Volume 1
Capítulo 6: Longa Noite
Enquanto isso, à beira do rio que passava aos arredores do vilarejo de Lakala, Kreik estava de joelhos ao lado de Mayumi. Ela abriu os olhos devagar e viu o garoto muito próximo, segurando suas costas com uma mão e emitindo uma leve onda de calor com a outra.
— Ahn! Tarado! — gritou Mayumi, por reflexo, dando um tapa no rosto dele.
Com o impacto, Kreik soltou-a, e ela caiu de costas no chão.
— Calma! Eu só estava tentando ajudar. Estava usando magia para secar suas roupas e evitar que você pegasse um resfriado — explicou o jovem, esfregando a bochecha dolorida.
Mayumi sentiu o rosto esquentar de vergonha.
— Ah... desculpe, eu não sabia... — murmurou, tocando os dedos indicadores um no outro, nervosa.
— Tudo bem. Vi você caindo na cachoeira e pulei para resgatá-la. Que bom que está bem — falou Kreik, com um sorriso reconfortante.
— Isso foi… muito corajoso da sua parte — disse Mayumi, sorrindo suavemente enquanto acariciava as mechas de cabelo sobre seus olhos, revelando sua timidez.
— Obrigada — acrescentou ela.
No entanto, a expressão da Tenente mudou drasticamente quando seus olhos se fixaram nas luvas nas mãos de Kreik. O sentimento de preocupação dominou seu corpo.
— Espera, es-essas lu-luvas… é a Invoker do Ifrit? — gaguejou a Tenente.
— Não se preocupe — Kreik tentou tranquilizá-la —, peguei elas em uma caixa de um dos bois que você estava perseguindo, mas tive que usar as luvas para evitar a colisão com aquela pedra — Ele apontou para o enorme rochedo.
Mayumi levou as mãos à cabeça, notadamente desesperada, e passou a virar seu torso de um lado para outro.
— Não, não, não! Como fui tão burra! Agora vou ser expulsa da corporação. Isso se o Major Brihen não me matar antes! — Ela se jogou de costas no chão, os braços abertos, olhando para o céu — O que eu fiz? Joguei o nome da minha família no lixo.
Kreik franziu a testa, tentando retirar as luvas.
— Não precisa se exaltar. Meu objetivo sempre foi devolver as luvas. Tome-as de volta.
Porém, por mais que tentasse, as luvas não saíam. Ele tentou de tudo: usou os dentes, pedras, água, mas nada funcionava.
Mayumi suspirou, resignada, escorando suas costas na pedra.
— Não adianta. Quando alguém acopla uma Invoker ao corpo, sua alma e a do Arcano se fundem, e o Arcano fica selado na alma do portador.
— O quê? — Kreik ficou pálido. — Não tem como tirar essas luvas?
— Só há uma forma: quando o portador morre, as almas se desacoplam e a Invoker fica disponível novamente.
— Droga! Não sabia disso. Só queria ajudar. Me desculpe!
Kreik, desanimado, sentou-se ao lado dela. Mayumi olhou para o jovem com simpatia.
— Esqueça, você não tem culpa. Não tinha como saber. No fim, foram minhas fraquezas e inseguranças que nos trouxeram até aqui.
— Fraca? Insegura? Você salvou aquele garoto com uma coragem que eu nunca vi antes. Se o mundo tivesse mais pessoas como você, seria um lugar muito melhor.
Mayumi corou, sem saber o que dizer.
— Obrigada. É gentil da sua parte. Mas depois disso, acho que terei que voltar para Acadis, viver com meu avô — ela murmurou, olhando para o chão.
— Acadis? Onde fica isso? — perguntou o jovem ruivo, inclinando a cabeça de curiosidade.
Mayumi riu, surpresa com a falta de conhecimento dele.
— Você nunca ouviu falar de Acadis? É uma das onze grandes nações de Etérea, localizada no continente de Eurestes. O berço do desenvolvimneto tecnológico, musical e cultural. Você realmente vive em outro mundo, não é?
— Eu nunca saí do vilarejo de Lakala. Ir para outro continente soa como um sonho para mim — respondeu Kreik, com um leve sorriso envergonhado enquanto a Tenente balançava a cabeça, incrédula.
— O mundo é tão vasto e cheio de maravilhas. Conhecer outras culturas, comidas, danças e paisagens é algo indescritível — ela falou com um brilho de empolgação em seus olhos.
— Sabe... — Kreik suspirou, triste. — Não me lembro da última vez que interagi com alguém de verdade. Meu pai fez algo terrível ao vilarejo e, por isso, eu, minha mãe e meu avô fomos exilados, tratados como párias.
— Sinto muito. — Mayumi colocou uma mão no ombro dele, solidária. — Ninguém deve ser punido pelos crimes de outra pessoa. Você não teve culpa. O mundo precisa de mais compreensão e menos ódio.
Kreik sorriu, sentindo um calor reconfortante nas palavras dela.
— Obrigado. Espero poder conhecer o mundo algum dia, sair desta vila e ser tão destemido e forte quanto você.
Mayumi corou novamente, surpresa com os elogios.
— Embora eu ache que você tá me superestimando... Devo admitir que é bom ouvir isso.
Os dois se entreolharam e deram um leve sorriso. Eles não sabiam explicar, mas sentiam como se pudessem confiar um no outro. Kreik sentia um forte nervosismo e seu coração acelerava. Ele colocou sua mão sobre a mão da Tenente. Mayumi, ao sentir o toque, ficou corada, sem reação. Contudo, ao olhar para a mão, viu as luvas e lembrou-se do seu senso de dever militar, interrompendo o clima de tensão no ar.
— Ei, não esqueça que você, como novo portador do Ifrit, não pode simplesmente fugir com essas luvas. Elas são importantes para a GPA e para minha família. Preciso que aguarde aqui até que os soldados venham nos buscar.
Kreik retrocedeu o toque de sua mão e balançou a cabeça, nervoso.
— Não posso ficar. A GPA vai me matar para liberar a Invoker para outra pessoa. Desculpe, não posso.
— Não se preocupe — Mayumi tentou acalmá-lo. — Não vou deixar que o matem. Vamos encontrar outra forma de remover essas luvas. Pode confiar em mim.
— Confio em você, mas na GPA... não. Eles já me machucaram demais.
— A GPA é feita por pessoas. Somos uma organização que luta pela paz. Por favor, tenha fé. Não vou deixar que te façam mal.
De repente, um sinal de fumaça surgiu no céu, vindo da direção da cabana de Kreik.
— Vovô! Preciso ir. Ele deve estar em apuros! — Kreik gritou, alarmado.
— Deixe-me ajudar... — ela começou a falar, tentando se levantar, mas a dor na sua perna era intensa.
— Não posso perder mais tempo. Preciso resgatar meu avô. Desculpe — ele disse, apressado, já se afastando da jovem.
— Espere! Antes de ir, qual é o seu nome? — gritou Mayumi, tentando alcançá-lo com a voz.
Kreik parou por um momento e se virou.
— Meu nome é Vander Kreik, e o seu?
— Sou a Tenente Sundiata Mayumi, mas pode me chamar de Mayumi.
— Espero poder te ver novamente, Mayumi — respondeu ele, esboçando um sorriso largo.
Mayumi levantou a mão, tentando chamar sua atenção uma última vez.
— Ei, Kreik, antes de ir...
— O que foi?
— Não faça besteira com essas luvas. Elas são importantes para mim. Por favor.
Kreik assentiu, determinado.
— Pode confiar em mim — ele gritou, correndo em direção à floresta.
A Tenente ficou olhando o jovem desaparer entre as árvores. Em seguida olhou para o céu e suspirou.
“Ah, não! Por que eu simplesmente deixei ele fugir com as luvas? Eu nem sei se ele estava me falando a verdade... Eu deveria tê-lo capturado? Minha razão diz que sim, mas... meu coração diz diferente”, pensou Mayumi, sentindo-se dividida.
Retornando para a luta ente Reich e Brihen, este retirou do seu colete outra runa e a acoplou em sua manopla. Em seguida, girou a manivela. Os cristais da manopla ficaram roxos e, com as duas mãos quase unidas, ele produziu um ovo roxo com pintinhas amarelas.
O ovo, após materializado, caiu no chão sem quebrar. Reich olhou atentamente para a cena à frente. Ele então retirou mais uma pequena parcela da chama azul que lhe circundava. Com essa parcela retirada, lançou novamente sua técnica Soulfire Explosion, contudo, as chamas azuis foram absorvidas pelo ovo roxo, que aumentou de tamanho.
Brihen caminhou lentamente ficando na frente do ovo e montou guarda, esperando pelo duelo. Reich olhou para o Major e falou:
— Entendi! Deve ser uma técnica poderosa quando finalizada.
— Como assim? Já compreendeu como funciona a minha técnica? Está blefando — questionou Brihen, perplexo.
— Eu consigo ver fluxos de poderes mágicos como se fossem cores pelo céu. O seu ovo tem a capacidade de absorver poder mágico. Primeiro, ele absorveu minhas chamas azuis e agora está absorvendo lentamente os seus poderes mágicos, como um parasita.
Para um mago da classe forjador, impor uma restrição dessa no seu equipamento de forja, serei franco, desse ovo virá algum trunfo bem interessante.
— Você é observador — admitiu Brihen. — Mas você irá morrer assim que o ovo eclodir.
— Se o ovo eclodir. Ele pode absorver poderes mágicos, mas o que acontecerá se ele receber danos físicos?
— Não fale como se fosse fácil! — retrucou Brihen, retirando outra runa do seu colete e girando a manivela de sua manopla. Com isso, o cristal ficou azul. Sem eguida, ele lançou um novo ovo na direção de seu inimigo.
Reich retirou mais uma porção de chamas azuis e lançou um novo Soulfire Explosion, contudo, antes das chamas atingirem o ovo lançado, o ovo roxo absorveu as chamas, aumentando de tamanho.
“Esse ovo absorve poderes mágicos a essa distância? Preciso ter cuidado, se essa grande chama azul se aproximar do ovo... será problemático.”, Reich murmurou consigo.
O vilão saltou para trás, desviando do ovo lançados que, ao cair no chão, rachou e gerou uma névoa que congelou a área próxima. Em seguida, Reich fez a grande chama azul que o rodeava ficar parada no ar, inclinou-se para frente, saltou e desapareceu, reaparecendo próximo ao ovo roxo.
Entretanto, Brihen fez o mesmo, colocando-se entre o ovo e Reich. O Major tentou lançar outro ovo congelante, mas Reich o impediu, segurando sua mão e socando seu estômago com o outro braço. Brihen não recuou e deu uma cabeçada em seu oponente. Reich soltou a mão do Major e saltou para trás, desviando do golpe. Brihen aproveitou o momento e ergueu o braço, lançando outro ovo congelante.
Reich pulou, desviando do ovo, mas Brihen também saltou em sua direção, visando acertá-lo com um chute na altura das costelas. Reich bloqueou com o antebraço e, com a outra mão, acertou um soco na garganta do Major, que caiu de joelhos, agonizando de dor. Sem dar chances para defesa, Reich chutou imediatamente o Major e correu na direção do ovo roxo, com intuito de quebrá-lo com um soco.
Brihen girou a manivela e lançou outro ovo, forçando Reich a saltar para trás e impedindo-o de concretizar o ataque, embora o ovo lançado tenha congelado a área próxima ao ovo roxo. A cada segundo que passava, o ovo roxo aumentava de tamanho, absorvendo o poder mágico de Brihen.
Refletindo sobre essa situação, o Major percebeu que, se continuasse assim, teria que fazer o ovo eclodir sem que maturasse adequadamente, pois seu poder mágico estava se esgotando.
Ainda analisando a situação em que se encontrava, Brihen buscava uma incessantemente em uma estratégia para remediar seu problema, até que notou a grande chama azul parada no ar, deixada por Reich.
Neste momento, teve uma ideia. O Major se aproximou do ovo roxo e, em um movimento rápido, explodiu dois ovos congelantes, um em advindo de cada manopla. Um ovo foi na direção de Reich, que facilmente desviou, e o outro em um local entre a grande chama azul e o ovo roxo.
Reich ficou curioso com o sentido daquele segundo ovo congelante, mas logo descobriu. Brihen, assim que chegou ao local do ovo roxo, o pegou e jogou na área congelada próxima. O ovo escorregou pelo caminho congelado até cair na outra área congelada criada por Brihen após lançar seu último ataque. O ovo roxo ganhou velocidade e se aproximou da grande chama azul deixada por Reich, absorvendo-a em seguida e quadruplicando de tamanho até que eclodiu.
De dentro da casca do ovo nasceu um condor gigante, com penagem roxa e pequenas descargas elétricas chamuscando em suas penas. Seu bico e patas eram amarelos, uma ave imponente e deslumbrante.
“Ele utilizou as áreas congeladas como escorregadores para aproximar seu ovo das minhas chamas e fazê-lo maturar rapidamente. Bem esperto”, pensou Reich, sentindo uma mescla de decepção por ter sido tapeado e entusiasmo em saber o que viria a seguir.
O condor alçou voo e, no ar, abriu suas asas, fazendo trovões emergirem de suas penas em direção a Reich. Ele desviou dos golpes até que Brihen, após usar o impulso fervoroso, apareceu em suas costas e lançou um ovo congelante, que o prendeu no gelo. Em seguida, a ave lançou mais um conjunto de raios que acertaram o vilão congelado.
Reich caiu de joelhos e Brihen saltou, tentando tirar seu capuz, mas Reich segurou a mão de Brihen. Preparando um soco com a outra mão, o Major segurou o golpe e falou:
— Você não vencerá. Provará todo o meu poder.
O condor lançou um raio de suas penas e os dois se soltaram, saltando para trás. O condor deu uma investida, tentando atacar com suas garras. Reich deu um outro impulso, sumindo e reaparecendo. Contudo, o condor fez o mesmo, acompanhando Reich e atacando com seu bico eletrificado.
Reich segurou o bico com as mãos e, impressionado, murmurou consigo: “Essa ave consegue usar um impulso fervoroso?! Então ela deve dominar os demais potencializadores de aura.”
Os olhos do condor brilharam e uma forte descarga elétrica saiu do bico. Mesmo sendo eletrocutado, o vilão continuou a segurar firmemente o bico da ave, até que ela começou a debater a cabeça, arremessando Reich para longe.
Reich caiu rolando continuamente até bater com as costas em um tronco de árvore. Brihen, de longe, descansava, confiante de sua vitória. O condor alçou voo e eletrificou suas garras, preparando uma investida. Reich novamente materializou seu recipiente com líquido azul e retirou uma quantidade de líquido capaz de produzir vinte pequenas chamas azuis.
— 20 chamas... É o suficiente. Long Night (Longa Noite)! — exclamou Reich, erguendo os braços.
As chamas azuis adentraram nos cadáveres dos soldados mortos. Quando isso ocorreu, os corpos foram reanimados, criando zumbis. Dezessete zumbis partiram em direção à ave e os outros três atacaram o Major.
A ave, que descia do céu para atacar com suas garras, foi surpreendida pelos dezessete zumbis pulando em seu corpo, mordendo e batendo na ave. O condor elétrico perdeu o equilíbrio e caiu no chão.
— Maldito! Como tem coragem de profanar os corpos mortos de meus soldados? — esbravejou o Major enquanto desviava dos golpes dos zumbis.
Reich sorriu e gritou na direção de Brihen:
— Qual o gostinho, Major, de ser atacado pelos homens que tanto o admiravam? Essa luta já se estendeu demais. Foi divertido, mas já preciso retornar aos meus afazeres.
— Não me menospreze, meu condor ainda pode lutar e acabar com você — retrucou Brihen, com o ódio visível em seus olhos.
A ave, mesmo sendo atacada pelos soldados zumbis, alçou voo, se debatendo e tentando fazer os zumbis caírem de cima dela. Um dos zumbis caiu do alto e se quebrou em vários ossos no chão, enquanto os demais continuavam a mordê-la e golpeá-la.
Brihen, mesmo lutando com os três zumbis, gritou para Reich:
— Vejamos quanto tempo seus zumbis aguentam subindo até o céu.
Reich, sorriu, olhou para o alto e deu um leve estalo com a boca. Todos os zumbis que atacavam a ave se explodiram, matando o condor gigante ainda no céu. Brihen ficou desolado ao testemunhar os restos de sua ave, seu maior trunfo, caindo do alto.
Sem esperanças e ciente de sua derrota iminente, o Major Brihen se tornou um alvo fácil. Os três zumbis que o atacavam morderam seu corpo: um seu braço, outro a perna e o outro, sua clavícula.
Reich olhou para Brihen e fez um novo estalo com a boca. Os três zumbis explodiram e Brihen caiu no chão, todo ensanguentado e sem forças e nem força de vontade para levantar.
Reich andou lentamente até Brihen, segurou sua cabeça e falou:
— É uma pena, Major. Você alimentou esperanças de que poderia me derrotar. Entretanto, isso nunca foi uma possibilidade real. Eu te falei, nem meu capuz você foi capaz de tirar — debochou Reich, com um sorriso sarcástico. — Talvez, se não tivesse alimentado essa esperança inútil, não teria sofrido tanto. Adeus.
Reich retirou a alma de Brihen e a guardou em seu recipiente. O corpo do Major caiu no chã, como uma casca vazia. Em ato contínuo, Reich foi até os restos da carroça e conseguiu reaver a caixa com as luvas de Ifrit. Assim que ele pegou as luvas, ele as jogou no chão e pisou em cima delas.
Reich, ainda encapuzado, saiu andando com ódio para dentro da floresta, murmurando:
— Tudo isso por apenas uma cópia ridícula, impossível! Se essas luvas são falsas, onde estarão as verdadeiras?