Magia Gênesis Brasileira

Autor(a): Rafaela R. Silva


Volume 1

Capítulo 19: Desabafo

Lenna separou tudo que precisava para fazer a comida, estava faminta e esgotada. Olhava ao redor e a expressão do grupo não era diferente da dela. Ector e Vladmyr finalizavam os últimos detalhes das barracas quando foram interrompidos pelo mago.

— Sr. Polan? — Cázhor queria analisar melhor a situação do jovem guerreiro.

Lenna apenas observava atenta toda a situação. Ector praticamente lançou-se ao chão, pegou algo que parecia uma pedra de afiamento em uma das bolsas e se limitou ao silêncio enquanto afiava a lâmina de seu machado.

— Não entenda mal garoto, só quero me certificar de que essa sua condição não irá afetar nossa missão. — Cázhor fazia questão de deixar claro que era importante para ele.

Enquanto o examinava, Vladmyr reparou que o mago apresentava um ar preocupado, mas claramente, esse sentimento não vinha à tona por causa dele.

— Vai ficar tudo bem com a garota? — Ector indagava o mago, apoiando seu corpo sobre um dos braços dobrados, quase deitado sobre o chão frio e empoeirado.

Claramente era o que Vladmyr queria saber, seu superior percebeu isso. A expressão de Cázhor, às vezes era bem intimidadora, o que só deixava claro como era difícil conversar sobre qualquer coisa com ele.

— Não se preocupe Sr. Brugnar, ela já passou por coisas piores, vai superar. — O mago se limitou a uma resposta breve.

Cázhor falava com tom arrastado, como se só quisesse tentar relaxar um pouco. Mal lembrava quanto tempo fazia desde a última vez que comeu algo. Lenna estava preocupada, pois já havia algum tempo desde que o elfo havia saído. Tal ansiedade não deixou que reparasse que falavam dela.

— Ela... ela está sob meus cuidados desde pequena, Sr. Brugnar. Apesar de seus constantes treinos, esses descontroles aumentaram com uma certa frequência — Cázhor apesar de preocupado, estava aliviado de finalmente compartilhar esse sentimento.

— Após de ver sua reação, imaginei que já havia presenciado outras crises.

— De fato! Não quero que ela dependa de mim para sempre, o reino é cruel com os transmorfos. Só quero que ela fique bem... — Ele se interrompeu ao perceber que o cansaço estava o fazendo falar demais.

— Olha só... parece que o “Sr. Mago de gelo” afinal tem algum sentimento. Quem diria que era tudo fachada. — Ector completava com uma grande gargalhada.

— Tsc! — resmungou o mago.

As risadas chamaram a atenção de Lenna, o que a fez prestar mais atenção no que eles falavam. Cázhor já estava aborrecido com toda a exaltação do guerreiro. Seu limite se deu quando reparou que Vladmyr compartilhava do mesmo pensamento, esse homem que, mesmo sem lembrar de muitas coisas, concordava com o brutamonte.

— Ai... ai... aaai... — disse Vladmyr, em tom de reclamação, depois que o mago apertou, propositalmente, a faixa do novo curativo em sua cabeça.

— Então Sr. Polan, por que não acompanha a Senhorita Weins para verificar se o elfo não morreu por aí? — Cázhor disse com rispidez, finalizando o curativo.

Mal-humorado, o mago limpava seu manto, que se encheu de poeira quando se sentou para tratar as feridas do jovem guerreiro. Lenna sem entender bem, aproveitou a sugestão de seu mestre para procurar por Eduardh. Estava preocupada com ele andando sozinho em seu atual estado.

Era estranho andar a sós com Vladmyr. Mesmo ele parecendo outra pessoa devido à perda de memória, ela sabia que em algum momento, suas lembranças iriam voltar.

“Será que ele voltará a ser como era antes?” Lenna se questionava.

Dividindo seus pensamentos, ela chamava pelo elfo a fim de localizá-lo mais rápido.

“Por que preciso procurar por esse elfo babaca?” Vladmyr pensava enquanto a acompanhava.

Apesar de tudo, ainda estava zonzo, a pancada foi mais forte do que imaginava. Lenna já tinha percebido a situação que o guerreiro tentava disfarçar. Ela estava um pouco mais a frente, quando parou repentinamente, virando-se para ele.

— Está doendo muito? — Ela olhava com uma certa preocupação, enquanto levava gentilmente sua mão ao rosto dele.

Sua pele, ainda levemente fria, não o incomodava. De forma automática, aquela sensação o fez fechar os olhos por alguns segundos. Se sentindo reconfortado, sobrepôs sua mão a dela, seu coração novamente acelerava enquanto a encarava.

O clima gerado ali, rapidamente, foi quebrado quando o elfo respondeu ao chamado de Lenna. Ao ouvir a voz, ela retirou rapidamente sua mão, sentindo-se muito envergonhada.

— Va... vamos logo até ele! — Ela se virou e rapidamente foi em direção a pequena sala de onde vinha a voz.

Vladmyr soltou um grande suspiro revirando os olhos, enquanto caminhava lentamente na mesma direção com as mãos nos bolsos.

Cázhor estava claramente preocupado, restavam poucos suprimentos de cura e ainda não havia como saber se estavam próximos de seu objetivo. Ector retirava as partes mais pesadas de sua armadura, precisava limpar e tratar de alguns ferimentos. Diferente de outros momentos em que se divertia em batalha, estava mais sério.

— Tenho de admitir, estou um pouco preocupado com o estado do Vlad — Ector desabafava com o mago — apesar que por um lado, ele esqueceu, mesmo que temporariamente, a morte do pai.

— Mas o que exatamente aconteceu com o pai dele? — Cázhor instigado pelo comentário, questionou.

— Ele também era das forças armadas de Carmim. Um grande soldado e um bom amigo. Durante uma das rebeliões causadas após a guerra, o pai dele foi morto covardemente por um transmorfo em um confronto.

— Isso explica muita coisa — Cázhor refletia — uma vida que se perdeu e serviu de combustível para cultivar esse ódio pela raça.

— Mesmo com essa nova parte da história, ele tem dificuldades em lidar sozinho com seus sentimentos, afinal, com ou sem culpa, o pai dele está morto.

— Lamento pela perda.

— Eu também, mas não quero que o garoto se torne alguém amargurado, ou que tome suas decisões baseadas no que sente, deixando o bem maior de lado. Seu pai jamais aceitaria ver seu filho agindo dessa forma. Ele precisa seguir em frente — Ector dizia enquanto olhava vagamente para o alto.

— Eu já ouvi muitas histórias sobre seus feitos, Sr. Brugnar. Inclusive quando era bem mais jovem, durante a guerra. Você deve ter muito sangue transmorfo em suas mãos. Não o recrimino por isso, afinal era você ou eles — disse o mago, triste.

— Eu sei.

— Só quero que um dia essa farsa acabe e que a verdade que lhes disse há pouco venha à tona, para enfim acabar com essa injustiça. Enquanto isso não acontece, temos que nos misturar ao meio, colocar as máscaras dessa corja de sociedade, até que enfim possamos tirá-las sem discriminação.

Cázhor sabia que suas palavras soavam contraditórias, mas era como se sentia. Se ele agisse de qualquer outra forma com Lenna, era bem provável que nenhum dos dois estaria ali. Precisava se submeter a esse tipo de coisa, para garantir a ela proteção e ensinamento suficiente para andar sozinha.

— É frustrante para mim, ver o que acontece com ela e não poder ajudá-la. Ter que manter as aparências para conseguir preservar meu status e conseguir apoiá-la somente dos bastidores, não é fácil — disse Cázhor finalizando seu desabafo.

Chegava a ser estranho ouvi-lo falar com tanta ternura, com certeza Ector sabia que isso era uma situação rara. Provavelmente, só aconteceu porque Lenna não estava presente. Com certeza, o cansaço foi um fator que colaborou muito para quebrar essa pose toda que ele manteve todos esses anos.

— Fique tranquilo, todos temos algo ou alguém que queremos proteger, não é porque você não expõe para todo mundo que seria diferente — Ector disse de forma amena.

Enquanto isso, na sala ao lado, Eduardh esboçou um leve sorriso quando seus olhos encontraram os de Lenna adentrando a sala. Porém, sua expressão mudou rapidamente quando percebeu a presença de Vladmyr. Emburrado, voltou seu olhar para a estátua, tentando se manter consciente.

— Gaia! — disse Lenna olhando a figura.

— A deusa? — Vladmyr parecia surpreso.

— Sim! Li sobre ela em um livro que Cázhor trouxe de Nifhéas. Ele me deu, quando fez uma breve visita ao reino, a pedido do Líder do Conselho. Estava tratando de alguns assuntos internos na época. Para variar, ele não lhe deu muitos detalhes, mas trouxe bastante coisa de lá pra mim.

— Agora que você comentou... — Eduardh ainda encarava a majestosa escultura.

— No livro, citava que, em sua forma humana, Gaia se parecia assim como nessa escultura da fonte. Essa deusa sempre foi muito romantizada.

— Não há como ninguém saber como ela se parece, afinal, por que uma deusa iria perder seu tempo para dar o ar da graça para os seres desse reino? — Eduardh dizia, enquanto admirava a obra.

— Independentemente, ela é linda! — Lenna também estava fascinada.

— O que está me incomodando é, como só a fonte está limpa? Não me parece que ninguém veio aqui por muito tempo — disse Eduardh.

Tudo levava a crer que havia magia envolvida, porém Lenna já havia avaliado toda a enorme estrutura e não sentiu nenhuma magia aplicada. Tudo indicava ser uma fonte natural, então Lenna acabou aproveitando para encher os cantis e usar a água para o cozimento dos alimentos. Eduardh aproveitou para falar sobre as outras duas salas que viu antes de vir para essa.

— Podemos usar os móveis como lenha... — As condições do elfo não eram das melhores. Seu corpo acabou vacilando ao tentar levantar-se para acompanhar os demais.

Apesar de potente, a poção do mago não curava a dor das pancadas sofridas no corpo. Funcionava mais como uma medida para situações de vida ou morte. O restante da recuperação, o próprio corpo deveria dar conta.

Vladmyr, até então, apenas observava toda a cena, quando sentiu um cutucão em suas costas.

— Vai! Anda logo! — sussurrando, Lenna fazia uma cara de brava enquanto também insinuava com os olhos, para que ele auxiliasse o elfo a se levantar.

A contra gosto, ele se ofereceu para servir de apoio, estendendo sua mão e segurando o elfo pelo braço. Porém, Eduardh recusou veementemente a ajuda, puxando com rispidez o braço.

— Não preciso de sua ajuda!

A atitude gerou um grande conflito entre os dois. Com a insistência de um e a recusa do outro, ambos acabaram caindo na fonte. Encharcados, ainda continuavam a brigar. Pareciam duas crianças que competiam pelo mesmo brinquedo e nenhum queria ceder.

Lenna observava a situação já sem paciência, tentava convencê-los a pararem, mas era ignorada entre um xingo e outro entre os dois. Cansada, ela teve uma atitude inusitada. Segurou firmemente a orelha de cada um e os repreendeu.

— Já que querem se comportar como crianças, serão tratadas como tais!

Eles foram forçados a se aproximar e sentar na borda. A vermelhidão na orelha demonstrava que Lenna estava realmente irritada. Ambos escutavam suas reclamações de cabeça baixa sem dizer nada. Estava frio, muito frio e com as roupas molhadas, a sensação só piorava.

— Olha só! Vocês dois não têm jeito mesmo! — Dizia ela enfurecida ao ver os curativos que, recentemente feitos, estavam encharcados.

Parecia uma mãe xingando os filhos que acabaram de fazer uma traquinagem. Ela automaticamente dava ordens que ambos obedeciam agora sem reclamar. Chegava a ser engraçado como aqueles três se comportam como adolescentes na puberdade.

Sem escolha, Eduardh teve que aceitar a ajuda de Vladmyr. Enquanto Lenna levava os cantis na frente, os dois se apoiavam andando lentamente logo atrás.

— Pelos deuses, o que aconteceu com vocês agora? — Questionou Ector ao ver a cena da garota marchando emburrada e os dois encharcados logo atrás.

Ambos permaneceram em silêncio. A sensação de desequilíbrio de Vladmyr piorou a ponto de que, quando chegaram próximos ao grupo, deixou a gravidade agir em seu corpo logo após largar o elfo. Com uma breve explicação de Lenna, Ector e Cázhor se inteiraram do que havia acontecido.

— Nenhuma novidade até então — ironizava Cázhor enquanto falava.

Ignorando o que via, Ector se prontificou a ir pegar os móveis para servir de lenha. Era preciso mais do que nunca algo para se aquecer antes que ambos pegassem um resfriado ou algo pior. Ele se levantou, soltando um grande suspiro e, com seu machado em mãos, fez algo inusitado. Girando-o rapidamente, fez com que a lâmina pegasse uma grande velocidade e depois, com força absurda, fincou-a entre os dois. O golpe fez uma grande rachadura no chão. Vladmyr e Eduardh arregalaram os olhos, ambos encarando seu reflexo na lâmina que os separava a poucos centímetros de distância. Foi um susto tão grande que nenhum deles teve reação.

— Olha só, seus merdinhas. Não estamos a passeio aqui. Já encheu o saco a briguinha de vocês dois. Ou vocês se dão bem, ou da próxima vou dividi-los ao meio! — Ector, furioso, arrancou seu machado do chão, saindo em direção às salas.

Até mesmo Cázhor se assustou, prendendo rapidamente a respiração devido ao som estridente e repentino do impacto do machado ao chão. O caminhar de Ector era pesado e firme. Mesmo pelo pouco tempo que estavam juntos, era perceptível que ele não estava no seu estado normal.



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