Volume 3
Capítulo 127: Plano B
A noite começava a envolver a mansão Flamel com sua penumbra tranquila, refletida pelas paredes brancas e os lustres dourados. Areta estava sentada à cabeceira da grande mesa de jantar, ereta e inabalável como sempre. À direita, Rupert permanecia em silêncio, cortando a carne no prato com movimentos calculados. À esquerda, Rufus, com seus nove anos, comia lentamente, quase sem fazer barulho, olhando para o prato como se esperasse permissão para existir. O ambiente era preenchido apenas pelo tilintar dos talheres contra a porcelana, um silêncio pesado que parecia ser regra naquela casa.
O mordomo entrou no salão com passos firmes, curvando-se ligeiramente antes de anunciar:
— Senhora Areta, seu convidado chegou.
Areta ergueu apenas uma das mãos, sinalizando que ele o trouxesse.
Rupert franziu o cenho e perguntou, com uma voz ríspida:
— Que convidado, Areta?
— Vai vai descobrir — Ela respondeu sem sequer desviar os olhos de sua refeição.
O mordomo saiu e, alguns momentos depois, retornou acompanhado de Randalf. Ele entrou no salão com passos firmes, mas não conseguiu evitar que seus olhos vagassem pelo ambiente. As lembranças o atingiram como um golpe: aquela mesa, aquele cenário... ele mesmo já estivera na posição de Rufus, pequeno e submisso diante do imponente olhar da mãe. Quando seus olhos se cruzaram com os do irmão, um sorriso caloroso brotou em seu rosto, contrastando com a frieza da sala.
— Rufus, este é o seu irmão, Randalf. — Areta falou com uma naturalidade desconcertante. — Ele veio conhecê-lo. — Sem dizer mais nada, ela voltou a comer.
Rupert se levantou abruptamente, empurrando a cadeira para trás com um ranger irritante.
— Tá de brincadeira? — vociferou, apontando para Randalf. — O que ele faz aqui? No dia em que saiu de casa, ele renegou o nome Flamel! O verdadeiro irmão de Rufus morreu naquele dia. O que vejo aqui é um impostor.
Areta largou os talheres, levantou o olhar e disse com firmeza:
— Cale-se!
Rupert tentou sustentar o olhar da esposa, mas algo mudou. Uma onda de pressão espiritual emanou dela, como um manto de autoridade absoluta, esmagando o ar ao redor, ela havia acionado sua presença soberana. Rufus, ainda pequeno e despreparado para tal força, começou a ofegar, agarrando-se ao encosto da cadeira. Rupert percebeu o aviso claro. Apertando os punhos, lançou um último olhar de ódio a Randalf antes de sair, colidindo de propósito com o ombro do filho mais velho.
— Não me espere, Areta. Não dormirei aqui esta noite — declarou, desaparecendo pela porta.
Areta o ignorou completamente, retomando a refeição. Randalf, por sua vez, aproximou-se de Rufus, sentando-se ao seu lado. Piscou para o menino, quebrando o clima pesado com um sorriso acolhedor.
— E aí, irmãozinho. Prazer em conhecê-lo. Eu sou Randalf. E você?
Rufus olhou para a mãe, buscando permissão, mas Areta continuou comendo, alheia à troca de olhares. Finalmente, tímido, ele respondeu:
— Sou Rufus...
Randalf manteve a conversa fluindo, fazendo perguntas simples e acessíveis, criando um ambiente leve. Rufus, antes tímido, logo começou a sorrir e falar com entusiasmo, imerso no carisma natural do irmão.
Após o jantar, os três se dirigiram ao jardim iluminado por lanternas de cristal. O aroma das flores noturnas pairava no ar, trazendo uma sensação de serenidade. Enquanto tomavam chá, Areta finalmente quebrou o silêncio:
— Então, Randalf. Como conseguiu avançar tanto em sua pesquisa... e ainda curar aquela mulher?
Randalf retirou um caderno de anotações do bolso e o entregou. Areta folheou as páginas com olhos atentos, absorvendo cada detalhe. Quando terminou, devolveu o caderno e falou, com uma rara honestidade:
— Estou impressionada. Você superou minhas expectativas. Nunca pensei que chegaria a esse nível sem minha orientação.
Rufus olhou para o irmão com ainda mais admiração. Ele sabia que arrancar um elogio da mãe era um feito monumental.
— Sem a senhora foi difícil... Mas eu consegui. Agora quero finalizar minha pesquisa e administrar a universidade. Para isso, gostaria de vir mais vezes, pedir conselhos. Sei que está aposentada e tem mais tempo livre. Se não se importar... — Randalf respondeu com ternura.
Areta hesitou. Sua xícara tremulou levemente antes de ser colocada de volta à mesa. Colocando a mão sobre os olhos, ela murmurou:
— Já está tarde, Randalf. Leve seu irmão ao quarto dele e vá para casa.
Randalf se aproximou de Rufus e o guiou até o interior da mansão. Quando estavam prestes a sair, Areta chamou:
— Randalf...
Ele se virou.
— Fique com minha antiga sala na universidade. Lá há um laboratório secreto. Você é inteligente o suficiente para descobrir como acessá-lo. Depois que conseguir, venha até aqui e me devolva uma runa que deixei lá.
Randalf sorriu, compreendendo o que aquilo realmente significava. Era a forma de sua mãe dizer que ele poderia visitá-la novamente.
— Entendido, mãe.
Depois de levar Rufus ao quarto, Randalf o convidou para passear no parque no dia seguinte. O menino assentiu com entusiasmo, claramente feliz com a ideia de passar mais tempo com o irmão.
De volta ao jardim, agora vazio, Areta permaneceu sentada. A mansão estava em silêncio, mas dentro dela, algo fervilhava. Colocando a mão sobre os olhos, permitiu que as lágrimas finalmente caíssem. Apesar de tudo, as palavras de Randalf haviam alcançado seu coração.
"Randalf... Meu filho, finalmente se tornou o verdadeiro herdeiro do clã Flamel", murmurou para si mesma, antes de se recompor e erguer o rosto, novamente a figura imponente que todos conheciam.
O tempo parecia fluir como um rio tranquilo, mas cheio de curvas imprevisíveis. Leonora havia se estabelecido como uma professora respeitada na universidade e, durante as frequentes viagens de Randalf, assumia a posição de reitora substituta.
Randalf, por sua vez, tornara-se uma presença mais constante na casa de sua mãe. A relação entre ele e Rufus prosperava, como um jardim que finalmente recebia a atenção necessária. Até mesmo com Areta, ele conquistara uma proximidade, ainda que envolta no jeito reservado e imponente da matriarca. Mas Rupert, implacável em sua recusa, permanecia uma sombra de ressentimento na família, recusando-se a aceitar Randalf de volta.
Durante uma dessas viagens de Randalf que o destino trouxe de volta à universidade uma antiga conhecida: Kassandra. Neste momento, Leonora a aceita como professora, elas fazem as pazes e Leonora firma uma forte amizade com Kassandra e sua filha, Cassie. Ao ver a forte relação de Cassie e Kassandra, Leonora foi invadida por uma emoção arrebatadora, algo novo e poderoso. Naquela noite, conversou com Randalf, e juntos decidiram que também teriam um bebê.
Alguns meses depois, Areta estava na sala de Randalf. Os dois conversavam de forma formal, como sempre, sobre os rumos da universidade.
— A nova ala de pesquisa precisa de um financiamento maior, mãe. A tecnologia rúnica está evoluindo rápido demais para ficarmos para trás. — disse Randalf, enquanto ajustava os papéis na mesa.
Areta assentiu com um aceno lento, mas antes que pudesse responder, a porta se abriu. Leonora entrou com um maço de documentos nas mãos, sem perceber que Areta estava lá. Ao notar a presença da sogra, hesitou, mas não recuou.
— Senhora Areta. — Leonora inclinou levemente a cabeça em um cumprimento educado.
Areta a olhou de cima a baixo, como se estivesse julgando cada fibra de seu ser, mas, para a surpresa de Leonora, respondeu com um leve e relutante aceno de cabeça.
— Eu só vim entregar esses documentos ao Randalf. Não quero interromper. — Leonora começou a se afastar, mas Randalf a chamou.
— Espere, Leonora. — Ele então olhou para a mãe, sorrindo. — Mãe, há algo importante que precisamos contar.
Areta franziu o cenho, curiosa.
— Leonora está grávida. Vamos dar continuidade ao clã Flamel.
Por um momento, Areta pareceu petrificada. Seus olhos se voltaram para Leonora, que segurava a barriga com ambas as mãos, como se quisesse proteger a vida que crescia ali. A matriarca caminhou lentamente até Leonora, o som dos passos ecoando na sala silenciosa. Parou em frente à nora, analisando-a profundamente.
— É verdade? — perguntou com a voz baixa, mas carregada de peso.
Leonora assentiu, apertando ainda mais a barriga. Areta estendeu a mão, tocando levemente o ventre da nora. A frieza em seu semblante cedeu por um instante, dando lugar a algo próximo à ternura.
— Parece que você encontrou as respostas para aquelas perguntas que lhe fiz naquele dia... — murmurou, antes de se afastar. — Ainda não consigo digerir você com o meu filho, mas... sou capaz de admitir que será uma mãe melhor do que eu fui. Nesse aspecto, você já me superou.
Ela virou-se para a porta.
— Podem continuar aqui. Eu já estou de saída. — disse, saindo sem olhar para trás.
Sete meses depois, Leonora dormia ao lado de Randalf quando uma dor aguda a despertou. Ela se levantou rapidamente, sentindo algo errado. Ao olhar para o chão, um grito rasgou a madrugada.
— NÃO! — berrou, enquanto lágrimas inundavam seu rosto.
Randalf acordou assustado, mas ao perceber o que estava acontecendo, sua expressão de horror se igualou à dela. O chão e a cama estavam cobertos de sangue, e a barriga de Leonora, que antes estava arredondada, agora parecia vazia.
No hospital, o diagnóstico foi devastador. O bebê havia sido desintegrado, um efeito colateral do retorno da doença de Leonora e da supressão mágica do colar que a mantinha estável.
— Sinto muito — foram as palavras do médico.
De volta para casa, Leonora desabou em lágrimas incontroláveis, enquanto Randalf permanecia ao lado dela, forte e silencioso, reprimindo qualquer sinal de fraqueza. Kassandra estava lá, aguardando para prestar apoio. Randalf pediu que ela cuidasse de Leonora enquanto ele saía para resolver algo urgente.
Randalf correu até a casa de sua mãe. Ele bateu na porta com força, quase arrombando. Areta abriu a porta com um semblante rígido, mas ao ver o estado do filho, arqueou as sobrancelhas.
— O que faz aqui a essa hora? — perguntou com o tom habitual de desdém.
Randalf caiu de joelhos, o rosto desfeito em lágrimas.
— Leonora... ela perdeu o bebê... e a doença voltou. — Ele engasgou entre os soluços.
Areta cruzou os braços, preparando-se para uma reprimenda cruel sobre suas escolhas, mas antes que ela pudesse falar, Randalf, desesperado, lançou-se contra ela, abraçando-a com força.
— Mãe, por favor... só me abraça. — suplicou.
Areta congelou. A expressão de severidade foi substituída por algo mais humano. Ela lentamente passou os braços ao redor dele, acariciando seus cabelos. Pela primeira vez na vida, a matriarca Areta Flamel ofereceu ao filho um gesto de conforto. Um pequeno milagre em meio à tragédia.
Na casa de Randalf e Leonora, o ambiente era envolto em um silêncio pesado, quase tangível. A pequena sala de estar estava mal iluminada, com apenas o brilho brando do entardecer atravessando as cortinas. Leonora estava sentada em uma poltrona, segurando uma xícara de café que parecia aquecer mais as suas mãos do que a sua alma. Randalf estava de pé, encostado na parede ao lado da janela, com os braços cruzados e o olhar perdido. Ambos exibiam expressões abatidas, marcadas pela dor e pela desesperança.
Leonora tomou um gole de café, tentando reunir coragem para romper aquele silêncio sufocante.
— Será que Lemyria seria capaz de criar outro colar? — perguntou, sem conseguir olhar para Randalf.
— Impossível. — Randalf suspirou, sem desviar os olhos da janela. — Ela foi bem clara... aquilo foi o limite do que ela podia fazer. E se o seu corpo o rejeitou... não há mais nada a fazer.
Leonora desviou o olhar, sua voz saindo trêmula.
— Perdão, amor... — murmurou. — Eu não queria te fazer passar por isso. Se quiser procurar outra pessoa... eu vou entender.
Randalf virou-se imediatamente, a testa franzida em indignação.
— Não fale besteiras, Leonora! — exclamou. — Você não tem culpa disso. Não vou desistir de você. Deve haver alguma forma de te curar...
Leonora soltou um riso amargo, encarando o líquido na sua xícara.
— Uma cura... — repetiu. — Eu já desisti de ter esperança nisso, Randalf. Para me livrar disso, só renascendo... em outro corpo.
As palavras dela ecoaram pela sala. Randalf congelou, os olhos arregalados enquanto sua mente disparava em uma cadeia de pensamentos frenéticos. Ele levou a mão à boca, tentando processar a ideia que acabara de surgir.
— Randalf? — chamou Leonora, confusa ao notar a mudança súbita no marido. — O que foi?
— O plano B... — murmurou ele, quase inaudível.
— Plano... o quê? — Leonora estreitou os olhos.
Sem responder, Randalf virou-se e disparou para o quarto. Ele retornou segundos depois com um caderno de anotações desgastado e o abriu sobre a mesa. Começou a rabiscar freneticamente, linhas de cálculo e diagramas surgindo em uma velocidade impressionante.
— Randalf! — Leonora se levantou, deixando a xícara sobre a mesa. — Me explica agora o que tá fazendo!
Ele ergueu os olhos, o semblante iluminado por uma determinação quase insana.
— Leonora, eu não preciso encontrar uma cura para o seu corpo! O que preciso é... criar outro corpo para você!
— Outro corpo? — Leonora deu um passo para trás, chocada.
Randalf se aproximou, os olhos brilhando com excitação.
— Sempre considerei criar um homúnculo como plano B para sua doença — explicou ele, quase sem fôlego. — Mas meu erro foi tentar criar um corpo humano do zero, só com elementos químicos. Isso é impossível! Mas... se eu partir do espiritual para o material...
— Espiritual para o material? — Leonora parecia ainda mais confusa.
— Sim! — exclamou Randalf. — Vou criar um homúnculo usando o seu espírito como base. Um corpo idêntico ao seu, mas sem a doença. Depois, transfiro a sua alma para ele. Assim, você ficará livre disso... para sempre!
Leonora levou a mão ao peito, assustada.
— Randalf, isso é loucura! Como você vai fazer isso?
— Criar o homúnculo? Eu sei como. Transferir sua alma... — Ele fez uma pausa. — Isso será o segundo passo.
Determinada a pôr o plano em prática, Randalf colheu amostras do DNA de Leonora e selou uma manifestação de seus poderes em uma runa especial. Em seguida, saiu apressado, dizendo que precisava concluir os preparativos no laboratório.
Três dias depois, Leonora estava inquieta. Randalf havia desaparecido desde que saiu apressado para a universidade, e ela já não sabia o que pensar. A angústia crescia a cada minuto até que, sem alternativa, foi até a casa de Areta.
Ao chegar, encontrou a sogra cuidando de seu jardim. Areta ergueu os olhos, imediatamente franzindo o rosto em desagrado.
— O que faz aqui? Sabe que não é bem-vinda. Me dê um bom motivo para eu não expulsá-la agora mesmo.
Leonora respirou fundo, ignorando a hostilidade.
— Senhora Areta... Randalf foi ao laboratório secreto na universidade para trabalhar em sua pesquisa, mas já faz três dias que ele não volta.
Areta estreitou os olhos, mas algo na preocupação de Leonora a desarmou.
— O que? — perguntou, desta vez com um tom mais sério. — Três dias?
— Ele... ele não deu notícias. — Leonora assentiu, com a voz embargada.
Areta suspirou, limpando as mãos no avental.
— Vá para casa. Eu sei onde fica. Esse laboratório era meu. Vou trazê-lo de volta.
Leonora hesitou, mas acabou concordando. Areta foi direto para a universidade, o coração acelerado enquanto descia até os níveis inferiores do prédio. Ao entrar no laboratório secreto, ela parou subitamente, chocada com o que viu.
Randalf estava de pé, rindo triunfante. Diante dele, deitada em uma mesa de metal, estava o corpo de uma mulher idêntica a Leonora. Ele virou-se para a mãe, os olhos cheios de excitação.
— Eu consegui, mãe! — disse, quase eufórico. — O homúnculo perfeito!