Volume 3
Capítulo 119: Guerra Fria
O grupo, ainda com Clemência desacordada, adentrou a enfermaria da universidade ainda com o peso do confronto recente. Eles começaram a procurar desesperadamente por runas de cura, espalhadas em algumas prateleiras e gavetas. Ao encontrá-las, Kreik pegou uma e a estendeu para Rufus, que segurava o braço com uma expressão de dor contida.
— Aqui, use essa, Rufus — disse o ruivo, estendendo a runa.
Rufus balançou a cabeça e recusou com um sorriso amargo.
— Não vai dar, Kreik. As runas de cura têm limitações, elas não tratam automaticamente ferimentos graves. Se fosse uma simples torção, talvez funcionasse... mas eu literalmente quebrei a mão. — Ele suspirou, visivelmente frustrado. — Mesmo uma runa de cura de alto nível não cura imediatamente um osso quebrado ou um órgão interno lesionado, apenas acelera o processo de recuperação do corpo, cabendo apenas a própria força de vontade da pessoa fazer o resto.
Kreik observou a runa por alguns segundos, pensativo.
— Não sabia desse detalhe... — murmurou ele, lembrando-se do momento em que seu avô recusou uma runa de Mayumi, quando foi ferido pelo machado de Thorguen Brown. — Agora faz sentido...
Enquanto isso, Cassie se aproximou de Rufus com bandagens em mãos, decidida.
— Deixe que eu cuido disso, — disse ela suavemente, começando a enfaixar a mão machucada dele.
A alguns passos dali, Uji se aproximou de Kreik, observando o ferimento no abdômen do amigo.
— Levanta a camisa, deixa eu ver isso — disse Uji, com o olhar sério, mas calmo.
Kreik levantou a camisa, revelando um hematoma profundo e algumas marcas de corte. Uji examinou o ferimento e comentou:
— Você teve sorte, não foi letal, mas tá feio. Não se preocupe. Com a runa de cura e o fato de você ser um dominador, provavelmente estará cicatrizado amanhã.
Kreik assentiu, suspirando de leve. — Não foi sorte, Uji... O Poeta Fantasma disse que não queria nos matar, ele ainda precisa de nós vivos... por algum motivo.
Joabe, escutando a conversa, cruzou os braços com desdém.
— O que será que se passa na cabeça daquele maluco sádico? E a traidorazinha... o que ela quer com isso?
Cassie, que se apoiava na mesa ao lado, lançou um olhar de reprovação para Joabe.
— Ei, não fale assim da Prya! — protestou ela, com uma expressão séria.
— Ah, claro — Joabe revirou os olhos, descrente. —, ela quase nos mata, e você ainda a defende?
Cassie respirou fundo, tentando manter a calma.
— O próprio Poeta Fantasma disse que não queria nos matar, só nos capturar temporariamente. Eu sei que não foi certo o que Prya fez, mas tenho certeza de que ela não nos colocaria em perigo sem motivo.
Kreik colocou a mão no ombro de Joabe e falou com um tom ponderado:
— Joabe, a Cassie tem razão. Não esqueça do que aconteceu com Otto. Você o odiava, mas no fim, acabou se tornando amigo dele.
Joabe olhou para o chão, balançando a cabeça com um suspiro pesado.
— Vocês são muito ingênuos... — murmurou ele, frustrado.
Uji, então, se virou para Cassie com uma sobrancelha arqueada.
— Ei, Cassie, por que pediu para os três alí fechar os olhos durante sua técnica? — perguntou ele, curioso.
Cassie ficou visivelmente constrangida. Ela desviou o olhar e inclinou a cabeça, as bochechas levemente coradas.
— Não quero falar sobre isso... — respondeu ela em um sussurro.
— Ah, pode começar a desembuchar! — Joabe cruzou os braços, com um tom irritado. — A gente ficou que nem otário com os olhos fechados. Que pedido foi aquele?
— Cassie, você fez isso porque estava com raiva de mim, por eu ter escondido a verdade sobre a guilda? questionou Rufus, também intrigado.
— Não é isso... só... só que... tenho vergonha da minha habilidade.
— Vergonha? — Uji sorriu, colocando a mão no ombro dela. — Não precisa. Sua habilidade é incrível. Além disso, a dança que você fez foi... bem visual, né?
— É exatamente por isso! — Cassie se afastou abruptamente, o rosto agora ruborizado.— A dança... Eu amo dançar, especialmente danças do ventre, mas é algo pessoal, sabe? Não gosto que me vejam dançar, especialmente... homens.
Joabe riu, incrédulo.
— Querer esconder uma técnica por isso? Qual o problema em dançar? Isso é um motivo ridículo.
— Ridículo?! Eu só não gosto de dançar daquele jeito na frente de homens, porque sempre tem algum idiota que fica paralisado olhando fixamente para o meu corpo! — explodiu Cassie, o rosto ainda mais vermelho.
Uji lançou um olhar zombeteiro para Rufus, Joabe e Kreik.
— É mesmo, Cassie? Concordam com ela, rapazes? — provocou ele com um sorriso malicioso.
Os três congelaram, cada um desviando o olhar.
— Acho que é um bom motivo, Cassie. — comentou Rufus, tentando disfarçar o constrangimento.
Kreik tossiu, ajeitando a postura. — É... tem muito homem desrespeitoso por aí...
— Mas, então, por que você imbuiu essa restrição de dançar no seu equipamento de forja? — perguntou Joabe, ainda inconformado.
— Eu não queria, mas como minha capacidade de refino não foi suficiente, minha alma colocou essa restrição. — Cassie suspirou, olhando para o chão. — Talvez... talvez porque eu realmente goste de dançar. Mas, por favor, mantenham isso em segredo.
Todos assentiram com seriedade, respeitando o pedido dela.
Uji, então, se espreguiçou e se alongou.
— Bom, já que tratamos dos principais ferimentos, é melhor vocês irem para os quartos. Amanhã, vamos nos reunir com a guilda e ver o que descobrimos mais informações sobre aquele desgraçado... com sorte, talvez até a identidade secreta dele.
— Amanhã nada, vamos discutir isso agora. — uma voz séria ecoou pela enfermaria. A porta se abriu, e Rydia entrou com uma expressão determinada. — Deixem o Rufus e essas duas garotas nos quartos. Precisamos nos reunir com Baan agora.
— A essa hora da noite, Rydia? Relaxa um pouco. — comentou Uji, com um sorriso despreocupado.
Rydia colocou a mão na cintura, o olhar fixo e determinado.
— Não fui eu que pedi — respondeu ela, séria. — Foi o próprio Baan. Temos uma reunião extraordinária com a guilda... e uma convidada especial.
— Que convidada? — Uji ergueu uma sobrancelha.
— A reitora Leonora — anunciou Rydia, causando um silêncio pesado.
A expressão de Rufus imediatamente tornou-se alarmada.
— Ei... vocês não podem revelar a real identidade para ela. Se ela descobrir que fui eu quem contratou vocês, ela pode me expulsar.
— Tarde demais. — Rydia suspirou, cruzando os braços. — Isso ela já sabe.
Rufus empalideceu, o pânico tomando conta de seu rosto. Mas Uji, em um gesto reconfortante, colocou a mão no ombro dele e sorriu.
— Não se preocupe. Você não será expulso. Confia na gente.
Com um leve aceno, Rufus pareceu se acalmar. Ele e Cassie seguiram em direção ao dormitório, guiados por Uji, que carregava Clemência desacordada nas costas. Ao chegarem lá, notaram o professor Hazard dormindo em uma cadeira em frente aos quartos, roncando suavemente.
Entraram sorrateiramente, colocando Clemência sobre a cama. Rufus deu uma última olhada ao redor e, ainda apreensivo, entrou em seu próprio quarto, deixando Uji livre para seguir ao encontro dos demais.
Na sala da reitoria, Leonora já os aguardava, sentada em sua poltrona com uma expressão de seriedade. Do outro lado da mesa estava Baan, também sentado, e encostada à parede lateral, a professora Seraphine Muller, com um ar enigmático.
— Sentem-se — ordenou Leonora, com um gesto simples da mão.
Kreik procurou uma cadeira, mas antes que pudesse escolher uma, Seraphine piscou para ele e apontou para a cadeira ao lado dela. Ele engoliu em seco e, relutante, sentou-se ao seu lado. A professora inclinou-se e sussurrou em seu ouvido, o hálito quente lhe roçando o pescoço.
— Tá com medo de quê, ruivinho? Eu não mordo... a menos que me peçam.
Kreik desviou o olhar, o rosto tingido de vermelho, enquanto ela sorria de canto, claramente se divertindo com a reação do rapaz.
Leonora então começou, o tom autoritário e direto.
— Já sei quem vocês realmente são. Agora, quero a verdade. Digam o que fazem aqui e tudo que sabem sobre essa situação.
Relutantes, os membros da guilda explicaram sobre o contrato com Rufus e as recentes descobertas. Falaram sobre os alunos capturados e sobre a possibilidade de libertá-los caso conseguissem rasgar as folhas do livro do Poeta Fantasma.
A reitora permaneceu em silêncio por alguns segundos, assimilando as informações. Então, com os olhos fixos em cada um deles, perguntou:
— Quem vocês suspeitam que seja o Poeta Fantasma?
Eles trocaram olhares incertos. Nenhum deles tinha informações suficientes para acusar alguém com convicção.
Antes que Leonora pudesse prosseguir, Baan ergueu a voz.
— Como a senhora descobriu nossas verdadeiras identidades? — perguntou ele, com curiosidade e um leve tom de frustração.
— Desde que vocês se apresentaram com aqueles nomes ridículos, eu já suspeitava de algo.
Rydia imediatamente pensou: “Eu sabia! A Moara deveria estar aqui só para eu esfregar na cara dela!”
— Nesta universidade, há apenas duas pessoas em quem confio plenamente: a professora Kassandra e a professora Seraphine. Notei que Kassandra estava “atiradinha” demais para o seu lado, Baan, então decidi pedir para a Seraphine ficar de olho em você. A partir daí, foi fácil juntar as peças — continou a Reitora a explicar.
Baan lançou um olhar de reprovação para Seraphine, que riu, passando a mão pelos cabelos de Kreik.
— Não me olhe assim, professor — disse ela em tom brincalhão, acariciando os cabelos do ruivo. — Eu prefiro os ruivinhos.
— Professora Seraphine, apenas ruivos naturais, ou tingidos também servem? — perguntou Uji, levantando a mão.
— Cala a boca, Uji! — Rydia ordenou com firmeza, após lhe dar uma cotovelada.
— Sinto muito, samurai. Apenas naturais. Pode continuar loiro, essa cor combina mais com você.
— Chega de brincadeira. O assunto é sério. — Leonora pigarreou, sua expressão permanecendo rígida. — Achei que essa história de Poeta Fantasma fosse uma lenda, mas parece que estava enganada. Pelo visto, alguém está usando isso para tentar me derrubar... e eu já sei quem é. Só não tenho provas.
Todos se entreolharam, enquanto Baan não conteve a curiosidade.
— Quem, reitora?
— A professora Areta. — Leonora suspirou, levando a mão ao queixo. — Aquela mulher me odeia. Se alguém seria capaz de algo assim, de capturar alunos para alimentar o próprio ódio, essa pessoa seria ela.
Ela então olhou para os membros da guilda, a determinação brilhando em seus olhos.
— Vou permitir que continuem com o “teatro” de vocês. No entanto, a partir de agora, vocês não trabalham mais para o Rufus. Trabalharão para mim. Ah, e pagarei o triplo do que Rufus ofereceu.
Um silêncio tomou conta da sala, enquanto os membros da guilda processavam a nova reviravolta.
Ei, espera aí, não podemos simplesmente quebrar o contrato — comentou Rydia, preocupada.
— Não só podem, como irão... — começou Leonora, a voz grave, impondo toda a sua autoriade — Se recusarem eu irei expulsar todos vocês, inclusive Rufus. Acho melhor considerarem meus termos ou ficará bem difícil vocês recuperarem sua amignha perdida. — A reitora suspirou, virando o olhar para Baan. — O que eu quero é que investiguem Areta e consigam provas demonstrando o envolvimento dela com esse tal de Poeta Fantasma.
Tá de brincadeira, né? — Rydia ergueu-se da cadeira, sua voz desesperada, quase sem acreditar. — Eu vi com os meus próprios olhos o que aquela mulher é capaz de fazer! Até mesmo o Baan não é capaz de lidar com ela de frente. A força dela... temo dizer que é similar a de um General da GPA. Não podemos nos arriscar dessa forma. Vamos desistir! E arranjar outra forma de salvar Moara!
Baan estendeu uma mão para acalmar a sua companheira.
— Rydia, controle-se — disse ele, de maneira firme, mas branda. — Eu sou o líder da guila, eu decido. — Rydia se sentou, inconformada, enquanto Baan estreitou o olhar na direção da Reitora. — Antes de decidir, tem algo que preciso saber antes.
— O que? Seja rápido, não temos tempo a perder.
Baan manteve-se firme, sem mover um músculo sequer. Seus olhos, porém, eram mais penetrantes do que nunca. Ele conhecia bem os jogos de poder, mas esse era diferente. Ele não se importava com a guerra política ou com o que estava no jogo para Leonora. O que ele queria agora era saber a verdade, e ele não permitiria que ninguém os arrastasse para um conflito sem pelo menos entender as motivações que estavam por trás dele.
— Não me venha com essa conversa de “sem tempo a perder”, — disse Baan, a voz séria. — Antes de nos metermos nessa sua guerra fria com a professora Areta, você vai nos contar tudo. Como começou essa história; sua relação com Randalf Flamel e, principalmente, de onde veio o cristal vermelho na sua testa, já que não é uma flamel de nascença.
A tensão na sala era palpável. Leonora mantinha sua postura, mas seus olhos, normalmente impassíveis, traíam uma leve frustração. Ela respirava fundo, as mãos enviavam a mesa de madeira com força. O tom de sua voz, até então controlado, vacilou um pouco quando respondeu.
— Isso é irrelevante. Eu disse que o próximo passo de vocês seria investigar a professora Areta, e qualquer coisa fora disso é perda de tempo. — Ela olhou para Baan com um olhar desafiador, como se tentasse medir a intensidade do seu questionamento.
— Eu não estou negociando em uma situação de vantagem. Mas você também não. Eu não vou meter meus companheiros em um campo de batalha desconhecido. Preciso saber a real extensão dessa situação. Então, como fomos francos com você, também exigimos o mesmo.
Leonora manteve-se em silêncio por alguns segundos, uma expressão amarga cruzando seu rosto. Era evidente que ela estava lutando com seus próprios pensamentos, os fantasmas do passado surgindo diante dela. Quando falou, sua voz estava mais baixa, quase como se tentasse conter as emoções que ameaçavam transbordar.
— Meu passado... — Ela murmurou, as palavras saindo como uma exclamação abafada. — Eu... minha relação com Areta, Randalf e o cristal... tudo isso é parte do meu passado, algo que eu preferia manter enterrado. — Ela suspirou, como se estivesse decidindo se deveria ou não continuar. — Tudo isso ainda me doi... mas já que tá insistindo...