Last Downfall Brasileira

Autor(a): VALHALLA


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 64: O Sábio Miserável e o Gosto da Vitória - parte 2

O crepúsculo azulado das manhãs do solstício da lua azul caiu sobre o bosque, enchendo-o de vida. Pequenos animais começaram a sair de suas tocas, criando um delicado equilíbrio na floresta molhada pelo orvalho.

O centro da clareira foi iluminado pelos primeiros raios do sol, mas Guilherme não se importou. Queria evitar contratempos desnecessários para que o filhote de onça dente-de-sabre não os estranhasse ainda mais, sendo que ela permaneceu irritada o tempo todo, com as grandes presas à mostra e um olhar ameaçador.

As primeiras tentativas de aproximação que ele tentou não surtiram efeito, pois só serviram para deixar a pequenina fera ainda mais raivosa e ameaçadora.

Alonso se aproximou do filhote convencido que um golpe rápido e preciso era a melhor solução para o problema, então levantou, ou foi sustentado pela espada que parecia pesada em sua mão.

Felipa interrompeu o golpe de misericórdia do irmão.

— Nem pense nisso, seu maníaco! — Ela o repreendeu, dando-lhe um tapa na nuca. — Agora é assim, todo o bicho que você encontrar vai querer matar? É só um filhotinho e a mãe morreu para salvar a sua vida, por isso tenha um pouco de respeito.

— Não gosto disso — murmurou Guilherme —, mas a testud… digo, a Felipa tem razão. Só estamos vivos porque a onça deu uma surra na matilha de lobos.

— Traa, eu não sou ingrato. — Alonso conhecia bem até onde uma mãe era capaz de ir para proteger um filho, por isso ele abaixou a espada, se virou para o cadáver da onça e se inclinou, num sinal de respeito. — Obrigado por seu sacrifício, senhora.

— Seu cabeça oca… — Felipa riu.

— Do que você tá rindo? Nós ainda temos que fazer alguma coisa porque o filhote não vai sobreviver sozinho, isso é verdade.

— Vamos cuidar dele — disse Guilherme.

— Traa, é loucura. O que você vai fazer quando ele crescer e querer te devorar. As onças dente-de-sabre são devoradoras de homens.

Durante o período de incerteza, o filhote continuou agitado e na defensiva. Guilherme se aproximou e estendeu a mão esquerda na direção do felino, como se fosse acariciá-lo, mas o filhote avançou para mordê-lo. Guilherme então, tirou a mão rápido.

— Traa, viu só? Ele é um devorador de homens e já tem fome.

Guilherme coçou a cabeça e estudou o filhote.

Não vai ser simples assim.

Ele é arisco demais.

Ainda assim é um felino, mas é como os felinos da Terra?

Ele se aprofundou no estudo analisando o corpo da mãe também, e encontrou as tetas.

Ele é um  mamífero.

Hum…

É verdade, o instinto dos mamíferos pode sobressair a qualquer outro instinto, mesmo os predatórios.

Mas esse mundo não é a Terra, será que os instintos dos mamíferos vão reagir da mesma forma aqui.

Só há uma forma de saber!

Depois de espremer algumas das tetas geladas, ele encontrou uma que ainda tinha leite o suficiente para cobrir o dedo indicador da mão direita. Em seguida, com a mão esquerda tentou outra vez acariciar o filhote que reagiu atacando-a, só que desta vez Guilherme reagiu trocando-a pela a mão direita, estendendo-a na frente do focinho do filhote.

— Piss, piss, piss… — chamou ele, balançando o dedo banhado com leite.

O filhote sentiu o cheiro do leite e por um instante acalmou os reflexos, só que num movimento rápido, ele saltou e mordeu o dedo, tentando enfiá-lo inteiro dentro da boca.

— Traa, Guilherme, ele vai engolir você de uma vez só — disse Alonso, surpreso.

— Calma, calma… nem tudo que é estranho é monstruoso.

De novo o Sábio tentou aproximar a mão esquerda, só que dessa vez ele conseguiu tocar sobre a cabeça do filhote e acariciar as frágeis orelhas.

A reação foi imediata. O felino esfregou a cabeça na mão quente e começou a ronronar, sem sair do lugar, lambendo o leite ao longo do dedo.

Constrangido por haver se deixado amedrontar por um gatinho, Alonso comentou:

— O bicho é uma fera, traa, não sou cruel por pensar assim, fera é fera, e nunca vi uma criatura agir dessa forma... — Ele fez um gesto em direção à floresta escura e, então, olhando para os corpos dos lobos, perguntou com voz profunda: — Como é possível? Guilherme, você tem o poder de encantar as feras? 

— Ah, não é bem assim, caso contrário não teríamos tantos problemas com a matilha de lobos... — sussurrou Guilherme, animado, e lembrando da Terra, desceu a mão para fazer carinho no queixo do filhote e completou: ― Na minha terra natal, era comum a prática de adestramento de feras selvagens para o convívio com pessoas, até mesmo para espetáculos. Esse carinha é um mamífero, e quando se leva isso em consideração, fica ainda mais fácil criar um laço de confiança.

— Mamífero, o que é isso?

— De uma forma simples, são as criaturas que se alimentam de leite. 

— Esse cabeça dura aqui… — Felipa apontou para o irmão —  vive bebendo o leite das porcas, então ele é um mamífero também? — perguntou, considerando incrível a forma como o filhote se acalmou. — Toda vez que ele vier me torrar a paciência, vou poder deixar o tapado calminho com um pouco de leite?

— Bem, tanto eu, você, o cabeça dura, todos que bebem leite são mamíferos, claro, há considerações, mas outra hora eu explico melhor…

Felipa ficou chocada; era verdade que Guilherme havia se apresentado como o Sábio Miserável, e até pensou que fosse sandice dele, já que era inconcebível uma pessoa de sua classe ser um miserável. A lenda do Rei sábio, a rocha, era o melhor exemplo disso. Mas ao ver a forma como transformou o conhecimento em uma arma, ela começou a acreditar que ele poderia ser um sábio de verdade.

— Guilherme, eu ouvi muitas lendas sobre o Rei Sábio e nunca levei a sério, há muitas classes e a classe Sábia é rara demais para existir, isso até eu sei, os sábios são tocados pelos deuses para governar reinos. — Ela disse, perdida nas possibilidades. — Então é verdade, você é mesmo um sábio?

Guilherme não respondeu, apenas sorriu com um sorriso torto e contido.

Já existiu um Rei Sábio e pelo visto ele se ferrou bonito.

Eu não quero governar nada.

Eu vou incendiar esse mundo até as moradas dos deuses desabarem sobre as cinzas.

O filhote abocanhou o dedo de Guilherme, mas não foi para morder; em vez disso, passou a lambê-lo com agonia.

— Tadinho, ele ainda está com fome — Felipa ficou comovida. — Agora ele pensa que do seu dedo vai sair leite.

— Já ficamos tempo demais nesse bosque e não tô afim de mais surpresas, por isso só iremos enterrar o corpo da onça e dos filhotes como agradecimento, e depois vamos embora.

Tanto Alonso, quanto Felipa concordaram com a ideia de enterrar a onça e seus filhotes, e mesmo que estivessem feridos e o trabalho fosse difícil, eles acreditavam que era o certo a fazer.

— Guilherme… — chamou a pedra. — sepulte também os corpos dos lobos.

— Os lobos? — Guilherme sussurrou, insatisfeito.

— Honrar os derrotados é merecer a vitória!

Merecer a vitória?

Por que eu faria uma coisa dessa?

Isso não tem nada a ver comigo.

Ninguém se importou com a honra quando esfregaram o chão com a minha cara.

Não…

Foi isso que o Rei de Tróia, Priam, se referiu ao dizer para Aquiles que existia respeito entre os inimigos.

Tudo é questão de como quero ser lembrado, um perdedor ou um rei?

— A gente também vai enterrar os corpos dos lobos — disse Guilherme, por fim, olhando a linha azulada do crepúsculo desenhada no horizonte.

— Ah não, fazer isso vai dar muito trabalho. — Felipa até achava justo enterrar a onça, agora os lobos, seria um esforço ridículo.

— Traa, que os corpos deles virem comida para os abutres. Eles foram seus inimigos, não deve nada para eles.

— Esse mundo é sujo demais, vocês sabem disso, e é governado por inimigos. — Guilherme encarou os irmãos. — Terei muitos inimigos, ainda assim os inimigos se respeitam.

— Sabe, você pode até ser um sábio  — Felipa ficou admirada —, mas estou começando a achar que não é tão miserável assim.

— Ah, eu sou o que sou, se não quiserem enterrar os bichos, não precisam fazer nada…

— Traa, eu vou cavar as covas e você arrasta os corpos. — Alonso controlou o entusiasmo, vendo no sábio, um líder digno.

Guilherme percebeu que o filhote estava tremendo de frio, então o pegou e o aqueceu com os braços.

— Você vai mesmo ficar com essa fera? — Alonso ficou surpreso pela forma como o Sábio pegou o filhote de uma fera devoradora de homens como se fosse um inofensivo leitão, piscou e viu no rosto dele um sorriso.

Guilherme olhou entre as pernas do filhote em seus braços.

Ah, é uma fêmea!

— É claro que vou. Ela agora faz parte do meu bando, vai crescer e será as garras, você será o escudo, e só vai faltar a espada. Depois disso o bando coelho será o mais forte de todos. O nosso nome irá se espalhar com o vento por esse mundo.

— Traa, se eu entrar para o seu bando — disse Alonso, enxugando a testa molhada pela transpiração, e ainda que ferido e usando a estranha pá para cavar, ele começou a abrir os buracos, contudo, em pouco tempo já havia finalizado a metade das covas necessária para enterrar todos os corpos. — Se a gatinha será as garras e eu o escudo, o que você é?

— Ora, o líder. Sou o cérebro do bando coelho!

Felipa começou a rir e disse: — Você está muito encrencado, meu irmão.

— Calem a boca, os dois, e venham me ajudar, não vou cavar sozinho. Esqueceram dos meus machucados, vocês são cruéis demais. Traa, tudo que quero agora é uma tigela bem cheia do caldo da dona Mia.

— Sim, sim... — Felipa continuou a rir e foi ajudar.

— Vamos usar a espada. — Guilherme também foi ajudar. — Pelo menos esse pedaço de ferro inútil tem que servir para cavar.

— A senhorita Felipa tem razão — comentou a pedra. — Ainda bem que Alonso é forte e corajoso.

— Pedra, até você?

Guilherme decidiu tirar o filhote do frio, pois o vento estava muito forte para a pelagem curta dela suportar. Mas a gatinha era teimosa, e resolveu brincar com os dedos da mão do Sábio. Só que ao ver a abertura da camisa, ela se enfiou dentro e começou a se esquentar, roçando na pele quente do Sábio.

— Pedra, o filhote é muito novinho para ficar no vento, só que não vou aguentar com ela se esfregando em mim dessa forma, por isso faz alguma coisa para a distrair.

Guilherme não esperava muito, na verdade foi uma ideia tola, já que para qualquer pessoa ou criatura, sua besta era só uma pedra comum, por isso não poderia fazer nada, nem mesmo distrair um filhote de onça. 

— Não sou distração para  miniaturas de feras, ah, tudo bem... piss, piss, gata, aqui, gata, gata...

O filhote reagiu ao chamado da pedra e foi para cima dela, e começou a morder e bater com a patinha.

— Ah, para, Guilherme, isso foi uma péssima ideia, tira esse bicho de cima de mim.

Hã?

A gata ouviu a pedra?

É impossível.

Só eu que posso ouvir a besta lendária da sabedoria.

Não é achismo meu, já tive prova disso várias vezes.

Mas se a pedra mentiu para mim? Se ela puder falar com quem quiser? O que mais será mentira?

Não, não…

Se a pedra pudesse falar, depois de tudo que passamos, ela não revelaria esse segredo de uma forma tão idiota. 

Só é uma coincidência, a gata só se sentiu atraída pelo formato da pedra e foi brincar.

É só isso!

No fim, o Sábio ignorou sua intuição e apenas riu do mal-estar da sua besta com o novo membro do seu bando. Depois foi ajudar os irmãos a cavar as covas. Quando terminaram de enterrar o corpo da onça dente-de-sabre, dos filhotes e dos lobos, fizeram os últimos agradecimentos e foram embora, orgulhosos.

Essa foi a primeira vitória do meu bando.

Tenho certeza que as coisas serão diferentes a partir de agora.

Que bom, que bom.

...



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