Magia Gênesis Brasileira

Autor(a): Rafaela R. Silva


Volume 1

Capítulo 18: O caminho da redenção

A grande massa de luz se mantinha suspensa no ar. Era impossível ver o que aconteceu com a criatura nessas circunstâncias. O maior medo do grupo era que o Cérbero voltasse à vida.

— O que vamos fazer? — Lenna estava inquieta com a situação.

— Ainda não consigo ver nada... — Ector forçava a visão.

Por fim, a luz se dissipou. A cena era como se uma enorme bolha de sabão estourasse antes do tempo. Milhares de partículas de luz se dissiparam silenciosamente em várias direções, antes de atingir o chão.

— Que lindo! — A imagem refletia nos olhos de Lenna.

Em contato com os cristais na parede, a luz se propagou de uma forma absurda, trazendo cores distintas e iluminando todo o salão.

A porta se abriu! — disse Lenna, quando seus olhos focaram na entrada, após acompanhar as partículas que ainda restavam e caiam na mesma direção.

— Bom... temos dois cenários possíveis: ou o Cérbero mantinha as almas presas aqui, ou, devido a toda confusão, elas apenas se afastaram para muito longe — disse Cázhor, pensativo.

— Acho que vamos ficar sem saber, afinal das contas, já não estão mais aqui — disse Vladmyr dando de ombros.

— A propósito garoto, se lembrou de algo? — Ector questionava Vladmyr.

Ele apenas retribuiu com um olhar desentendido e perdido, um olhar de alguém que estava se esforçando para ter uma resposta positiva.

— Bom, vamos descansar um pouco e esperar que a poção termine seu efeito, para adentrarmos o templo. Não sabemos o que nos espera, então melhor que estejamos, ao menos, em melhores condições do que agora — disse Cázhor, enquanto se sentava em um pedregulho um pouco mais ao fundo, onde julgava ser mais seguro.

O mago estava cansado, fazia muito tempo que não entrava em combate dessa forma. Finalmente o clima denso da caverna começou a afetá-lo. Lenna sentou-se ao seu lado, com um olhar decepcionado e sem dizer nada. Seus olhos ainda estavam vermelhos e coçavam. Apoiando seus braços em cima de seus joelhos, Cázhor pegou um cantil e tomou uns bons goles de água. Fechando seus olhos, encostou sua cabeça no grande paredão, fazendo com que seu cabelo deslizasse levemente para trás.

— Olha, perder o controle, ainda mais quando a vida de alguém está em risco por nossa causa, é normal. Mas, você não pode continuar deixando suas emoções dominarem assim — Cázhor quebrou aquele silêncio, dizendo ainda de olhos fechados — não foi a primeira vez... lembra quando você era apenas uma criança e não queria desgrudar de mim, quando eu saia em alguma missão? Pois é, nunca esquecerei aquela crise de pirraça.

Ele soltou um leve sorriso ao relembrar essa memória.

— Estou aqui por você e com você. Porém, você precisa se tornar mais forte, para que, quando eu já não estiver mais por perto, eu possa ficar tranquilo, sabendo que você não precisa mais de mim.

— Por que o senhor tá falando isso logo agora? Eu já ouvi isso várias vezes.

— Preciso ser duro com você, ou nunca irá deixar de ser essa criança birrenta e dependente. Agora me deixe descansar um pouco — disse Cázhor, de uma forma que deixou claro à Lenna que o assunto estava encerrado.

Apesar da breve conversa, sempre soava estranho ouvir essas palavras, ainda mais vindo de quem as dizia. Ao mesmo tempo, era tão reconfortante, que de fato a deixava mais tranquila. Eduardh e Ector acabaram por escutar toda a conversa por estarem mais próximos aos dois, mas preferiram fingir que não. Esse era um momento somente deles.

Lenna queria dizer tanta coisa, mas não sabia por onde começar. Apesar de estar desde bem novinha ao lado de Cázhor, as atitudes dele, ainda eram uma incógnita para ela se arriscar demais. Preferiu deixá-lo descansar em seus pensamentos. Para ela, momentos assim eram raros e estava ciente que não teria outro tão cedo. Foi quando ficou extremamente aborrecida, vendo Vladmyr se aproximando dos dois a chamando para conversar.

— Vá logo! Me deixe descansar. O Sr. Polan parece bem obstinado a conversar com você. Então acabe logo com isso e se resolvam. Aproveite antes que ele recupere todas as suas memórias, creio eu que não será tão gentil assim — Cázhor suspirou impaciente enquanto orientava Lenna.

Ainda assim ela estava relutante, fazia o leve beicinho de quando ficava emburrada.

“Se eu der uma desculpa qualquer, ele vai embora?” Ela desviava o olhar.

— Não me faça repetir! — O mago já estava impaciente.

Quando ela menos esperava, ignorando a situação, ele a pegou sutilmente pelo braço e a obrigou a segui-lo até um ponto mais distante dos demais. Eduardh, se opunha fortemente à situação e, mesmo que com extrema dificuldade, já se preparava para ir até eles.

— Calma lá elfo, não se intrometa dessa vez — Ector disse barrando a passagem — deixa ele fazer as coisas direito, tentar ao menos reparar o estrago.

Vladmyr estava convicto. Lenna percebeu que seria inútil resistir, era melhor acabar logo com isso. Quando menos se esperava, puxou-a para si, de forma tão afetuosa, apoiou levemente seu queixo sobre a cabeça dela. Nesse momento suas grandes orelhas fizeram um movimento rápido para baixo se mantendo assim. Sua cauda balançava de um lado ao outro. Ela não tinha o costume de ser abraçada dessa forma, o frio de sua pele, contrastava com o calor do corpo dele. Ainda cansado da batalha e tonto pelo sangramento de sua ferida que hora ou outra insistia em abrir, aproximou seus lábios próximo aquela grande orelha felpuda.

— Olha... me perdoe, claramente fiz algo que te deixou muito triste, mas infelizmente não consigo me lembrar do que — Vladmyr dizia com um tom triste em sua voz — não quero voltar a ser o cara babaca que você até tem medo, mas não sei por onde começar.

Vladmyr estava claramente preocupado com a situação. Apesar da sincronia na batalha com seu superior, ele não reconhecia essas pessoas. Lenna, nesse momento, era a pessoa mais próxima que tinha alguma memória.

— O que você fez por mim a pouco na luta do Cérbero... me admira por você colocar sua vida em risco — concluiu Vladmyr.

Lenna ouvia atentamente o que ele falava. Mesmo depois de tudo que havia passado, seu descontrole emocional quando pensou que o elfo havia morrido, ela se mantinha ali, firme.

— Você não se torna inferior ou superior por ser diferente, suas escolhas formam seu caráter. Alguém importante para mim me disse isso uma vez — Nesse momento, ele a abraçou mais forte, reflexo da dor que sentiu ao tentar recobrar uma memória que ainda parecia turva.

Nesse momento, ela quase já não compreendia o que ele falava, estava em êxtase com toda a situação. Sua respiração acelerava enquanto os braços de Vladmyr envolviam sua cintura, a deixando aninhada. Sentia-se segura, de uma forma que era difícil explicar. Quando finalmente tomou coragem para dizer algo, seus pensamentos foram interrompidos.

— Por favor, me prometa... apenas me prometa que, quando eu recobrar minhas memórias, caso eu, por algum motivo, vier a me esquecer desse momento, você não vai... desistir de mim, tá bom? — Ele a olhava gentilmente nos olhos.

— Tud... Tudo bem. Não vou dizer que te perdoo cem por cento agora, mas prometo que vou ao menos tentar — Lenna respondeu, abaixando levemente seu rosto envergonhado.

— Obrigado! — disse ele, soltando um largo sorriso.

Vladmyr ainda a segurava, a encarando sem dizer uma palavra sequer. Algo dentro dele dizia dever algo a ela. Sentia um aperto no peito quando olhava para seu rosto, que nesse momento, estava com um exagerado rubor. Ele então levantou suavemente o rosto dela pelo queixo enquanto se aproximava cada vez mais, enquanto ela, naturalmente, fechava seus olhos.

— Muito bem, Sr. galanteador. Deixa-a em paz e vamos continuar nossa missão — o elfo claramente interrompeu de propósito.

— Pff... — Vladmyr soltou um longo suspiro, quando Eduardh os interrompeu.

Lenna tentava disfarçar seu olhar. Eduardh se aproximava dos dois após receber os curativos de Cázhor. Ele claramente esqueceu que estava sem sua blusa. As ataduras firmes e justas só incentivaram a musculatura a ser ainda mais nítida. Apesar de ser um elfo, uma raça que tradicionalmente tem traços delicados e sutis, Eduardh tinha um físico similar ao de Vladmyr. Era bem definido, talvez por ser um mestiço, como Cázhor havia mencionado anteriormente, possa ter influenciado sua aparência.

Percebendo toda a situação, Vladmyr retirou sua capa e jogou em direção ao elfo, que, pego de surpresa, a deixou cair sobre sua cabeça.

— Vai pegar um resfriado andando assim. E se bobear, vai acabar ficando para trás — disse Vladmyr, de forma irônica.

Lenna deu uma leve risada com a cena.

— Obrigado! — Eduardh puxava com desgosto aquela capa imunda e a prendia em volta dos ombros. Logo depois, seguiu em direção aos demais que pareciam aguardar impacientemente o desenrolar da situação.

Finalmente seguiam rumo ao templo. A estrutura era enorme, sua entrada era constituída de enormes blocos de cimento branco, que com o tempo ficam acinzentados devido à poeira. Grandes pilastras de um material que lembrava o marfim sustentavam o teto da entrada em formato de triângulos.

À primeira vista, toda a estrutura da entrada parecia ter aproximadamente vinte metros de altura. Não era possível ter uma dimensão da largura, pois o templo parecia ter sido envolto pela caverna junto aos musgos. Era como se, após erguido, alguém o tivesse enterrado e o tempo cuidado do resto.

— Hunmm... Estranho. Isso parece estar aqui há muito tempo, porém a construção não me remete a nada tão antigo — disse Cázhor avaliando a entrada.

Estavam extremamente cansados. Os músculos inchados e doloridos pediam descanso e um bom remédio, mesmo que paliativo, para a dor.

— Bom, vou dar uma olhada nas proximidades, ver se é seguro — disse Eduardh enquanto examinava brevemente o lugar, em busca de alguma armadilha.

Era tudo muito escuro, frio e nada convidativo, mas não apresentava nenhuma hostilidade. Depois de tantos percalços, o elfo estranhava o momento de paz.

“Finalmente!” O elfo estava aliviado.

Mais à frente, Cázhor identificou alguns cristais em um grande salão, ainda próximo à entrada. Ector o acompanhava para garantir sua segurança, caso algo inesperado acontecesse novamente. O guerreiro olhava intrigado, como se estivesse prestes a perder a paciência por observar o mago encarar os cristais por tanto tempo.

— Esses cristais são diferentes dos que vimos até agora. Eles não têm nenhuma fonte própria de luz. É algo mais... artificial. Precisam de algum tipo de ignição — disse o mago, extasiado.

Os demais estavam distraídos, aguardando a ação do mago. Até que, de repente, seus olhos se contraíram ao se encontrar com uma luz que, repentinamente, começou a emanar de todos os cristais do salão. Assustados, todos imaginaram que poderia ser algum inimigo ou armadilha que se ativou com a presença deles.

— Fiquem tranquilos. Como eu imaginava, esses cristais precisam de magia aplicada diretamente a eles para funcionarem — ele continuava, sem esboçar nenhuma reação — tudo que fiz foi armazenar um pouco da minha própria essência e distribuir em todos os cristais para iluminar um pouco o ambiente.

Por mais simples que aquelas palavras pudessem parecer, era de se impressionar como ele havia descoberto tão rápido. Sem contar que não lhe afetou em nada, ter dispersado assim sua magia. Os cristais emitiam uma luz diferente. Um tom fraco e levemente amarelado, dando um aspecto um pouco mais claro. Ainda assim, mesmo diante da grandeza do lugar, eram insuficientes para iluminar todos os cantos.

Mais abaixo do que, supostamente, era o salão principal, notava-se uma grande escadaria, que seguia ainda mais para baixo. O grupo já se questionava em qual profundidade estariam. Estavam exaustos, com fome e com sono. Era arriscado continuar sem nenhuma pausa para descansar.

— Quanto tempo será que já se passou desde que entramos aqui? — disse Ector.

— É estranho como perdi a noção do tempo aqui. — disse Cázhor.

— Uns quatro ou cinco dias? — continuava a questionar o guerreiro.

— Não sei bem-dizer, Sr. Brugnar. Estou um pouco confuso. Provavelmente, o cansaço ou a forte magia natural dessa caverna estão influenciando minha percepção. Não tenho certeza, mas essa é a menor de nossas preocupações.

Os guerreiros, então, se encarregaram de armar as barracas, enquanto Cázhor averiguava o que lhe sobrou dos suprimentos mágicos. Lenna ainda se sentia estranha com o descontrole do fluxo de sua magia, então preferiu fazer alguma coisa mais leve e preparar algo para comerem com o que sobrou dos mantimentos.

Eduardh, vagarosamente, ainda avaliava o lugar na tentativa de encontrar algo que fosse de utilidade para eles. Estava fraco, o selo havia sugado mais do que imaginava de sua magia. Mesmo com a poção do mago, a ferida causada pelo Cérbero ainda precisava de cuidados. A velocidade com que a cicatrização acontecia era impressionante, mas a gravidade da ferida ainda era preocupante.

Com os cristais, agora acesos, era possível ver que, mais ao fundo, próximo às escadas, havia duas pequenas entradas laterais, uma de cada lado. Apesar de suas condições, Eduardh resolveu investigar. Como seu arco não era tão eficaz em locais apertados, empunhou uma espada curta e silenciosamente avançou pelo estreito corredor mal iluminado, chegando a uma pequena sala.

A porta estava aberta, adentrando furtivamente, logo constatou que não havia inimigos. A sala era circular, preenchida de móveis feitos de uma espécie de madeira clara, algumas estantes vazias, além de um carpete ruído e empoeirado, nada que chamasse a atenção. Logo à frente, Eduardh avistou outra porta. Estava semiaberta, dava acesso a outra sala idêntica à que ele estava.

“Um depósito?”

Alguns baldes de madeira amontoados, bacias, vassouras, pilhas de papéis e canetas de tinteiro, outra sala que deixava a desejar, sem nada que desse para se aproveitar.

“Bom... ao menos agora temos material para alimentar a fogueira.”

Estava ficando cada vez mais frio. Era de extrema importância manter a temperatura e aproveitar estarem próximos a um local mais aberto, pois assim a fumaça não iria atrapalhar tanto. Momento ideal para montar o acampamento.

O lugar parecia abandonado há um bom tempo. Nada indicava que alguém passou por ali, há umas boas décadas, ou até mesmo séculos.

— Droga! “Só mais um pouco”. O elfo insistia.

A densa massa de magia espalhada pelo ar, estava afetando cada vez mais o elfo. Seu atual estado fazia com que sua resistência diminuísse consideravelmente. Sentia uma dor agonizante que pulsava de seu ombro, desde que se forçou a teleportar para proteger Lenna. Eduardh tentava não deixar transparecer que isso o afetava tanto, não queria trazer mais preocupação ao grupo. Ele estava pálido, aparentemente sua energia era sugada toda vez que tentava usar sua magia para teleportar, precisava descansar quanto antes.

Eduardh ainda estava na busca de mais salas no hall principal, mas oscilava entre um passo e outro. Se apoiava algumas vezes na parede ao seu lado para evitar perder o equilíbrio. Quando estava ao alcance da visão dos demais, se esforçava para manter as aparências. Finalmente, ao chegar ao outro lado do grande salão, viu que havia uma entrada idêntica à que ele a pouco estava. Diferente da anterior, essa sala tinha uma grande fonte próxima à parede ao fundo e enormes bancos empoeirados de pedra lapidada, com alguns restos do que pareciam ser almofadas.

Estranhamente, a fonte estava funcional. A água caía com tanta delicadeza que mal podia se ouvir, o que era estranho, pois era uma quantidade considerável. A figura que segurava o jarro o intrigava. De dentro do vaso, a água parecia brotar. O curioso era que ela não transbordava. Talvez houvesse alguma fissura no fundo da fonte, por onde a água se dissipava.

No centro, havia uma figura de mulher feita aparentemente de mármore. Com curvas delicadas, longos cabelos ondulados e envolta por rosas. De olhos fechados, estava sentada sobre suas pernas, em cima de algo que lembrava um pedestal. Estava encantado com tamanhos detalhes daquela escultura, considerando que não era fácil achar escultores tão talentosos a esse ponto nos reinos.

Curiosamente, a fonte em si estava totalmente limpa, chegando a destoar de qualquer parte do templo que ele havia visto até agora. A água parecia potável e cristalina. Era difícil imaginar que algo, além de magia, explicaria o que via ali.

Um repentino apagão findou seus pensamentos. O cansaço havia batido forte, fazendo-o sentar no banco empoeirado, respirando fundo para aliviar a sensação de falta de ar.

“Eu preciso... fazer alguma coisa antes de...” pensou até que o vazio tomasse conta.



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