Luvas de Ifrit Brasileira

Autor(a): JK Glove


Volume 3

Capítulo 121: Objeto Defeituoso

Alguns meses haviam se passado desde o evento fatídico. A manhã cinzenta no reino de Moferagne estava envolta em uma névoa densa, trazendo um ar de mistério. A professora Areta, com seus 42 anos, mantendo sempre com seu porte altivo e presença imponente, desceu do cavalo assim que chegou à taverna local.

 

 

Ela ajeitou o capuz para esconder parte de seus cabelos e seu cristal vermelho e adentrou o ambiente rústico, atraindo olhares curiosos e respeitosos. Seu destino era o balcão de atendimento de missões, onde homens e mulheres vinham para aceitar ou registrar pedidos de trabalho.

O atendente, um jovem de feições endurecidas pela vida, a observou se aproximar e perguntou, curioso:

— Como posso ajudá-la, senhora?

Areta deu um leve sorriso, avaliando o ambiente ao redor com um olhar que transparecia experiência e frieza.

— Ouvi rumores sobre uma jovem que, com um simples toque, desintegrou a própria irmã. Estou aqui para saber se isso é verdade... ou apenas mais um mito que os aldeões gostam de contar — sua voz era suave, mas carregada de uma autoridade implícita.

O atendente manteve o olhar sério e, sem dizer uma palavra, ergueu-se com a ajuda de uma muleta, apoiou a perna sobre o balcão e revelou a ausência de seu tornozelo. A pele ao redor estava marcada, lembrança dolorosa de um encontro traumático.

— E isso aqui... parece um mito para você? — perguntou ele, o olhar desafiador e a voz carregada de rancor.

Areta o encarou por um breve momento, esboçando um sorriso de canto.

— Onde ela mora? — indagou com seu interesse renovado.

O rapaz hesitou, seu olhar se tornando vazio, como se as lembranças estivessem bloqueadas.

— Depois que ela... desintegrou meu tornozelo... minha memória nunca mais foi a mesma.

Areta riu de leve, jogando um pequeno saco de moedas sobre o balcão.

— Esse é um bom remédio para memória. Use-o e leve-me até ela.

O atendente ponderou por um instante antes de pegar o saco, sentindo o peso em suas mãos. No fim do expediente, com as ruas já tomadas pelas sombras do entardecer, ele a conduziu em sua carroça pela estrada que levava à casa de Leonora. A tensão no ar era palpável, e o rapaz olhava para Areta com um misto de respeito e medo.

— Senhora, tome cuidado com essa garota. Ela pode ter cara de anjo, mas por dentro... é um demônio que destrói tudo que toca — disse, tentando dissuadi-la.

Areta soltou uma risada irônica, batendo nas rédeas do cavalo para apressá-lo.

— Já enfrentei demônios que você nem imagina que existam — respondeu, deixando o atendente sem mais argumentos.

Ao chegarem à propriedade, Areta desceu da carroça e se aproximou lentamente. No celeiro ao lado da casa, uma figura magra e algemada foi revelada com a porta se abrindo. Leonora estava encurvada, quase irreconhecível, o rosto marcado pelo sofrimento e o corpo debilitado pela falta de cuidados. Ela ergueu os olhos ao perceber a entrada de Normando, Edmunda e, atrás deles, Areta, que a observava com frieza calculada.

Edmunda desviou o olhar ao ver a filha naquela condição, mas Areta mantinha-se impassível.

— Como funcionam os poderes dela? — perguntou a professora, sem rodeios.

Normando, com um sorriso cruel, pegou um rato e o lançou sobre Leonora. A garota, instintivamente, ergueu as mãos para se proteger. Ao tocar o animal, este se desfez em poeira diante dos olhos de todos.

— Tudo o que ela toca... desintegra, desde que seja algo vivo — respondeu ele, orgulhoso de exibir o poder que tratava como uma maldição da garota.

Areta estreitou os olhos, analisando Leonora.

— Entendo… — murmurou. — E quanto você quer por essa garota?

— Minha filha não está à venda! — protestou Edmunda, atônita.

Normando, sem hesitar, olhou para Areta com um sorriso oportunista.

— Que tal mil rilds?

Areta soltou um saco de moedas que Normando pegou avidamente.

— Aí tem três mil. Fique com o troco. A partir de agora, ela é minha.

— O que vai fazer com minha filha? — Edmunda sussurrou, um sentimento de tristeza e arrependimento em seu olhar.

Normando, irritado com a insistência da esposa, desferiu um tapa no rosto dela, fazendo-a recuar com lágrimas nos olhos. Areta ergueu uma das mãos, criando uma barreira retangular de energia e empurrando Normando contra a parede, esmagando-o lentamente.

— Ela não terá uma vida fácil — respondeu Areta, olhando para Edmunda com frieza. — Mas, comparado a isso aqui... considere que ela viverá num castelo.

Edmunda olhou desesperada para o marido preso na barreira, vendo-o lutar inutilmente para se livrar. Ela se voltou para Areta, com medo e submissão.

— Por favor… solte-o. Eu não vou interferir... pode levar minha filha.

Areta, satisfeita, libertou Leonora das correntes. A garota cambaleou para frente, sem forças, mas com os olhos fixos em Normando. Ela ergueu a mão em sua direção, o olhar carregado de algo sombrio, um ressentimento que ela não conseguia mais conter. Normando, ainda preso na barreira, arregalou os olhos em desespero.

Antes que Leonora pudesse tocar Normando, Edmunda se interpôs entre os dois, erguendo os braços em súplica.

— Por favor, filha... não o mate. Sei que fizemos você sofrer, mas... eu não conseguiria viver sem ele. Eu imploro, deixe-o viver.

Leonora sentiu as lágrimas escorrerem, o rosto marcado pelo cansaço e pela mágoa. Ela abaixou lentamente a mão, deixando que a raiva se dissipasse em meio à tristeza.

— Mãe... apesar de tudo... eu te perdoo. Talvez esse perdão seja o único consolo que você ainda terá em vida... — sua voz soava fraca, melancólica, carregada de uma tristeza profunda. — Adeus.

Areta desfez a barreira, deixando Normando cair ao chão, sem forças. Com um último olhar para Edmunda e Normando, ela guiou Leonora para fora, ajudando a jovem a se afastar daquele lugar que a havia aprisionado por tanto tempo.

Na escuridão da noite, sob a luz da lua, Areta e Leonora partiram. Para onde iam, Leonora não sabia; mas, naquele instante, não importava. A única certeza era que, ao deixar aquela casa, ela estava finalmente se libertando das sombras do passado e cumprindo o desejo de sua irmã.

Depois de uma longa viagem, Areta e Leonora chegaram finalmente à imponente cidade-província de Meryportos, onde a jovem foi apresentada à gigantesca e luxuosa mansão de Areta. Leonora caminhava pelos corredores e jardins, boquiaberta com o esplendor do lugar. Seu olhar não conseguia evitar as peças decorativas de cristal e as tapeçarias refinadas que adornavam cada canto.

Enquanto atravessavam o jardim, perceberam a presença de um homem de aparência nobre, sentado em uma cadeira branca, com um jornal nas mãos e uma xícara de chá ao lado. Ele tomou um gole, fitou Areta e Leonora se aproximando, e levantou-se, caminhando na direção delas. Seus olhos fixaram-se na garota, e ele pôs a mão no queixo, analisando-a de cima a baixo com um ar curioso.

Areta não demorou a reagir:

— Deixe-a em paz, Rupert. Se eu souber de qualquer gracinha sua com ela, eu mesma te mato.

Rupert Flamel, esposo de Areta, 44 anos na época, era um homem de aparência imponente, principalemente em razão de seus olhos vermelhos e o cristal em sua testa, marca típica do clã Flamel. Tinha cabelos com corte social na cor preto e cavanhaque. Ele usava óculos retangulares e vestia um traje elegante e detalhado. Seu terno preto era adornado com intricados bordados dourados, que formavam padrões complexos e chamativos. Ele usava uma gravata vermelha vibrante, que contrastava com o restante de sua vestimenta, e um colete cinza escuro por baixo do paletó. Correntes douradas pendiam de seu colete, adicionando um toque de sofisticação ao seu visual. Rupert Flamel era conhecido por sua presença marcante e seu estilo impecável, sempre se destacando em qualquer ambiente em que estivesse.

 

 

Rupert deu uma gargalhada despreocupada.

— Essa é a forma de tratar o pai do seu filho? — provocou, com um tom sarcástico. — Só estou admirado que tenha deixado a sucessão de Muriel para trás para ir atrás dessa... garotinha frágil.

— Eu nunca quis ser uma guardiã, Rupert. — Areta o encarou friamente. — Minha pesquisa é muito mais importante do que essas trivialidades.

— Ainda bem. — Rupert balançou a cabeça, fingindo concordância. — Detestaria mudar para o arquipélago de Muram. Deixe isso para Tzadeq; ele sempre foi um obcecado com essas coisas.

Areta deu de ombros, mantendo sua postura rígida.

— Então ele venceu a sucessão de Muriel... Era esperado. Ele sempre foi dedicado.

Leonora, observando o diálogo, franziu o cenho. “De que diabos eles estão falando?”, pensou, confusa e ainda tentando compreender seu novo ambiente.

Rupert deu uma risada leve e continuou:

— Se dedicação fosse tudo, você teria levado essa sucessão facilmente.

— Não seja estúpido, Rupert — rebateu Areta, séria. — Eu nunca quis ter discípulos, nem por um momento me interessei por isso. Meu único objetivo é alcançar o topo da Universidade Flamel.

Rupert sorriu, sabendo que não mudaria sua postura.

— Claro. Uma megera como você sendo mestre... Nunca teria um único discípulo, muito menos sete — ironizou.

Antes que Areta pudesse responder, Randalf, com dezessete anos na época, aproximou-se deles. Ele caminhava mantendo o seu porte ereto e os olhos vermelhos brilhante que denunciavam sua linhagem. Ele olhou para Leonora, e os dois cruzaram olhares por um breve instante. Ambos ficaram levemente corados, como se aquela interação silenciosa revelasse mais do que gostariam de admitir.

Ainda incerto, o rapaz perguntou para sua mãe:

— Quem é essa jovem, mãe?

Areta respondeu, sem rodeios:

— Esta é Leonora. A partir de agora, ela está sob a minha proteção. Eu a comprei de seus pais. Ela vai morar aqui e me ajudar nas minhas pesquisas. E, a propósito, não toquem nela ou serão desintegrados.

Rupert arregalou os olhos, parecendo surpreso e incomodado.

— Você está louca, Areta? Como pode trazer essa... arma ambulante para casa? Se ela tocar em alguém por acidente, estaremos mortos!

Areta, impassível, disse:

— Apenas tomem cuidado. Se morrerem ou perderem um membro, é porque foram negligentes. A garota não vai tocar em ninguém de livre e espontânea vontade, e ela sabe que a morte será o menor de seus problemas se tentar algo. — Em seguida, virou-se para Leonora. — Venha, temos muito o que fazer.

Enquanto caminhavam pelos longos corredores da mansão, Leonora, ainda intrigada, perguntou:

— Professora, por que todos vocês têm esses olhos vermelhos e um cristal na testa?

— Pertencemos a um dos clãs místicos e recebemos a “bênção da Sílfide”. Apesar do nome, isso é mais uma maldição do que uma bênção — respondeu Areta após lançar um olhar seco na direção da jovem.

— Com todo o respeito, senhora, mas sua vida não me parece amaldiçoada. — Comentou Leonora após refletir sobre as palavras de sua nova tutora. — Muitas pessoas desejariam ter essa “maldição” que a senhora tem.

— Não fale idiotices. — Areta parou abruptamente e encarou Leonora com severidade. — Você não conhece meu passado, não sabe o que tive que sacrificar para chegar aonde estou. Diferente de você, eu não fiquei chorando pelos cantos; destruí tudo o que me puxava para baixo. Hoje, tenho uma vida confortável, e meu filho, Randalf, chegará a patamares ainda maiores.

— Por que a senhora fala isso por ele ser seu filho ou ele tem algo especial?

— Ele tem mais potencial que vai além do meu. E a sua determinação em conseguir algo é imbatível, algo que ele herdou de mim. — Areta deu um leve sorriso de orgulho. — Quem o conhece profundamente sabe que ninguém pode pará-lo quando ele deseja algo. De uma forma ou de outra, ele sempre consegue o que almeja.

Leonora esboçou um sorriso contido e comentou, sem pensar:

— Pelo que parece, a senhora tem sorte de ter um filho tão habilidos, dedicado... e bonito.

Areta parou, virando-se de repente, e uma barreira circular mágica emergiu ao redor de Leonora, comprimindo o espaço em que ela estava. Leonora sentiu a barreira pressionando seu corpo, sufocando-a. Desesperada, olhou para a professora, que a observava com um olhar gélido.

— Vamos deixar algumas regras claras, criança — disse Areta, fria. — Eu não serei sua mãe, mentora, tia, ou qualquer coisa do tipo. Não tenho afeto, compaixão, ou qualquer obrigação em relação a você. O que temos aqui é um acordo. Eu preciso de você para os meus experimentos, e, em troca, tirei você daquele inferno. Não pense em romantizar isso.

Leonora sentiu as lágrimas escorrerem pelo rosto, a barreira pressionando-a cada vez mais. Forçando as palavras, sussurrou:

— A senhora me tirou de um inferno... para me jogar em outro?

Areta sorriu, mas não de forma amistosa.

— Sim. Mas um inferno onde terá roupas de qualidade, pessoas para te servirem, comida farta e uma cama confortável. Saiba valorizar.

— Sim, senhora... Eu entendi... — respondeu Leonora, quase sem forças.

Areta desfez a barreira, e Leonora caiu ao chão, respirando com dificuldade, seus braços trêmulos tentando sustentá-la. Areta observou a cena e acrescentou, em um tom de aviso:

— Mais uma coisa, criança. Rupert, meu marido, não me interessa; ele é desprezível. Se quiser tocá-lo, seria um favor para mim. Mas Randalf... ele é diferente. Não tente interagir, se engraçar, ou desenvolver qualquer laço com ele. Você é apenas um objeto, defeituoso, mas útil. Saiba o seu lugar.

Leonora assentiu, tremendo de medo, sentindo que os olhos de Areta carregavam um ódio quase insano, capaz de atravessar sua alma.



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