Volume 2
Capítulo 76: A sereia de Taigyo
De volta ao tempo presente, o líder da guilda Sabertooth, retornava à mansão de Bolívar carregando Otto, o jovem traidor da guilda, inconsciente em seus braços. O cenário era de caos, com os portões da mansão quebrados e o silêncio sinistro da casa refletindo o tumulto recente. Era uma noite densa e fria, com nuvens pesadas bloqueando a luz da lua.
Guinter olhou para os portões destroçados com uma expressão de desagrado, notando uma pilha de corpos de capangas de Bolívar deitados no chão.
— Bolívar! — gritou ele, sua voz ecoando pela mansão vazia.
O som de seus passos reverberava pelo saguão deserto enquanto ele avançava, os olhos escaneando o ambiente em busca de qualquer sinal de movimento. O ar estava carregado de tensão, um silêncio opressor que fazia cada pequeno ruído parecer ensurdecedor.
De repente, um som fraco de algo se movendo dentro do escritório do empresário captou sua atenção. Ele adentrou o ambiente, sua raiva crescendo dentro dele como uma tempestade prestes a explodir.
— Bolívar, onde você está? — A voz de Guinter carregava uma fúria contida.
O empresário emergiu hesitante de seu gabinete, a expressão de puro pavor estampada no rosto. Ele tremia, os olhos arregalados como se estivesse diante de um predador.
— G-Guinter... — gaguejou Bolívar, tentando encontrar sua voz. — Fomos atacados... eu quase fui morto... uma maga de cabelos verdes e um samurai loiro... eles... Rafarillo e Steffens os seguiram...
Guinter apertou os olhos, observando cada movimento do empresário.
— E algum mago de cabelo branco que manipula ossos chegou aqui?
Bolívar balançou a cabeça, ainda tremendo.
— Não... Você desaparece dizendo que vai matar o Otogi e a guilda dele, mas eu que sofro um atentado e ainda tem a audácia de me perguntar se eu vi o mago inimigo? Quem tem que saber onde ele está é você! Eu lhe pago é para me proteger e eu quase morri hoje. Vocês estão apanhando de uma guilda rank "E", isso é ridículo.
“Amanhã o rei vem com a comitiva real e eles vão ver apenas destruição nessa cidade, eu vou perder minha chance de ser um Grande Nobre. Sua guilda está falhando miseravelmente e você ainda me pede sucessivos aumentos!
A merda do nosso acordo acaba aqui! Já não aguento mais a sua incompetência! — esbravejou Bolívar, em um surto de medo e raiva, retirando todo o sentimento que sentia em seu coração naquele momento.
A raiva de Guinter se transformou em uma fúria gélida ao ouvir essas palavras. Com um movimento rápido, Guinter soltou Otto no chão e avançou sobre Bolívar, agarrando-o pelo colarinho e erguendo-o com facilidade.
— Você é um fracote, Bolívar — rosnou Guinter, aproximando o rosto do empresário. — Você só chegou onde está por causa de mim. Sem minha guilda, você não é nada. Apenas um lixo que se acha acima de todos porque paga por proteção. Eu só preciso de um golpe para acabar com sua vida. Entenda, não importa quanto dinheiro tenha, quem tem mais força vence!
Bolívar tentou protestar, mas as palavras morreram em sua garganta. Ele estava pálido, o medo transparecendo em seus olhos.
Nesse momento, Otto começou a recobrar a consciência. Seus olhos piscavam enquanto ele se levantava lentamente, observando a cena diante dele. Ele sabia que tinha apenas uma chance.
Com um esforço tremendo, Otto se levantou e se aproximou dos dois. Sem que Guinter percebesse, ele inspirou profundamente e exalou um bafo venenoso, um gás esverdeado e pulsante que rapidamente preencheu a sala.
Guinter soltou Bolívar instantaneamente, recuando com um grito de surpresa e dor. Seus olhos começaram a lacrimejar, a garganta queimando. Bolívar, também atingido pelo veneno, caiu contra uma estante, derrubando duas runas de cura no processo.
Otto aproveitou a confusão. Ele se lançou sobre as runas de cura, pegando-as rapidamente, e correu para fora da sala, seus pés mal tocando o chão enquanto ele se movia como uma sombra.
— Bolívar! — gritou Guinter, lutando para respirar. — Onde estão as ampolas com o antídoto?
Bolívar, entre tosses e gemidos, apontou com dificuldade para um cofre próximo.
— No... no cofre... a senha é 2468...
Com um movimento rápido, Guinter abriu o cofre e encontrou a maleta contendo as preciosas ampolas. Ele bebeu uma, sentindo o alívio imediato do antídoto neutralizando o veneno em seu corpo.
Bolívar, ainda no chão, olhou suplicante para Guinter.
— Por favor... me ajude... Não posso morrer assim tão miseravelmente.
Guinter olhou para ele com desprezo e quebrou as ampolas restantes com um movimento furioso, observando com satisfação enquanto Bolívar se contorcia de dor.
— Você mesmo disse, nossa parceria acabou! Sobreviva sem a Sabertooth.
Enquanto Otto corria para a liberdade, Guinter quebrou a porta do gabinete com um soco, saiu para a parte externa da mansão, olhou para o horizonte e rugiu com toda a sua força, demonstrando toda a sua imponência.
— Minha guilda está em frangalhos, mas vou reconstruí-la. E vou começar eliminando todos que se opõem a mim, começando pelo traidorzinho e seu pai. Depois, irei pegar sua guilda, um por um, até chegar em você, Baan. Pagará caro pelo que fez ao Nathan!
Otto corria com toda a sua força, o coração martelando em seu peito. Sentia a adrenalina percorrendo suas veias enquanto tentava afastar a imagem de Bolívar e Guinter, contorcendo-se em agonia pelo veneno que ele havia lançado. Cada respiração era uma mistura de medo e determinação.
À medida que corria, uma transformação começou a ocorrer em seu corpo. Escamas azuis começaram a se manifestar em sua pele, cobrindo-o de cima a baixo. Guelras surgiram em seu pescoço, permitindo que ele respirasse mais facilmente enquanto seus pulmões se adaptavam. De suas costas, enormes asas de dragão irromperam, rasgando a camisa que usava. Ele bateu as asas com força, levantando voo rapidamente em direção ao museu onde sabia que seu pai estava.
Enquanto cruzava os céus da cidade, a visão de Joabe e Kreik surgiu à distância. Joabe estava visivelmente exausto, carregando Osken desacordado nas costas, cada passo um esforço monumental. Kreik, também ferido, usava os jatos de fogo de suas luvas para planar no ar, tentando se manter próximo a Joabe.
— Ei, bonitão — Joabe gritou com a voz entrecortada pela dor e cansaço — vai ficar só aí esbanjando pose de herói nos céus enquanto eu faço o trabalho pesado?
Kreik sorriu de forma cansada, mas não deixou de responder com sua habitual provocação.
— Alguém tem que fazer o trabalho de observar de cima, né? E além disso, posso procurar Otto mais rápido assim.
Joabe bufou, os olhos semicerrados de raiva e frustração.
— Claro, claro, excelente ideia. Enquanto isso, eu carrego todo o peso!
De repente, Kreik interrompeu a brincadeira, os olhos fixos no céu.
— Espere... O que é aquilo? — Ele apontou para uma figura se aproximando rapidamente.
Era Otto, voando em direção a eles. Os três amigos se encontraram no ar, a alegria e o alívio claros em seus rostos. Kreik segurou amigavelmente o pescoço de Otto com a mão esquerda e esfregou, com o punho direito, o topo da cabeça do amigo, sorrindo aliviado.
— Você tá bem, garoto? — perguntou Kreik, com um toque de preocupação.
— Sim! — respondeu Otto, ainda ofegante, mas sorrindo. — Consegui escapar, aproveitando uma briga entre Guinter e o Bolívar. Precisamos encontrar um lugar para descansar.
Eles desceram rapidamente em direção ao prédio da prefeitura, que ficava próximo. O grande edifício, com suas colunas imponentes e janelas altas, oferecia um refúgio temporário. Adentraram no prédio e encontraram um salão intacto, onde poderiam se recuperar.
Otto retirou duas runas de cura de seu bolso.
— Aqui, vamos ver se isso ajuda — ele ativou as runas, que emitiram um brilho suave, cobrindo os ferimentos dos três com uma luz curativa. As feridas mais graves começaram a fechar, proporcionando um alívio bem-vindo, mas a magia limitada das runas não era suficiente para restaurar completamente as forças de seu pai e de seus dois amigos.
Osken começou a recobrar a consciência, os olhos piscando enquanto tentava focar no ambiente ao seu redor.
— Otto? — murmurou ele, com a voz rouca.
— Pai! — Otto se lançou nos braços de seu pai, abraçando-o com força. — Eu estou bem. Consegui escapar.
— Como você fez isso, Otto? — Osken perplexo, passando a mão pelo cabelo do filho.
— Aproveitei uma briga entre Bolívar e Guinter para envenená-los e fugir. Mas é só uma questão de tempo até que o efeito do veneno passe em Guinter e ele queira vingança — Otto explicou rapidamente.
Osken fechou os olhos, sentindo uma onda de impotência.
— Eu que devia ter sido capaz de proteger você das mãos de Guinter, em vez de lutar contra Joabe e Kreik...
Kreik colocou uma mão no ombro de Osken, sua expressão grave, mas reconfortante.
— Você foi meio cabeça dura, mas fez o que podia. O importante é que Otto está bem agora.
Joabe, ainda sentindo o peso do esforço, se recostou na parede.
— Precisamos descansar. Guinter pode aparecer a qualquer momento, e um confronto é inevitável.
Enquanto se acomodavam no chão frio do salão, Kreik olhou para Otto com uma expressão séria.
— Enquanto descansamos, talvez você deva contar sua história, Otto, inclusive sobre essa sua transformação.
Osken segurou firmemente no ombro de seu filho, assentindo.
— Sim, meu garoto. É hora de contar a eles o que aconteceu. Vou começar do início.
No ano de 1588, em um pequeno vilarejo de pescadores chamado Taigyo, no continente de Sudária, localizado no extremo limítrofe de Frost Garden com os reinos de Hanggarden e Cristálida.
O vilarejo era pequeno, com poucos moradores, à beira do mar. O solo não era propício para agricultura de grande porte, permitindo apenas plantações de subsistência, portanto a principal atividade econômica da região era a pesca. No vilarejo, finas camadas de neve caíam das plantas e derretiam lentamente pelo calor do sol, que acabava de nascer no horizonte.
Neste vilarejo, encontrava-se Osken, com apenas 23 anos, deitado em sua cama, com roupas de pescador, lendo um livro todo relaxado, até que uma pessoa entra em sua casa.
— Osken, Osken, o inverno já acabou, o mar descongelou, podemos voltar a pescar. Vem logo, a Senhora Babacoco está convocando os pescadores do nosso turno para iniciar a nova temporada de pesca.
— Ah, Jiro, estou cansado. Não aguento mais essa vida de passar os dias igual a uma formiga. Chega a primavera, estocamos comida. Vem o inverno, ficamos escondidos comendo os alimentos estocados.
— Ué, você quer viver como, Osken? Tem alguma outra forma?
— Eu não sei, Jiro. Apenas fala para a Senhora Babacoco que não poderei ir na pescaria hoje porque estou doente. Diz que comi comida estragada. Hehehe! Minha cama é mais emocionante do que passar o dia pescando rodeado de homens fedendo a peixe. Poderíamos ao menos pescar ao lado das lindas beldades da nossa vila — brincou Osken, rindo.
— Tudo bem, só cuidado para a Senhora Babacoco não puxar sua orelha depois. Hahaha! — saiu Jiro sorrindo.
“Ele fala como se aquela velha pensasse que manda na minha vida. Não preciso dela para sobreviver.”, pensou o pescador preguiçoso.
Jiro sai e Osken permanece em casa, deitado lendo seu livro. O amigo de Osken chega a uma cabana, onde uma idosa, de costas, que está dando instruções a um dos pescadores. De longe, sem adentrar na cabana, Jiro informa que seu amigo estava doente e não iria participar da pescaria.
A anciã, sabendo que não poderia esperar pela boa vontade de Osken, autoriza o pescador ao seu lado a iniciar a pesca. Todavia, indignada com a atitude displicente de Osken, decide visitá-lo em sua cabana.
Ela, sem bater, adentra no local e vê Osken dormindo. Com sua bengala, bate na cabeça do pescador preguiçoso, que grita de dor:
— Ai, ai, Senhora Babacoco. Para que tanta violência?
Senhora Babacoco, idosa de 86 anos, olhos profundos pretos, pele branca, cabelos acinzentados longos com tranças, roupas de frio na cor azul com detalhes marrons e amarelos. Usava botas pretas e uma bengala.
— Seu preguiçoso! Acha que vai sobreviver neste mundo sendo tão displicente? Só porque nasceu com aptidão para magia, isso não te faz melhor do que ninguém. Vá trabalhar como os demais!
— Senhora Babacoco, não é que eu não queira ir à pescaria, é porque não posso. Estou doente, o Jiro não falou?
— Não seja por isso, vou preparar um chá para você. Tenho certeza de que vai se curar. Hehehe! — disse a velha com um sorriso macabro no rosto.
Osken fez uma cara de nojo e pensou: “Um chá seu? Eu prefiro morrer! O último que tomou um chá dessa velha saiu correndo pelo meio do mar congelado, pensando que tinha virado um peixe.”
— Está com pensamento distante, Osken... Vou começar os preparativos do meu chá.
— Não precisa, Senhora. Sua presença, como sempre, é milagrosa. Hehehe! Estou plenamente curado. É uma pena que não me esperaram. Estou pronto para ir à pescaria — disse Osken com um falso sorriso.
— Não se preocupe, meu jovem, tenho outra atividade para você. Hehehehe! — disse a anciã com um sorriso maroto, esfregando as mãos.
— O que você tá pensando, sua velha tarada? Não sou esse tipo de homem... Meu corpo, minhas regras! — Osken, com vergonha e irritado esbravejou.
— Me respeite, seu moleque mal-educado. Tenho idade para ser sua avó — retrucou Babacoco, irritada, batendo com a bengala na cabeça de Osken.
Como punição, Osken passou o dia inteiro cortando lenha para todos os moradores do vilarejo. Durante o crepúsculo, o jovem já estava exausto de seus afazeres, até que, do alto da colina em que estava, viu os barcos de pesca retornarem e achou estranho a multidão de pessoas que se amontoavam ao redor. Contudo, por vergonha de ter sido punido pela anciã, decidiu esperar as pessoas se dispersarem para retornar à vila.
Algumas horas depois, no início da noite, após retornar ao vilarejo com toda a lenha obtida, ele deixou o material no depósito e viu as pessoas alteradas, cochichando, como se tivesse acontecido algum fato importante.
Enquanto voltava para casa, o pescador encontrou Jiro, seu amigo, correndo em sua direção, todo empolgado:
— Osken, Osken, tava te procurando por todo lugar. Onde você se meteu? Não te encontrava em lugar algum.
— Estava meditando no alto da colina, treinando magia. Hahaha! — mentiu Osken com um sorriso falso e com vergonha da situação.
— Não importa. Você viu o que pegamos hoje na pescaria? — perguntou Jiro, empolgado.
— Peixes?
— Não, seu idiota. Aliás, sim. Não me confunda. Além dos peixes, pescamos algo bem mais importante — Jiro falava desajeitadamente.
— O que foi? Uma baleia — retrucou Osken, desconfiado do amigo, pensando que ele fazia alarde por pouca coisa.
— Melhor. Uma sereia! A sereia de Taigyo. Pelo menos é assim que todos estão chamando-a — Jiro falou empolgado, balançando os braços.
— Sério? Pescaram uma sereia? Mentiroso! — Osken retrucou, intrigado.
— Na verdade, não é especificamente uma sereia, mas uma linda mulher. Com uma beleza diferente. Ela estava à deriva em um barco, nós a pegamos inconsciente e trouxemos ela para o vilarejo.
— Que merda. Essas coisas acontecem apenas quando eu não vou. O destino é muito malvado comigo. Mas, vem cá, ela era bonita mesmo ou você tá exagerando? — Osken questionou com curiosidade e empolgação.
— Tô te falando, meu amigo. Ela tem uma beleza totalmente diferente das mulheres daqui. Acho que estou apaixonado. Hahaha!
— Quero ver a sereia de Taigyo. Onde vocês a levaram?
— Para a casa da Senhora Babacoco.
— QUE? Logo na casa daquela velha racinza? — Osken fez uma cara de desconforto. — Bem... Não importa. Pelo visto irei jantar hoje na casa dessa velha. Hehehe!