Volume 1 – Arco 2
Capítulo 65: O Regresso Triunfante do Sábio Miserável
O que havia começado como uma desastrosa missão de resgate, para salvar uma garota indefesa das garras de um lobo-mal, transformou-se numa aventura emocionante. Guilherme não pôde esconder a satisfação do sucesso da sua primeira missão, ainda mais com uma recompensa tão valiosa em jogo.
Ao completar a dura caminhada, com o dia já amanhecendo, os três jovens conseguiram retornar para o sítio em segurança. Dona Mia, quando viu a filha, correu e abraçou-a com emoção.
— Eu estava com tanto medo, Felipa, que você não voltasse mais. Quando os lobos arrastaram você, eu quase morri. Se estivéssemos numa região menos perigosa, tudo seria diferente. — Chorando, ela soluçou. — Você não teria sido levada por aqueles lobos terríveis. Está ferida?
— A culpa não é do lugar, mamãe, é de um certo tapado, ah… deixa pra lá, estou bem, só machuquei o pé e tenho alguns arranhões. — Felipa sabia que os garotos estavam piores. — Foram eles que se machucaram demais para me salvar.
— Obrigada, você salvou a minha filha, é um herói de verdade! — Mia encarou o Sábio, com os olhos cheios de sinceridade.
— Acredite, não é para mim que deve olhar. — Guilherme tinha seus ferimentos, prova que também lutou, só que se sentiu desconfortável com aquele sentimento quente: a gratidão.
Não sou herói, droga!
Eu sempre quis ser reconhecido.
Mas não vou explorar um companheiro.
Eu não fiz nada.
— Sai, xô, xô... — disse a pedra. — Guilherme, essa bola de pelo não quer ficar quieta.
O filhote de onça dente-de-sabre testou as garras na pedra dando-lhe séries de patadas, ainda curiosa com a novidade, e lambeu o pedregulho, que reclamava dos abusos da gata, com extremo clamor.
Guilherme não podia resolver o rebuliço dentro da sua camisa porque tinha uma situação mais delicada para lidar com aquela família. Ele não ficou feliz com os elogios, já que sabia que procurar repetir os mesmo hábitos da velha vida era a mesma coisa que aceitar a derrota. Por isso, continuou a rejeitar as saudações daquela mãe emocionada.
Buscando uma forma para se livrar disso, apontou para Alonso e disse:
— Ele é o herói. Foi ele que enfrentou o lobo e salvou todos nós. — Não era a verdade, pelo menos não toda ela, mas para o sábio não importava, visto que só queria voltar para o posto de delinquente sem causa.
— É claro que foi Alonso que salvou vocês — disse Aliam, se aproximando, e a perna ruim não ajudava-o, ainda assim conseguiu ser rápido e alcançar a filha para dar-lhe um abraço apertado e emocionado. — O que um miserável poderia fazer?
Guilherme chegou a abrir a boca para responder, mas desistiu. De que adiantaria tentar convencer um homem tão ríspido de que o Sábio não era tão desprezível quanto parecia e que havia se esforçado para fazer o melhor? O que adiantaria isso se o próprio Sábio não dava a mínima importância?
Todavia, durante a batalha, ele fez o que estava ao seu alcance, lutou com todas as forças, ultrapassando seus limites, e isso ninguém poderia tirar dele.
— Essa distância que mantemos depois da batalha também é a maior das misérias... — Aliam parecia comovido. Sua filha o olhou, e então ele continuou: — Depois de servir a guarda dos pontas brancas em muitas batalhas, sei reconhecer o esforço de um soldado, e suas feridas e roupas contam uma outra história. É a coragem que importa, não a atitude. Por isso, Sábio Miserável, apesar da minha filha estar machucada, você cumpriu com sua palavra; obrigado por salvar minha amada filha.
Guilherme abaixou o olho bom e sentiu o coração bater forte. O sujeito que estava se esforçando para ser indiferente não sabia lidar com a gratidão. E, pelo jeito, nunca saberia entender esse sentimento.
— Não sei quantas vezes já disse que não quero elogios e agradecimentos. Isso não enche barriga e nem protege do frio — declarou. — Mas se quer falar de honra, cumpra sua parte do acordo e liberte Alonso da dívida de gratidão!
Essa lógica não era incomum nos miseráveis declarados, mais preocupados com lucros e um tanto preconceituosos com relação a sentimentos.
Aliam ouviu o desejo dos Sábio, sentindo-se mal porque entendia o que significaria.
— Muito bem! Quando te conheci, não gostei de você. E ainda não gosto! É ardiloso demais. — Ele suspirou, e depois encarou Alonso. — O que você quer garoto?
Alonso queria dizer que queria ir para a estrada encontrar LAST DOWNFALL, e cumpri a promessa que fez para a finada mãe.
Confuso, interrompeu a resposta ao lembrar que deixaria a família que o cuidou e que amava, criando uma resistência ao seu sonho. Afinal, um sonho não era nada se não tivesse alguém com quem compartilhar.
Mesmo conhecendo o peso da gratidão, ele se sentiu ofendido por fraquejar. Pois seu sonho, suas raízes e a memória da mãe, era maior que tudo.
— Traa, o que eu quero, senhor Aliam… — respondeu, tentando superar a indecisão momentânea. — Quero me juntar ao bando de mercenário de Guilherme e explorar o mundo!
— Você tem um bando de mercenário, garoto? Isso significa que sua fonte de energia é negativa e está escrito na guilda da caveira. Qual é a sua infâmia e o nome do seu bando?
— Sim, e sim! Não esqueça esses nomes, pois irá rasgar os céus: sou o Sábio Miserável, líder do bando coelho!
— Sábio Miserável? Quando você repetia isso, não era loucura sua, tinha um motivo. Porém, coelho é um nome horrível. Você quer ser a presa, não o caçador? — Aliam riu. — Você pensa que o mundo é brincadeira?
— Eu conheço o que esse mundo é capaz. — Guilherme colocou a mão sobre as bandagens do rosto. — A brincadeira acabou! Vai cumprir sua palavra e liberar Alonso, sim ou não?
Na verdade, as decisões importantes quase sempre eram tomadas em situações como essas, diante de um dilema, nos jogos de vida e morte. Aliam sabia muito bem disso; além do mais, algo obscuro naquele Sábio não tinha explicação.
Mas o que ele não podia recusar, era o olhar determinado de Alonso.
— Você deu sua palavra, querido — disse Mia.
— É o sonho dele, papai — completou Felipa.
— Eu honrei a minha promessa com sua mãe. Você não é mais uma criança, agora é um homem crescido capaz de fazer suas escolhas. Alonso, escute isso, as coisas sempre são maiores do que parecem, e no fim não resta quase nada. — Aliam cumprimentou o Crista de Galo. — Eu considero paga a sua dívida de gratidão comigo. Está livre para fazer o que quiser.
— Isso mesmo! Estava com medo que mudasse de ideia, velhote. — Guilherme foi até o companheiro, e o cumprimentou. — A estrada agora é sua!
O cabelo vermelho de Alonso estava em desordem. Respirando fundo, ele soltou um longo suspiro, deixando que a nova realidade fizesse parte da sua vida. Um lado dele estava triste, mas a tristeza fazia parte da mudança, era inevitável.
Guilherme mais que qualquer um entendia o que era deixar uma vida para trás, por isso sabia o que falar e como agir, e nessas horas, não precisava de muito.
— A aventura espera por nós, companheiro, sempre para frente, até encontrarmos nosso lugar e honramos nossas promessas. — o Sábio sorriu, dando força para o garoto com o olhar fundo demais — Você vai entrar para o meu bando?
— Sim! — Alonso não tinha dúvidas. — Traa, você precisa de mim, sou o escudo do bando coelho.
Os dois companheiros apertaram as mãos, selando o pacto. Depois comemoraram, felizes.
Quando já ia entrar no posto de atrapalhado inveterado, acomodado nas expressões de agradecimento, Guilherme encarou na outra mão de Alonso a espada que parecia, à primeira vista, confiável e afiada igual a tantas outras que já havia visto nesse mundo.
Uma onda de raiva inundou seu ser.
A reluzente lâmina, de gumes afiados e guarda sobreposta, cabia de forma perfeita na mão de Alonso, bem alinhada e ponta fina, como se estivesse pronta para retalhar o corpo de um inimigo. Logo veio à mente do Sábio as imagens da batalha com o lobo e, depois, parecendo nervoso, pegou a espada da mão do companheiro e a entregou para Aliam.
— Aqui, pega de volta esse pedaço de ferro inútil. Você diz se importar com Alonso, mas lhe deu uma espada tão cega que não é capaz de cortar pelo de cachorro.
— Você é cego, garoto? Esse seu olho aí não sabe reconhecer uma boa espada? Pelo visto, a vida de mercenário não é para você. Essa espada faz parte do meu orgulho de ex-soldado. — Aliam pegou a espada. — Toda manhã, antes de qualquer coisa, ilustro sua lâmina e a passo na pedra d 'água para nunca perder o brilho e o fio.
Perto deles havia um tronco, que pela aparência, era de madeira maciça, ideal para uma base de cortar lenha. Com movimentos simples, sem nenhuma habilidade especial e usando a espada, Aliam partiu o tronco em quatro pedaços.
— Veja, ainda tem dúvida da eficácia dessa lâmina? Não sei o que aconteceu, mas não zombe do meu orgulho, ou a sua cabeça será o próximo que essa lâmina vai partir ao meio.
Ãh?
Como assim?
Isso é impossível.
Essa espada não conseguiu arranhar aquele lobo nenhuma vez.
O que foi isso?
Será que aquele bicho era tão forte assim?
Ou será outra coisa?
Com receio de ter a cabeça aberta como a uma melancia, Guilherme não quis tocar mais no assunto já que não conseguiu pensar em nada que pudesse explicar o que tinha acontecido com a espada durante a luta, então deixou Alonso junto da família, para poderem aproveitar o momento entre eles.
Contudo, era evidente que ficou muito preocupado disso ser mais uma artimanha dos deuses.
Sem poder fazer nada a respeito, ele resolveu se afastar porque não suportava mais segurar os risos causados pela gata arranhando a sua barriga, brincando com a pedra.
Retirou o filhote de onça dente-de-sabre de dentro da camisa, e a acalmou em suas mãos.
Eu preciso pensar num nome para ela.
Ela é toda branquinha.
Tenho um monte de ideia legal…
— Se acalme pequenina, vou arranjar um pouco de leite para você.
Guilherme não acreditou, quando viu de trás do chiqueiro, sair o leitão Wiubor, que tinha todo o corpo coberto por ataduras, mas que parecia bem. O leitão se aproximou do Sábio.
— Wiubor, você tá vivo… — Guilherme ficou feliz.
— O ferimento feito pelo esporão do lobo não acertou nenhum órgão, também não tinha veneno — disse Aliam. — Com cuidados, ele vai sobreviver.
Guilherme se abaixou e fez carinho no leitão, que reagiu rindo.
— Obrigado por tentar me proteger. A gente acabou com aquele maldito.
Wiubor bateu os cascos contra o chão e girou o corpo demonstrando alegria.
— Pedra, nossa situação tá melhorando, não é verdade? — O Sábio deu um sorriso malandro e ergueu as sobrancelhas num gesto de entusiasmo.
— Concordo, desde que deixe afastado de mim essa catástrofe com pelos.
— Não seja implicante com ela. Em um só dia, eu consegui duas boas ferramentas, o escudo e as garras que defenderão nosso bando.
— Ferramentas não têm sentimentos. Eles serão nossos companheiros.
— Ah é, pedregulho? Já que pensa assim... — Colocou o filhote de onça dentro da camisa. — Então não vai se importar de cuidar dela mais um pouco, enquanto encontro um pouco de leite.
— Não Guilherme... xô, xô, xô, sai pra lá, xô, xô...
◈◈◈◈◈◈
O sítio estava destruído, mas não perdido, pelo menos parte da estrutura permanecia intacta e os porcos que fugiram para o bosque retornavam.
No meio da comoção familiar, Felipa permaneceu imóvel, esforçando-se para manter a calma e clareza mental. Seus olhos ansiosos encontraram os pais, cuja preocupação refletia-se em seus rostos. Já tinha alguns minutos naquela situação, no mínimo.
Além de lidar com a necessidade imediata de preparar unguentos para as feridas de todos, ela antevia um trabalho considerável para restaurar seu amado canteiro de ervas, que foi destruído de forma cruel pelos lobos.
— O que aconteceu com você? Ei, cabeça oca, Crista de Galo, me ajuda aqui, pode ser. Diz para essa dupla que estou bem, e que ainda tenho muito o que fazer — ela chamou pelo irmão.
Alonso, por um momento ficou indiferente aos apelos da irmã, uma vez que toda a sua atenção estava focada no Sábio conversando com a pedra.
Ele ficou confuso, até pensou que seus ouvidos estavam pregando-lhe uma peça.
Um festim de imagens começou a encher-lhe o cérebro, como num espetáculo de cores do amanhecer. Os lobos furiosos, os momentos confusos na floresta, o rosto incrédulo de Felipa, a seriedade de Guilherme tentando explicar que a simples pedra no colar era na verdade uma criatura mágica.
No fim, depois de pensar um pouco, deu de ombros e sorriu, e foi separar a irmã dos cuidados excessivos dos pais.
...