Luvas de Ifrit Brasileira

Autor(a): JK Glove


Volume 3

Capítulo 122: Belo e a Fera

Na sala de jantar, Leonora entrou com passos hesitantes e se deparou com uma luxuosa mesa comprida, preparada com talheres de prata e porcelana brilhante. Areta, Rupert e Randalf estavam já sentados, cada um mantendo uma certa distância do outro, como se o espaço entre eles refletisse uma frieza contida. Leonora, ainda tímida, aproximou-se para se sentar ao lado de Areta, mas foi imediatamente advertida.

— Sente-se mais para longe, Leonora — disse Areta, ajeitando um guardanapo de linho ao lado do prato. — Eu gosto de espaço.

Constrangida, Leonora escolheu uma cadeira mais ao meio da mesa, onde ficava de frente para Randalf. Ele lhe deu um aceno rápido com a mão, um sorriso amigável esboçado nos lábios, mas ela desviou o olhar para o chão, intimidada, e evitou o contato visual. O silêncio que pairava entre os três era quase palpável, carregado de formalidade, e logo todos começaram a comer, sem trocarem uma única palavra. Aquilo incomodava Leonora, que se sentia como se estivesse entre completos desconhecidos.

Desajeitada, Leonora pegou um escargot com o garfo, mas, ao tentar comê-lo, um pedaço escapou e voou direto na direção de Rupert, acertando sua cabeça. Ela ficou instantaneamente vermelha de vergonha, enquanto Randalf não conseguiu conter uma risada abafada. Rupert lançou-lhe um olhar severo e, irritado, levantou-se da mesa.

— Francamente, garota — resmungou ele, ajeitando o paletó com um gesto impaciente antes de sair da sala.

— Tenha modos, Randalf — repreendeu Areta, em um tom severo, antes de voltar sua atenção para Leonora. — Amanhã começaremos os experimentos com você.

Leonora engoliu em seco e assentiu, nervosa.

Mais tarde, enquanto caminhava pelos corredores luxuosos e frios da casa à noite, ela acabou se perdendo. Tentando encontrar o caminho de volta, deu de cara com Randalf, que a observava com um sorriso no canto dos lábios.

— Perdida? — ele perguntou com um olhar curioso. — Seu quarto fica para o outro lado.

— Eu... me confundi. Desculpa — murmurou Leonora, desviando o olhar, mas Randalf se colocou ao seu lado e a acompanhou.

— Por que tá me acompanhando? — perguntou ela, encolhendo-se um pouco e tentando esconder o rosto atrás da franja.

— Quero garantir que vai acertar o seu quarto desta vez — disse ele, em um tom despreocupado.

— Não é necessário — retrucou Leonora, tentando soar firme. — Eu já aprendi.

— Se tiver achando ruim, o que vai fazer? Me expulsar daqui? — brincou ele, arqueando uma sobrancelha e rindo levemente.

Leonora riu timidamente, cobrindo a boca para disfarçar o sorriso, mas Randalf percebeu.

— Não deveria esconder esse sorriso — disse ele, num tom suave. — É muito lindo para ficar escondido.

Chegando à porta do quarto, Leonora hesitou, com a mão na maçaneta, e o olhou com uma expressão séria.

— Randalf, não sei por que está sendo tão gentil comigo. Sua mãe foi muito clara ao dizer que eu não deveria desenvolver nenhum tipo de vínculo com você. Para o meu próprio bem, acho melhor evitarmos contato.

Randalf pôs as mãos para trás, pensativo, e sorriu de forma enigmática.

— Talvez você tenha razão... Mas me responda, acha que conseguirá suportar os experimentos da minha mãe sozinha? Pelo seu próprio bem, acho que deveríamos manter contato — disse, piscando o olho de maneira quase conspiradora.

Leonora mordeu o lábio, dividida entre a razão e o impulso de confiar em Randalf.

— Boa noite, Randalf — murmurou ela, e então entrou no quarto, trancando a porta atrás de si. Um leve sorriso lhe escapou, e ela sentiu seu coração aquecer com aquele breve momento.

Na manhã seguinte, Areta levou Leonora até um laboratório frio e impessoal que ficava dentro da própria mansão. O ambiente era repleto de instrumentos de vidro, bisturis, e diversos tipos de frascos que exalavam odores desconhecidos. Areta indicou uma maca metálica no centro da sala.

— Deite-se e tire a roupa — ordenou sem rodeios.

Leonora engoliu em seco, hesitante, mas obedeceu. Sentiu o frio da superfície da maca contra a pele e o peso do olhar clínico de Areta sobre cada centímetro do seu corpo. Areta começou uma sequência rigorosa de exames, avaliando cada parte do corpo de Leonora com bisturis rúnicos que brilhavam ao toque, coletando amostras de sangue e a posicionando entre complexos círculos rúnicos que irradiavam uma luz azulada.

Após horas de experimentos minuciosos, Areta preparou uma solução esverdeada e a ofereceu a Leonora.

— Beba.

Leonora hesitou, mas sob o olhar severo de Areta, levou o líquido amargo aos lábios. Imediatamente, um grito de dor escapou de sua garganta, enquanto sentia seu sangue queimar como fogo líquido. A dor era insuportável, e ela contorceu-se na maca, implorando para Areta parar.

— Tenha paciência, garota — disse Areta friamente, observando-a como se fosse um simples objeto de estudo. — Essa solução está drenando seu poder mágico de forma temporária. Os efeitos colaterais passarão em breve. Aguente firme.

As palavras de Areta eram frias e cortantes, e Leonora sentiu sua consciência escapar conforme a dor aumentava. Sua visão escureceu, e então ela desmaiou. Areta observou atentamente e pegou um pequeno pássaro do laboratório, tocando-o suavemente na bochecha de Leonora. O pássaro, para sua surpresa, não se desintegrou.

— Interessante... Parece que seus poderes se desligam enquanto está inconsciente — murmurou Areta, anotando meticulosamente as observações em um caderno.

Alguns minutos depois, Leonora acordou, ainda grogue e com o corpo trêmulo.

— Senhora Areta... — sussurrou ela, com a voz fraca. — O que exatamente a senhora está pesquisando?

Areta se inclinou na poltrona ao lado, cruzando os braços.

— Quando falamos de intelecto. Alguns humanos nascem com uma capacidade intelectual impressionante, são os chamados gênios. De maneira similar ocorre com quem nasce com aptidão de manipulação mágica, alguns nascem com poderes excepcionais — o que chamamos de prodígios. Mas, entre esses prodígios, existe um grupo raro que apresenta uma disfunção, uma espécie de “falha” que faz com que seus poderes permaneçam constantemente ativos. É o seu caso.

— No final disso tudo... — Leonora olhou para Areta com um brilho de esperança nos olhos. — Eu serei curada?

— Curada? — Areta soltou um riso seco. — Não seja tola. Não estou buscando uma cura. Minha pesquisa não é para você, é para mim. Quero entender por que essa disfunção ocorre, e se encontrar a resposta, terei o conhecimento necessário para alcançar a reitoria da Universidade Flamel.

As palavras de Areta foram como um golpe, esmagando qualquer esperança que Leonora ainda nutria. Seus punhos se fecharam em desgosto, e uma lágrima solitária escapou, escorrendo pelo rosto pálido.

— Não há tempo para choro, garota. — Areta suspirou, impassível. — Vamos continuar com a pesquisa.

Leonora respirou fundo, enxugou a lágrima com a manga, e assentiu, sentindo o peso de seu destino nas mãos impiedosas de Areta.

Areta continuou os experimentos e terminou os últimos ajustes e, ao olhar para o relógio, percebeu que estava atrasada para a Universidade. Colocou cuidadosamente uma maleta com amostras de sangue de Leonora sob o braço e, com uma expressão de frieza habitual, anunciou:

— Estou indo à Universidade. Terminarei minhas pesquisas no laboratório de lá.

Leonora tentou se levantar da maca, mas, com o corpo tomado por um frio intenso, suas pernas fraquejaram. Com um suspiro de pânico, caiu no chão e murmurou, a voz trêmula e desesperada:

— Eu... não estou sentindo as pernas, senhora Areta!

Areta olhou de relance, sem um pingo de compaixão.

— Não precisa choramingar. A dormência e o frio são efeitos passageiros; logo, logo, vai passar. Até lá, faça o que quiser no restante do dia.

— Senhora, onde estão minhas roupas? Não as vejo em lugar nenhum. Pode trazê-las para mim? Estou com muito frio — comentou Leonora tremendo os queixos de frio.

— Não sou sua empregada, criança. Quanto as suas roupas foram desintegradas... Seu poder também pode atingir coisas inanimadas... contudo, essa característica não foi repassada pela doença, precisando de certos estímulos para ser ativada, por sua sorte...

— Senhora, estou nua e com muito frio. Por favor...

Sem mais explicações, Areta saiu, deixando Leonora sozinha no laboratório, nua e tremendo de frio. Incapaz de controlar as lágrimas, ela se encolheu sobre si, os soluços abafados na sala vazia. Alguns minutos depois, passos leves ecoaram pelo corredor, e Randalf entrou. Ao vê-la naquele estado, seus olhos se arregalaram de preocupação.

— Leonora! — Ele rapidamente pegou um cobertor e o colocou em volta dela, que se encobriu, ainda tentando evitar o olhar dele, com vergonha.

 

 

Com um gesto gentil, Randalf se afastou e voltou com uma xícara de chocolate quente, que ela aceitou com as mãos trêmulas. Sentou-se ao lado dela, e com um sorriso reconfortante, disse:

— Eu te avisei... se quer sobreviver aos experimentos da minha mãe, vai precisar de ajuda.

Ela tomou um gole, sentindo o calor do chocolate aliviar o frio e respondeu, com um fio de voz.

— Eu... só queria ser normal. É pedir demais? Por que eu tive que nascer assim... quase como se fosse amaldiçoada.

Randalf suspirou, olhando para frente como se buscasse as palavras certas.

— Não sei te responder, Leonora. Mas... para toda pergunta existe uma resposta, mesmo que esteja bem escondida. Só precisamos nos esforçar para encontrá-la.

O tempo passou, e enquanto os experimentos de Areta continuavam, a relação entre Leonora e Randalf florescia. Mesmo que não pudessem se tocar, a conexão entre eles crescia. Leonora também começou a frequentar a Universidade Flamel como aluna. Em uma tarde, após a aula, Randalf a chamou.

— Leonora, vai ter uma apresentação de patinação da Kassandra. Quer assistir comigo?

Hesitante, mas sem conseguir recusar, ela assentiu. Caminharam em direção ao local da apresentação, até que um aluno distraído esbarrou nela. O dedo dele tocou seu rosto e, num segundo, desintegrou-se diante dos olhos horrorizados do rapaz.

— AAAAAAH! Meu dedo! — gritou o aluno, em choque, enquanto todos ao redor a encaravam como se fosse uma aberração.

Leonora, desesperada, correu, ignorando os chamados de Randalf, que tentou segui-la. Ao longe, Rupert assistiu a cena com uma expressão severa e desaprovadora, destinada ao filho.

Leonora se escondeu em um balanço em uma praça deserta e ficou lá até o anoitecer, as lágrimas molhando o rosto. Quando Randalf finalmente a encontrou, sentou-se ao lado dela, ofegante.

— Você me deu uma canseira e tanto — disse ele, sorrindo, tentando aliviar o clima.

— Randalf... por que insiste em se importar comigo? Não vê que sou um perigo constante? Me deixa em paz antes que eu te machuque... como faço com todos que tentam se aproximar.

Randalf deu um sorriso triste e olhou para ela, com um tom carinhoso:

— Leonora, mesmo que você tocasse todo o meu corpo, não me machucaria mais do que já dói quando você recusa ficar do meu lado.

Ela chorou ainda mais.

— Randalf... não faça isso. Só me machuca mais. Você é perfeito... e eu, um monstro, uma fera destruidora de tudo que toca! Você não me merece.

Randalf, balançando lentamente, olhou para o céu e falou:

— Deixa eu te contar uma história... Havia um velho que devia algo a um monstro, e para saldar a dívida, o monstro quis tomar sua filha como pagamento. Mas ao conviverem juntos, a bela mulher e a fera se apaixonaram. Um dia, ela o beijou e... ele se transformou em um príncipe, revelando que estava sob uma maldição. No final, eles viveram felizes para sempre.

Leonora suspirou, triste:

— Nesse conto, você é a bela mulher, Randalf. E eu... sou a fera... Só que diferente deste conto, você nunca poderá me beijar e assim... essa maldição nunca será quebrada.

Randalf segurou a mão dela, coberta pela luva, e falou:

— Por que está tão certa de que esse é o final dessa história se ela ainda não acabou? Nos contos há sempre uma maneira de quebrar uma maldição... Eu te prometo que vou descobrir como. Farei a sua história terminar com um final feliz.

Com um leve sorriso, Leonora enxugou uma lágrima. Eles se perderam no silêncio, balançando de leve enquanto olhavam o céu, de mãos dadas.

 

 

Os dias se passaram, e finalmente Areta foi ovacionada na Universidade. Sua pesquisa fora concluída e ela assumiu o prestigiado título de Reitora da Flamel. Enquanto isso, Randalf e Leonora continuavam a passar tempo juntos, aproveitando os raros momentos de paz, longe da vigilância de Areta.

Numa noite, eles caminhavam pelo parque, quando passaram por uma árvore de caule grosso. Um som de estalo ecoou, e o tronco da árvore se abriu. Rupert saiu de dentro, os olhos fixos no casal à sua frente, observando cada passo e a proximidade cada vez maior entre eles.

Ele fechou o punho, o rosto marcado por uma expressão de ira contida.

“Não vou permitir que essa maldita arruíne a vida do meu filho, como Areta destruiu a minha”, ele murmurou para si. “Darei um fim a essa desgraçada... custe o que custar.”

 



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