Volume 1
Capítulo 8: Uma verdade amarga
A conversa ainda se estendia e cada vez se tornava mais visível a expressão de incredulidade do grupo. A cada parte revelada da história, o clima ficava mais pesado. Cázhor claramente queria nunca ter começado essa conversa, mas era necessário para o bem da missão.
— Meses antes da guerra, os poucos transmorfos que foram encontrados, obviamente não aceitaram participar da tal experiência — Cázhor engolia seco — e no desespero de evitar a queda do reino armado e dissolver a rebelião, Hermont os caçou, torturou e os obrigou a fazer parte de tal loucura. Uma atitude abominável com certeza, mas, na época, o armamento e o grupo militar falavam mais alto.
— Nossa... eu sempre ouvi histórias suspeitas sobre ele — Eduardh estava enjoado — mas... experiências?
— Sim! Nem consigo imaginar o que eles sofreram nas mãos deles. Os testes foram bem-sucedidos, porém nem todos os transmorfos capturados eram de puro-sangue. Os que divergiam da excelência, eram descartados.
— Como assim descartados? — Vladmyr tentava absorver tudo aquilo.
— Creio que ele quis dizer que, os que não se enquadraram nos critérios, eram mortos — disse Eduardh.
— Mesmo não se enquadrando, alguns tinham certos atributos considerados úteis. Frágeis e atormentados pelas experiências, eram facilmente manipulados por Hermont. Ele acreditava que, com acompanhamento certo, conseguiria retirar totalmente a vontade própria deles.
— Como se fossem fantoches — completou Ector.
— Soldados modificados que respondiam prontamente e não questionavam. Uma lavagem cerebral aprimorada com magia.
— Quando eu era jovem, ouvi de alguns veteranos de guerra que os transmorfos eram apenas animais — disse Ector — não entendia bem o que eles queriam dizer na época, até porque o assunto não foi mais comentado. Agora vejo o motivo.
— Então os transmorfos foram usados como objetos, que, quando defeituosos, eram descartados e adquiridos novos? — Eduardh estava enojado.
— Pois bem! O que não estava nos planos de Hermont, era que entre eles, havia um traidor — Cázhor continuou — Alguém que vazou o experimento. Até hoje não se sabe como o traidor vazou esse projeto. Por ser algo por baixo dos panos, nunca houve uma investigação mais a fundo.
— Além de cometer tal atrocidade, ainda deixaram à mercê inimiga? Isso pode piorar? — Ector já estava sem reação às palavras do mago.
— Na escassez de matéria-prima, eles começaram a fazer clones. Esses seres, a cada leva, vinham com mais e mais defeitos, se tornando inúteis para o propósito de Hermont. Se tornou algo fora de controle e vários foram sacrificados entre tentativas e erros. Suspeito que os pais da senhorita Weins possam ter sido vítimas dessa grande estupidez.
— Virou uma droga de competição! Não bastasse o reino esconder isso da população, ainda ficam brincando de quem fazia melhor e mais rápido? — Vladmyr já não encontrava palavras para descrever o que sentia.
Era inacreditável que toda essa parte da história fosse manipulada de tal forma pelo próprio reino. Ector, a essa altura, parecia mais desapontado do que surpreso, aparentemente sabia que a história do mago não parecia ser algo tão impossível de acontecer pelos relatos que já ouviu falar sobre Hermont. Já Vladmyr, parecia um pouco perdido, a cada palavra que ouvia, uma parte do seu espírito se quebrava. Tudo o que acreditava, caia pouco a pouco. O reino que tanto defendia, na verdade, foi a causa de sua maior dor.
Eduardh parecia triste ao saber de toda a verdade, de como aconteceu e que os maiores culpados, na verdade, eram as vítimas. Seu pouco contato com as demais raças na época não o permitiu ver os dois lados da história, logo só sabia a mesma versão que a maioria da população sabe hoje.
— O que mais me surpreende ainda é que ainda tem mais — Eduardh lamentava.
— Infelizmente sim. A rebelião estava a ponto de explodir a qualquer momento. Com o prazo curto para criar novos soldados, Hermont e os demais optaram por utilizar as células e a essência dos puro-sangue que sobraram para gerar, forçadamente, novos seres. As células eram utilizadas para a criação do corpo e a essência para acelerar o processo de desenvolvimento e crescimento dos super soldados. Infelizmente, seus doadores não sobreviveram a todo o processo.
Os minutos pareciam horas, o clima pesado só piorava a sensação. Ao mesmo tempo que queriam que tudo acabasse, precisavam que ele continuasse. Precisavam da verdade.
— Nos relatos de Hermont, tudo foi por água abaixo, quando a lavagem cerebral que fizeram com aquelas pobres criaturas gerou um conflito interno. Memórias de um passado que não existia, treinamentos abruptos e sobrecarregados. A mistura de lembranças criadas com uma casca vazia os sobrecarregou, levando-os à loucura.
— Isso tudo... isso tudo parece um pesadelo. — Era o que Eduardh se forçava a acreditar.
— Quando entrei para o conselho e me contaram, também gostaria que fosse.
— Uma guerra na qual os peões eram usados sem saber o real motivo de tanto sangue derramado, enquanto as principais peças, os controlavam pelas sombras — resmungava Ector — Típico de gente que não move um dedo para defender o reino. Sem dar nenhum valor a quem pode definir a vitória ou a derrota: seus soldados.
Aproveitando dessa situação, as demais milícias ganharam força através do descontrole dos transmorfos do reino. Essa busca idiota pelo poder envolveu mais inocentes que culpados na guerra. O resultado foi aquele banho de sangue o qual contam hoje nos livros de história.
— O foco da rebelião era a tomada do polo armado do reino. Quem conseguisse, teria a porta de entrada para a conquista dos demais reinos — concluiu Ector.
— Um verdadeiro massacre de ambos os lados — disse Vladmyr.
— Por sorte os rebeldes foram controlados e rendidos pelo reino de Carmim. Os transmorfos que não morreram nos experimentos, ou na guerra, foram caçados e silenciados pelos aliados de Hermont. O foco era corrigir o erro e acobertar o fracasso que foi esse experimento.
— Obviamente, os civis que desconheciam a inocência desses soldados e só viram a fase de seu descontrole, criaram um ódio descabido da raça — disse Eduardh.
— Por fim, o antigo líder da cúpula e seus seguidores foram capturados e julgados em um comum acordo entre os reinos. Para não gerar mais caos, devido ao uso de magia proibida e todo o massacre que já havia sido causado, o caso foi fechado. O estrago era irreparável e fingir que essa parte da história nunca aconteceu foi a solução adotada pelo conselho.
— E aí deixaram apenas a parte que lhe foi conveniente: uma raça que se rebelou contra o reino por poder causando toda aquela carnificina. — Vladmyr estava furioso.
— Um fato que está nos livros foi que, Igaell, o próprio filho desse ditador, foi pego no meio do fogo cruzado dessa loucura. — Eduardh olhava para o teto na tentativa de se lembrar dos demais detalhes.
— Mas o real motivo pelo qual ele foi uma vítima não foi esse. Creio que você também saiba, não é mesmo mago? — Ector aguardava a resposta.
— Igaell não aceitou as ações do pai quando soube o que ele havia feito. Pretendia expor essa loucura, mas o laço sanguíneo não foi o suficiente para poupar-lhe a vida. O filho de Igaell, Gregory, na época ainda muito jovem, foi criado pela mãe longe de tudo isso, mas insistiu em retornar para tentar corrigir os erros do avô e dar uma vida digna e trazer a paz aos reinos e a todas as raças.
— O que vem se mostrando ser mais difícil do que ele pensava — interrompeu Eduardh — mesmo ele criando leis e punições contra o ódio entre as raças, parece não ser suficiente para frear essa situação.
Cázhor estava em pé, de costas para o grupo, olhando pela janela com o olhar vago enquanto terminava de contar aquela terrível parte da história. Era desconfortante toda vez que precisava tocar nesse assunto. Voltando sua atenção ao grupo, cabisbaixo, reforçou que aquelas informações, obviamente, deveriam continuar em sigilo. Sua disseminação só atrapalharia anos de trabalho árduo de Gregory para restaurar a honra do conselho e compensar o estrago que seu avô causou.
— Sei que é muito para assimilar de uma só vez, também passei por isso. Acredito que foi necessário para acabar com esses conflitos idiotas — disse Cázhor, num tom triste, mas firme. Fazê-los focar na missão atual que era muito mais importante nesse momento.
Ao olhar diretamente para os demais, Cázhor ficou surpreso com o que viu. Estavam todos sentados, imóveis e cabisbaixos, parecia que a informação que havia passado era realmente demais para digerir. Estavam em um silêncio completo, em choque.
— A Lenna sabia disso desde o início? — perguntou Eduardh, quebrando o silêncio.
— Sim.
— E por qual motivo ela nunca revidou as acusações desse babaca? — Indignado, o elfo, claramente se referia a Vladmyr. — Passar por tudo isso calada, sabendo que não tem culpa de nada do que a acusam, para ele era idiotice suportar aquilo sozinha.
Já cansado dessa conversa, Cázhor deu de ombros, como se não se importasse muito em responder.
— Meu caro, diferentemente da sua situação, Lenna, assim como os demais de sua raça, não são mal vistos somente por seus semelhantes, mas sim por todos os reinos. — O mago soltou um longo suspiro antes de continuar — Uma guerra que foram obrigados a travar, por interesse de terceiros e depois foram taxados como rebeldes e loucos por poder. Responsáveis por um massacre apenas para alcançar um objetivo fútil.
— Sim! Isso eu já sei...
— Eu a instruí a não revidar! — interrompeu Cázhor, levemente alterado — Além dela saber que seus argumentos quebrariam o sigilo do reino. Mesmo que pudesse de fato falar sem restrições, a ignorância da população e a visão unilateral da história sobre a guerra a colocariam em uma situação que não teria como provar. Podendo ser até acusada de oposição a ordem do reino. É isso que você quer para alguém que já sofreu tanto?
— Claro que não!
— Então, por favor, Sr. Hardro, não questione mais.
— Ok! — Eduardh apenas aceitou a ordem. O clima já estava pesado demais para começar uma nova discussão.
Um lado sóbrio que poucos conheciam sobre seu amado reino acabava de vir à tona. Impotentes em saber que nada poderia ser feito nesse momento, um sentimento de culpa e raiva se misturava em suas mentes. Imaginar que todas aquelas mortes foram causadas por um mero capricho de um louco era algo difícil de aceitar.