizado a seu favor.
— Só um momento, senhor, já estou quase pronto. — Vladmyr já estava se preparando para acompanhá-lo.
— Fique aí rapaz! A garota vem comigo. — Ector surpreendeu a todos quando solicitou a presença de Lenna.
Vladmyr, sem entender bem a situação, acatou a sua decisão a contragosto. Lenna também não compreendeu muito bem, afinal não tinham nenhuma intimidade. Ainda mais depois de toda confusão que aconteceu. Porém, com o consentimento de seu mentor, mesmo um pouco receosa, decidiu acompanhá-lo.
— Fique tranquila! — disse Ector ao perceber a grande tensão entre eles — só queria entender um pouco melhor e conhecer todos do grupo. Afinal estamos todos com o mesmo objetivo e continuar com qualquer desavença não ajuda em nada.
— Humm...
Pelo caminho, se depararam com uma pequena clareira, um dos poucos locais daquela região onde se podia ver a luz tão fortemente. O sol estava em seu ápice. Logo mais adiante, um pequeno riacho que seguia em direção ao norte contornava todo esse espaço em aberto. Era bem próximo ao local onde Lenna banhou-se na noite anterior.
No meio do caminho Ector sentou-se em um banco próximo a uma grande construção, aparentava ser uma torre de vigia desativada.
— Vem! Sente-se aqui. — Convidou-a a fazer o mesmo.
Ela ainda achava tudo aquilo muito estranho, realmente não estava entendendo qual era a real intenção dele. Aquele clima acabou sendo quebrado com uma longa gargalhada de Ector, que também chamou a atenção de alguns moradores que passavam por ali, ela sem entender nada ficou bem constrangida com toda aquela situação.
— Enfim, queria dizer que sinto muito sobre o que aconteceu. — Então, explicou finalmente a ela o motivo pelo qual solicitou sua presença — Admito que minha atitude não foi das melhores e, por mais que não ache correto, peço desculpas também em nome de seu subordinado.
— Não se preocupe. Eu até entendo o lado dele, sabe? Provavelmente ele deve ter passado por coisas muito piores devido à guerra...
— Assim como eu — interrompeu Ector, com um olhar um pouco decepcionado — Vlad tem a missão de defender o certo e proteger as pessoas que estão ao seu lado, independentemente de qual parte da história ele saiba ou goste.
Lenna tentava disfarçar seus olhos marejados, lembrar do que passou em tão pouco tempo era algo doloroso para ela.
— Eu já não me sentia bem com toda essa situação e depois do que ouvi de Cázhor, me senti na obrigação de pessoalmente lhe pedir desculpas.
— Ah... então ele acabou contando para vocês?
— Sim!
Apoiando seus braços para trás, inclinou seu corpo levemente na mesma direção, olhava com dificuldade em direção ao céu devido à forte luz.
— Então... dê mais um tempo para o Vlad. — Ector soltou um longo suspiro. — De fato, ele passou por muita coisa desde novo e está aprendendo ainda a entender que o mundo não gira em torno do próprio umbigo.
— Tá bom!
— Não quero que as coisas fiquem do jeito que estão. Precisamos confiar uns nos outros. Se, nesse momento, Vlad tem dificuldade de fazê-lo, suplico que faça pelos dois, só por enquanto. Ele é um bom rapaz, você só precisa de tempo para conhecê-lo melhor e também verá com seus próprios olhos.
Ector não era de conversar muito com pessoas fora do círculo militar, por isso se atrapalhava um pouco ao tentar algum tipo de relacionamento, principalmente com alguém na situação de Lenna. Talvez por esse motivo, a conversa foi breve e bem objetiva, no final das contas. Ele deixou claro que agora entendia a situação dela, o que a deixou surpresa ao ouvir aquelas palavras.
Lenna tentava entender o que poderia ter incentivado Cázhor a expor essa história que tanto a pedia para manter em segredo. Para ela, sua situação com Vladmyr não justificaria, mas estava feliz em saber que as coisas poderiam melhorar dali em diante. Aparentemente, com as coisas resolvidas, Ector não achava necessário estender mais a conversa e, conhecendo seu pupilo, se demorasse um pouco mais, Vladmyr provavelmente viria atrás dele para saber se realmente estava tudo bem.
Enquanto isso, os demais do grupo se organizavam para continuar a viagem. Era claro a falta de entrosamento entre Vladmyr e Eduardh, mas ambos sabiam que isso não poderia de forma alguma atrapalhar na missão. Quando Ector e Lenna retornaram do breve passeio, era perceptível a curiosidade no rosto de Vladmyr.
Enquanto ainda se aproximavam, Ector parou por um breve instante e fez uma leve reverência, uma demonstração de respeito, com um formal pedido de desculpas. A ação inesperada, deixou Lenna ainda mais sem graça, mas muito feliz por finalmente começarem a se entender.
Depois de toda aquela cena, estava bem claro para Vladmyr o motivo pelo qual seu superior a havia escolhido. Ela então se apressou para terminar de organizar suas coisas juntamente com Cázhor que percebeu, só pela cara de felicidade dela, ter feito a melhor escolha em contar tudo. Continuando seu caminho, Ector passou por Vladmyr.
— Quando estiver pronto, espero que faça o mesmo! — disse Ector com um grande sorriso no rosto ao passar por Vladmyr. Logo em seguida, deu-lhe um leve tapinha nos ombros.
Ele continuou andando até Eduardh, provavelmente para combinar a melhor forma de localizar o livro, uma vez que ele era o rastreador do grupo. Vladmyr o seguiu apenas com o olhar, ficando claramente emburrado ao perceber a feição sarcástica de Eduardh após presenciar toda a situação.