Volume 1
Capítulo 11: As duas faces da moeda
Ainda nas celas do posto avançado da GPA. Mayumi e Moara ouviam atentamente a história de Gurren. O velho suspirou e olhou nos olhos da Tenente, como se buscasse a certeza de que ela ajudaria ele e o neto a saírem daquela enrascada. Mayumi entendeu o recado transmitido pelo olhar do velho e assentiu com a cabeça.
— A biblioteca de Lakala era uma das maiores e mais importantes do mundo, um patrimônio nacional e motivo de orgulho para o vilarejo e o reino de Ekala. Mas, com a destruição dela e do posto militar da GPA, somado ao sumiço de Reich, o vilarejo sofreu duras sanções — explicou Gurren.
— Imagino... a GPA não perdoa quando é de alguma forma atingida. O reino Starlladia foi o maior exemplo disso. Mas sem mudar de assunto, quais sanções foram impostas? — perguntou Mayumi.
— Todos os cidadãos foram proibidos de sair do vilarejo e de tentarem reconstruir a biblioteca. Ficou ainda proibido ao reino de Ekala ou qualquer outra nação de fornecer recursos financeiros ou ajuda humanitária financeira por quase 11 anos. Isso despertou o ódio de todos contra nós, e tivemos que morar reclusos, naquela mesma cabana isolada que pertencia ao Reich. Inclusive, foi após esses acontecimentos que Thorguen Brown, então recém-condecorado Major do Exército da GPA, foi destacado para comandar a região.
— E por que vocês simplesmente não fugiram da vila e tentaram recomeçar a vida em outro lugar? — indagou Uji, ao Kreik, já que o garoto estava contando a mesma história naquele momento.
— Bom, a GPA ficava nos fiscalizando e não deixava que saíssemos. Eles tinham a esperança de que o meu pai aparecesse no vilarejo querendo manter algum tipo de contato comigo, mas isso nunca aconteceu — explicou Kreik, apertando a tigela de sopa que segurava.
— E sua mãe, o que aconteceu com ela? — perguntou Joabe.
— Oh, parece que a história do nosso colega aqueceu o coração de pedra do nosso querido e sombrio membro do clã dos assassinos do deserto de Suna — brincou o samurai.
— Vai à merda, Uji. Foi você que começou perguntando sobre a história dele — retrucou Joabe.
— Calem a boca, os dois, e deixem o Kreik continuar — interveio Rydia, que também escutava a história atentamente.
Um novo flashback se inicia, poucos dias após o incidente com Reich. Gurren é visto com suas flores belladinas em uma carroça, dirigindo-se ao mercado da cidade com o intuito de vendê-las.
Ao tentar montar sua banca de vendas, algumas das pessoas lá perto o impedem. Ele tenta acionar um soldado da GPA que está por perto, mas este apenas finge que não está vendo. Outras pessoas derrubam suas flores e começam a pisá-las e nelas cuspir.
Gurren pede encarecidamente que não façam isso, pois aquelas flores são o único meio de sustento da família, mas as pessoas cuspiram nele. Então, ele volta para casa.
Ao chegar em casa, Kreik, ainda triste com os acontecimentos recentes envolvendo seu pai, recepciona seu avô.
— Vovô, voltou cedo hoje. Já vendeu todas as flores? — perguntou Kreik.
— Claro, você sabe que sou o melhor vendedor de flores de todo o continente — respondeu Gurren com os braços esticados e um sorriso forçado.
Kreik deu um leve sorriso e abraçou seu avô. Após isso, Gurren pediu que ele fosse brincar em seu quarto. O garoto assim o fez, e Gurren foi até a cozinha, onde Bella estava, e começou a desabar em choro, explicando o ocorrido para sua filha.
Minutos depois, Kreik olhou pela janela do seu quarto e viu vários de seus amigos brincando na rua. Ele acenou para eles, mas estes fizeram gestos de provocação com a língua e o chamaram de “filho do demônio”. O garoto abriu a janela do quarto e pulou por ela, indo em direção aos outros garotos e iniciando uma discussão com eles. A discussão terminou em uma briga.
Ao ouvir os gritos das crianças brigando, Bella saiu rapidamente de casa e apartou a confusão entre os garotos. No entanto, as mães dos outros garotos também apareceram e começaram a xingar Kreik, dizendo que ele seria igual ao pai. Bella se enfureceu, mas conteve seus sentimentos, levando seu filho para casa.
Mais tarde, ainda naquele dia, os três membros da família estavam reunidos na sala de casa quando uma pedra entrou em alta velocidade pela janela, seguida por outras. Várias pedras foram lançadas junto com xingamentos, chamando-os de “família de demônios”.
Uma das pedras acertou o braço de Kreik, que começou a chorar. Sua mãe correu, segurando o filho, e o colocou embaixo da mesa, até que a chuva de pedras cessasse.
Após o acontecimento, ninguém mais daquela família dormiu naquela noite. Como medida de segurança, decidiram mudar para a cabana isolada da cidade que pertencia ao Reich.
Ao concluírem a mudança e cair a noite, Bella colocou seu filho na cama para dormir. Mas antes dela sair, ele falou:
— Mãe, por que as pessoas desse vilarejo se tornaram malvadas? Por que elas estão agindo igual ao papai naquele dia?
Bella suspirou, sentindo o peso das palavras de Kreik. Ela se sentou ao lado dele e passou a mão carinhosamente pelos seus cabelos.
— Ah, meu querido, o mundo é um tecido entrelaçado com fios de bondade e maldade. Assim como existem aqueles que lançam pedras, existem também pessoas boas, que estendem as mãos para ajudar, como eu, você e o vovô — disse Bella, com uma voz suave, mas firme.
— Mãe, será que podemos encontrar outras pessoas boas na vila?
— Talvez nos próximos dias seja difícil, mas acredito que, com o tempo, você encontrará amigos verdadeiros que o amarão pelo que você é, não pelas sombras do passado — falou ela, com um brilho de esperança nos olhos.
— E se essas pessoas que eu encontrar começarem a me odiar, como as do vilarejo?
Bella refletiu por um momento, procurando a melhor maneira de explicar algo tão complexo para seu filho.
— Hum… Sabe, filho, o coração humano é como uma moeda com duas faces — começou Bella, pegando uma moeda e mostrando-a a Kreik.
— Sim, tem duas faces. — Observou Kreik, olhando para a moeda.
— Uma face representa o amor e a outra, o ódio. Quando conhecemos alguém, é como se lançássemos essa moeda ao ar. Para nós, inicialmente, caiu no amor, mas seu pai, por razões que só ele conhece, lançou a moeda novamente e ela caiu no ódio — explicou Bella, a tristeza em sua voz era palpável.
— Não sei se entendi. Mas como podemos lançar a moeda novamente? — perguntou o garotinho ainda confuso.
Bella sorriu gentilmente, acariciando o rosto de Kreik.
— Às vezes, não temos controle sobre como a moeda cairá. Mas o importante é continuarmos jogando, com fé e coragem. Agora, é hora de descansar. Boa noite, meu anjo — disse Bella, beijando a testa de seu filho.
— Boa noite, mãe — respondeu Kreik, com um pequeno sorriso no rosto.
Enquanto Bella se dirigia à porta, Kreik, com a inocência de sua idade, lançou mais uma pergunta:
— Mãe, quando o papai voltar, ele poderá lançar a moeda novamente?
Bella parou por um momento, seu coração pesado com a pergunta. Ela tocou a escrivaninha suavemente e, sem se virar, respondeu:
— Um dia, meu filho, você terá a chance de lançar sua própria moeda. E eu acredito que, quando esse dia chegar, as pessoas verão a luz em seu coração e o amarão por isso. É uma promessa que guardo comigo — disse ela, com uma promessa silenciosa em seu coração.
— Está bem, mamãe. Boa noite — disse o garoto, ainda esperançoso.
Bella fechou a porta do quarto suavemente, encostando-se a ela com um suspiro abafado. Ela se sentou com os joelhos dobrados, apoiou os cotovelos sobre eles, escondendo o rosto entre as mãos enquanto lágrimas silenciosas começavam a fluir, cada uma carregando o peso de um coração partido. Sua voz, um sussurro trêmulo, quase como uma prece, ecoou no corredor vazio:
— Por que, Reich? Por que despedaçou nossa família? Por que deixou seu próprio filho em meio a esse turbilhão de dor? Sinto uma tempestade dentro de mim, uma fúria que deveria ser direcionada a você, mas que, de alguma forma, se volta contra mim mesma. Apesar de todas as suas falhas, meu coração teimosamente se recusa a abandonar o amor que ainda sinto por você. Não importa quantas vezes eu tente lançar a moeda do destino, ela insiste em cair na face do amor. Por favor, apenas volte… volte para o lar que ainda clama por você.
Três anos se passaram desde que o vilarejo foi abalado pelas atrocidades de Reich. Kreik, agora com 10 anos, e sua família sobreviviam à margem da sociedade, sustentados apenas pelo comércio clandestino que seu avô Gurren mantinha com viajantes desavisados.
Apesar dos esforços de Gurren, o dinheiro conseguido era insuficiente para cobrir as contas e os impostos. A família vivia com um padrão financeiro muito abaixo do que já desfrutaram.
Certo dia, enquanto Bella lavava a louça, uma tontura súbita a acometeu, seguida de uma tosse violenta. Um prato escorregou de suas mãos trêmulas e se estilhaçou no chão. Ela se apoiou rapidamente na pia, lutando contra a escuridão que ameaçava engoli-la.
Nos dias que se seguiram e as tonturas de Bella se tornaram mais comuns e mais fortes. Ela fingia estar bem, forçando sorrisos e disfarçando suas fraquezas. Entretanto, Gurren percebeu algo de errado, principalmente quando viu sua filha caindo no chão, o nariz dela sangrava enquanto ela tossia violentamente. Ele correu para ajudá-la, vendo o desespero nos olhos de Bella.
— Kreik, Kreik, eu não posso... — Bella chorava desesperada. — Não posso deixar meu filho sozinho, não posso morrer agora. O Kreik precisa de mim, por favor, pai, eu não posso morrer.
Gurren, sem aguentar a emoção, abraçou a filha com força. As lágrimas rolavam por seu rosto enquanto ele prometia:
— Eu vou dar um jeito, Bella. Não vou deixar você morrer assim, eu prometo.
Com o tempo, as tosses também se tornaram mais frequentes. Até Kreik percebeu que algo estava terrivelmente errado. Em um ato de desespero, Gurren pediu ajuda a um médico clandestino que comprava suas flores.
O diagnóstico foi sombrio: Bella havia contraído uma doença grave nos pulmões, potencialmente fatal. No entanto, havia esperança; o tratamento era simples, contanto que ela tomasse os remédios diariamente.
Gurren tentou adquirir os medicamentos no vilarejo, mas o ódio que ainda fervilhava pelas ações de Reich impedia qualquer venda. Assim, ele fez um acordo com o médico clandestino para trazer os remédios necessários.
Bella começou a apresentar leves melhoras, e a esperança começou a brotar na jovem. Ela voltou a sorrir, ainda que de forma tímida, e seus olhos recuperaram um pouco do brilho perdido. Gurren se encheu de determinação, acreditando que sua filha tinha uma chance real de sobrevivência.
A tragédia se abateu quando o Major Thorguen Brown descobriu as transações e prendeu o médico, cortando a única esperança de Bella. Desesperado, Gurren foi ao posto da GPA, onde foi forçado a se ajoelhar no pátio, aguardando ser atendido pelo Major.
Com o coração apertado e as lágrimas escorrendo pelo rosto, ele clamava silenciosamente por misericórdia, sabendo que o futuro de sua filha dependia daquele momento.
Thorguen emergiu do prédio, imponente e frio, e perguntou a Gurren, agora de joelhos:
— Qual a sua petição, florista?
Gurren, com a voz embargada pelo desespero, implorou:
— Senhor Major, eu lhe suplico, liberte o médico que me ajudava com os medicamentos. Minha filha morrerá sem eles.
Thorguen, com um sorriso cruel, negou o pedido:
— Lamento, mas o médico sofreu um… infortúnio na prisão. Essas coisas acontecem quando descumprem a minha lei.
— Senhor Major, por quê?
— Velho, apenas vá para casa antes que algum outro infortúnio venha a ocorrer. Dessa vez, com a sua família.
Gurren voltou para casa, desolado, e contou a Bella, acamada, que não havia mais esperança de conseguir os remédios. Foi então que Kreik, que ouvia a conversa escondido, por detrás da porta, com lágrimas nos olhos, entrou no quarto e disse com fé inabalável:
— Não se preocupe, vovô. Papai vai voltar com o remédio. Ele virá, eu sei.
Gurren, consumido pela raiva e pelo desespero, gritou:
— Chega de tolices, garoto! Seu pai é um demônio!
— Se meu pai é um demônio, então eu sou mesmo filho de um demônio, como todos do vilarejo dizem? — com o coração partido, perguntou o garoto.
Nesse momento, o coração de Gurren se partiu. Ele abraçou o neto com força e disse:
— Não, meu querido neto, não. Eu estava errado. Vamos esperar seu pai. Ele trará o remédio.
— Papai, leve Kreik para preparar o almoço. Quando o pai dele voltar com o remédio, ele vai querer comer muito — Bella sugeriu, tentando esconder sua tristeza.
Gurren levou Kreik para fora do quarto, enquanto Bella, sozinha, tirou de baixo do colchão uma foto dela, do filho e de Reich, tirada logo após o nascimento do menino. Ela sussurrou para a imagem desbotada:
— Volte logo, Reich. Não por mim, mas pelo nosso filho. Tire-o daqui.