Volume 1
Capítulo 20: Laços
Estavam encharcados. Pareciam duas crianças emburradas e envergonhadas com o que fizeram. Para piorar, devido à baixa temperatura e às roupas molhadas, Eduardh acabou pegando um resfriado. Mesmo que os elfos raramente adoecessem, a constituição dos mestiços, comparados com os demais da raça, varia conforme a mistura dos genes.
Lenna revirou os olhos ao perceber que a ferida de Vladmyr voltou a sangrar, mesmo após todo o trabalho de seu mestre. Ambos estavam tremendo de frio, com toda essa confusão, acabou passando despercebido a queda brusca da temperatura.
Não demorou muito e Ector voltou com vários pedaços de móveis quebrados da outra sala, já se prontificando a fazer a fogueira, ele finalmente começou a sentir os efeitos da baixa temperatura. Cázhor parecia impaciente, usava sua própria magia para acender a fogueira, se certificando de que as chamas não se extinguiram.
— Cuide dessas crianças encharcadas, não tenho tempo, nem mais paciência para isso — Cázhor pedia a Lenna, balançando a cabeça em desaprovação aos dois.
As feridas do elfo estavam praticamente cicatrizadas. Dava apenas para ver três pequenas e delicadas linhas no lugar dos enormes cortes. Porém, seu corpo latejava de dor, ainda mais com a ação da água somada ao frio.
Se levantando com dificuldade, o elfo começou a retirar suas roupas molhadas, as estendendo numa espécie de varal improvisado de frente para a fogueira. Vladmyr também fazia o mesmo. Era uma grande labareda, que provavelmente os manteria aquecidos até suas roupas secarem.
Apenas com suas roupas de baixo e ainda molhadas, nenhum dos dois havia se tocado da situação em que estavam. Porém, bastou apenas olhar para Lenna para entenderem. Estavam praticamente nus, afinal as peças de roupa eram quase transparentes tanto pela cor clara quanto pela água que deixava transparecer mais do que deveria. A garota estava tão vermelha que parecia que iria explodir a qualquer momento.
— Pelos deuses, peguem isso! — Cázhor e Ector disseram impacientes jogando suas capas para os dois.
Rapidamente, ambos se sentaram de pernas cruzadas em frente a fogueira colocando as capas no colo. Toda aquela marra de Ector antes de buscar a lenha parecia ter desaparecido, aparentemente ele havia voltado ao seu estado normal após presenciar tal cena.
— Ei, elfo! O Vlad, eu até entendo. Ele dedicou sua vida toda até hoje para entrar no exército. Ele teve pouco contato com mulheres, talvez nenhuma, fora sua mãe. Mas você... — disse Ector, soltando uma grande gargalhada.
Por mais que o jovem guerreiro tenha perdido suas memórias, era claro que esse homem sabia muito sobre ele. Mesmo assim, queria matá-lo nesse momento, de tanta vergonha que sentia. Toda essa exposição o deixou sem reação. Um assunto tão inapropriado e diante de todos. Sentia-se como uma criança que acabou de entrar na puberdade. Era claro o constrangimento deles perante a situação. Porém, isso não impediu que Ector continuasse com seu questionário.
— Quantos anos você tem? Já deve ter vivido muito mais que nós quatro juntos aqui e com certeza conheceu muitas mulheres... e digamos que as elfas são lindas... — Ector ainda dizia gargalhando.
— É... é claro que eu já conheci outras mulheres, mas não é por isso que vou ficar pelado e me atirar em toda garota bonita que vejo — disse o elfo constrangido olhando para Lenna, que tentava disfarçar o interesse em toda a situação.
— Sobre a idade... tenho... oitenta anos. Mas, considerando que os elfos têm em média oito vezes mais longevidade e os mestiços caem pela metade nesse tempo, convertendo tenho apenas vinte. Não me julgue como se eu fosse um senhor idoso que já aproveitou tudo da vida — Eduardh mal conseguia olhar para os demais.
Mesmo sem necessidade, ele tentava justificar sua resposta, alegando que, até alguns anos atrás, ficou somente dentro da bolha que eles chamam de Nifhéas.
— Minha família sempre foi bem conservadora, até meu pai... bom... não sei bem como falar dele — disse Eduardh incomodado.
Já era de conhecimento de todos, a diferença de idade entre elfos e as demais raças, mas aparentemente, não tinham noção da discrepância.
— Ótima aula. Agora vamos tratar essas feridas, comer e descansar um pouco — Ector ainda sorridente, interrompeu o momento constrangedor que ele mesmo havia provocado ao elfo.
Após todo esse momento embaraçoso, as coisas voltaram quase que forçadamente ao normal. Vladmyr estava de cabeça baixa, apoiava seu cotovelo em sua perna e usava sua mão de sustento para sua cabeça que ainda doía muito. Para sua surpresa, sentiu um leve toque em seu queixo, que levantava suavemente sua cabeça. Era Lenna, que ainda muito sem graça, lhe mostrava as novas ataduras para trocar seu curativo. Ajoelhada em sua frente, ela limpava o ferimento e finalizava o tratamento.
— Que a bênção dos deuses lhe traga virtude e cure seus males — ela disse, finalizando com um suave beijo na testa de Vladmyr.
Vladmyr a olhava sem entender. Ainda absorvia a atitude da pequena maga.
— Aprendi isso com o mestre Cázhor. Dizem que se aplicar um pouco de sua essência mágica ao final do cântico e fizer um gesto de carinho, a dor passa mais rápido. — Ela sorria.
Logo em seguida, ela se levantou e saiu para finalizar os preparos da refeição. Eduardh, após ver toda essa cena, ficou extremamente chateado. Antes mesmo que Lenna servisse a comida, ele se retirou e entrou em sua barraca, fechando a entrada bruscamente.
Vladmyr ainda estava atônito com o que Lenna havia feito. Estava parado na mesma posição com a mão na testa, onde ela o havia beijado. Despertou somente quando Ector chamou sua atenção, estalando os dedos em frente aos seus olhos. O jovem guerreiro via Lenna de uma forma diferente agora.
“Quando eu recobrar a memória, não quero esquecer do que ela está fazendo por mim.”
Logo em seguida, se deu conta de que a dor do seu ferimento havia diminuído bastante.
“Será que o encantamento realmente funcionou?” Ele se perdia em seus pensamentos.
Depois que todos comeram, Cázhor sugeriu que usassem a fonte para se limparem devidamente. Considerando que aquele ser poderia aparecer a qualquer momento, não seria muito inteligente ficar sozinho num local desconhecido. Então se dividiram em dois grupos. Ector acompanharia o mago e depois iriam os mais jovens.
Enquanto os dois estavam na fonte, Lenna havia se dado conta de que o elfo ainda não havia saído de sua barraca. Apesar de tudo, ele precisava comer. Parecia muito fraco, ainda mais agora que pegou um resfriado. Era importante se recuperar o mais rápido possível. Ela pegou um pequeno pote e colocou um pouco de comida, algo que lembrava um purê com carnes. Estava bem quente, nesse frio ajudaria bastante a manter a temperatura.
Lenna nem arriscaria a pedir que Vladmyr levasse a comida. Era capaz dos dois se matarem na barraca mesmo. Então ela mesma resolveu levar. Vladmyr, percebendo suas intenções, fez questão de demonstrar, da forma mais clara possível, o desinteresse em ajudar o elfo, confirmando a teoria da maga.
Antes de levar a refeição, Lenna foi averiguar se as roupas já estavam secas. Mesmo com a fogueira emanando chamas tão quentes e tão próximas, o frio parecia não dar trégua. As roupas do elfo já estavam secas, ela as retirou do varal improvisado, dobrou cuidadosamente, levando-as consigo. O pote de comida estava sobre as roupas, sua intenção era que o calor passasse para os panos, assim ficariam quentinhas ao se vestir.
Ela se aproximou da entrada da barraca, estava um silêncio estranho, se questionava se estava tudo bem.
— Sr. Hardro... está acordado? Trouxe sua comida. Sr. Hardro?
A falta de retorno a preocupava. Involuntariamente, passou pelo pano que a separava do interior da barraca. Ele estava deitado, com um dos braços dobrados sobre os olhos, respirava tranquilamente, coberto até a cintura com uma espécie de manta grossa e seu peito exposto.
Na tentativa de acordá-lo sutilmente, encostou levemente no ombro do elfo com seu cotovelo, suas mãos estavam ocupadas segurando as roupas e a comida. Sem retorno, ela se esforçou para não derrubar tudo enquanto o balançava gentilmente.
“Isso não vai dar certo.”
Eduardh estava cansado, seu corpo parecia resistir a despertar. Sem opções, ela colocou as roupas e a comida de lado e delicadamente pegou a manta para cobri-lo. No entanto, suas mãos acabaram acidentalmente tocando a pele fria do elfo, algo que chamou sua atenção. Sem que desse conta, ela acabou passando seus dedos entre os vincos de sua musculatura, uma visão que a instigava de formas que ela nunca havia sentido antes.
— Isso faz cócegas. Se continuar assim, não posso me responsabilizar por meus atos — o elfo disse baixinho, com um leve sorriso e ainda com o braço tampando os olhos.
Tal atitude fez com que Lenna levasse um belo susto. Por impulso, cobriu bruscamente o elfo, até a cabeça, com a manta. Fazendo-o soltar um gemido de dor debaixo da coberta.
— Me... me desculpe, Sr. Har... — Lenna tentava se desculpar, ao perceber que ela havia provocado a dor.
— Ed... me chame apenas de Ed. Esse negócio de senhor pra lá e senhor pra cá não combina comigo. Somos amigos, não somos? Então, que tal parar com a formalidade? — Ele a interrompeu.
Sufocado, ele retirou a manta da cabeça e sentou-se de frente para ela. Amigos era uma palavra que ela não costumava ouvir. Não ao menos se tratando dela com qualquer outra pessoa. Talvez fosse a primeira vez que alguém de fora tivesse dito isso diretamente para ela.
— Você realmente quer ser amigo de alguém como eu, Sr. Har... Ed? — Ela se corrigiu quando percebeu que ele a encarava de cara fechada enquanto a ouvia.
— Claro! — respondeu sem hesitar.
Eduardh olhava para ela com um largo sorriso. Ver a sinceridade em suas palavras, fez os olhos de Lenna encherem d’água.
— Eu... eu... trouxe comida e suas roupas. Elas devem estar quentinhas.
Lenna saiu rapidamente da cabana, enxugando suas lágrimas. Mas dessa vez não estava triste, pelo contrário, estava muito feliz em saber que alguém queria ser seu amigo. Ele, por sua vez, resolveu deixá-la com seus pensamentos. Era melhor descansar, apesar de tudo, estava exausto.
“Não conseguiria fazer nada nessas condições mesmo, melhor comer antes que esfrie.”
Nesse meio tempo, Cázhor e Ector estavam voltando e o guerreiro percebeu os olhos levemente marejados de Lenna, imediatamente voltou sua atenção para Vladmyr.
O que foi dessa vez garoto? — disse com um olhar desconfiado para o rapaz.
Vladmyr respondeu com um dar de ombros, confirmando que também não sabia o motivo.
— Bom... vão os dois então. O elfo precisa descansar. O banho mais cedo deve servir por enquanto. Vlad acompanhe a senhorita Weins e tente não fazer nada inconveniente dessa vez — Ector, às vezes, agia como um pai que já não sabia como controlar seu filho.
Vladmyr então, vestiu suas roupas que finalmente estavam secas. Sem questionar, cabisbaixo, ele acompanhou Lenna até a sala da fonte.
— Sabe... é um porre não saber que tipo de cara eu era antes dessa amnésia. Tá claro que não me dava bem com vocês. Nem sei ao menos o que fiz, para poder me desculpar — ele comentava desanimado.
O jovem guerreiro aproveitava que estava a sós com Lenna para desabafar, na esperança que ela contasse o que ele havia feito.
— Só não queria que ficasse esse clima chato. Você salvou minha vida. Não lembro mesmo o que aconteceu... juro que estou tentando lembrar. Mas seja lá o que for, me desculpe...
Ele foi interrompido ao trombar em Lenna, que parou bruscamente. Virando repentinamente, ela agora o encarava nos olhos, fazendo o beicinho de quando está emburrada. Por fim, soltou um grande suspiro e revirou os olhos. Ele não estava entendendo nada, ficando ainda mais confuso quando, logo em seguida, se deparou com um grande sorriso dela. Lenna apontava seu dedo indicador na direção do guerreiro, sua mão se aproximou lentamente até que seu dedo encostou na testa de Vladmyr.
— Me dê um chocolate quando sairmos daqui e estaremos quites! Ah... e é claro, você também terá que ser meu amigo! — Ela saiu sorridente em direção à fonte.
Ele apenas sorriu, assentindo com a cabeça e foi em sua direção. Chegando novamente à fonte, Vladmyr sentou-se na borda de onde a água se acumulava, ficando de costas para Lenna. Em silêncio, ele a ouvia cantarolar algo baixinho, enquanto se limpava com um pano úmido. Lenna havia retirado suas peças de roupa, ficando apenas com suas roupas íntimas e a capa para lhe cobrir. Para que não jogasse a água suja direto na fonte, ela optou por usar de alguns pequenos potes e baldes que ainda estavam inteiros e jogados no canto da sala, para lavar suas roupas.
Apoiando seu pé em um dos degraus, ela remexia seus dedos que latejavam um pouco devido à bota apertada, enquanto passava o pano úmido em sua perna. A fenda da capa se abriu, expondo quase toda a lateral de seu corpo. Seu reflexo, por um breve instante, se fez visível de forma levemente embaçada, pelos pedaços e lascas de metais empilhados na parede. Deixar de apreciar tal cena, foi impossível para Vladmyr, que aproveitou a vista até o último segundo.
Assim que ela terminou, pegou suas roupas ainda bem molhadas para colocá-las para secar próximo à fogueira. Voltou-se para Vladmyr, chamando com um leve tapinha em seu ombro. Ele estava distraído, pensando no que havia visto há pouco e acabou se assustando, virando de supetão. Tal atitude fez com que ela também se assustasse, prendendo a respiração por alguns segundos e arregalando os olhos.
— Pelos deuses Vlad, você quase me mata do coração! — disse ela, soltando o ar subitamente.
Após tal cena, ele soltou uma breve gargalhada ao ver o estado que ela estava. Devido ao susto, seus longos cabelos, levemente úmidos, ficaram desgrenhados, sem contar que ela acabou pressionando suas roupas contra sua capa, encharcando-a também.
— Nossa... você é bem desastrada, né? Melhor tirar essa capa antes que pegue um resfriado que nem o elfo — disse ele, enquanto puxava a cordinha feita em formato de laço que prendia a capa dela.
A capa deslizou suavemente pelos ombros dela, até a altura de seu busto. Expondo assim sua pele e boa parte de sua lingerie, branca levemente azulada, com pequenas rendas nas bordas. Somente após tal ação, ele se deu conta de que as roupas que ela usava estavam, agora, amassadas em suas pequenas mãos. Ela segurava desesperadamente a capa para que não terminasse de cair. Vladmyr ficou atônito com a cena. Não conseguiu, nem ao menos, terminar sua frase. Tal cena o pegou de surpresa.
Algumas mechas do cabelo da maga, ainda estavam bem molhadas, fazendo a lingerie absorver boa parte da água, se tornando levemente transparente em alguns pontos.
— Desculpe-me... eu... eu não sabia que... não foi de propósito, eu juro — ele dizia, forçando a desviar o olhar.
Ela se cobriu rapidamente e, com pisadas fortes, saiu da sala, deixando-o para trás.
— Lenna, espere por favor! — disse ele, enquanto ia atrás dela.
Sem olhar para trás, ela entrou em sua barraca, fechando bruscamente os panos da entrada. Vladmyr sequer cogitou se arriscar a tocar nos panos, ficando alguns segundos ajoelhado, encarando a barraca fechada.
— Droga! Seu idiota! — ele resmungava.
Cázhor franzia o cenho sem entender.
— Não vou nem perguntar — Ector balançava a cabeça em negação ao que havia acabado de ver.
Quando ia se levantar, foi surpreendido por uma pequena mão, que passou entre os vãos do pano que fechava a barraca. Ela segurava algumas peças de roupas molhadas. Não foi difícil entender o que ela queria. Ele acabou pegando, meio constrangido, mas não questionou.
“Apesar de tudo, valeu muito a pena!” pensou ele, enquanto esbanjava um grande sorriso no rosto.