Last Downfall Brasileira

Autor(a): VALHALLA


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 63: O Sábio Miserável e o Gosto da Vitória

O olho de Guilherme percorreu os rostos ao seu redor, passando muito rápido de um para o outro. Ele fixou Felipa com olhos cheios de ódio, lançando suspiros de repreensão em direção à Alonso, que permanecia ereto, com o rosto imóvel. A enorme rocha sobre a cabeça do lobo inclinou-se um pouco para o lado. Ao aceitar a vitória, uma alegria irracional se apoderou do olhar do Sábio.

— O lobo não vai mais levantar. Pedra, acabou o tormento, esse desgraçado morreu — disse ele, assumindo uma postura segura, no entanto, a voz era rouca, como se os sentimentos que quisesse mostrar fossem outros.

— Parabéns pela vitória… só que, você não se sente bem com isso, veja bem, não precisa sentir medo dos seus novos sentimentos.

— Você... o que quer dizer com isso?  — Um sorriso cauteloso acompanhou a pergunta.

— Nem tudo que alegra é belo!

— Tá errado, fiz isso por mim mesmo, pedra. Sabia o quanto Alonso se preocupava com a irmã, uma boa forma de motivação. Nada mais justo que fosse ele a pôr fim nesse bicho. Por causa disso, a gente se livrou da matilha de lobos cinzentos.

— Você acredita que não merece a felicidade, mas tem outro sentimento mais nobre dentro do coração. É difícil para os que vivem na vergonha reconhecer. Pode usar a desculpa que quiser para negar, só que hoje  você protegeu amigos, lutou contra um terrível inimigo e venceu o receio de matar. O orgulho é um sentimento maravilhoso.

— Orgulho… — disse, envergonhado, ao lembrar do número de vezes que se escondeu dos desafios da antiga vida na Terra.

— Oh… — chamou Felipa, encarando o Sábio enquanto parecia que ele falava sozinho — por que eu não consigo escutar a pedra?

— Que diferença faz, você não acredita mesmo.

— Não acredito mesmo, para mim você é maluco. Só que tudo no mundo é loucura, e você parece o mais louco de todos.

— Nem vou tentar explicar. — Guilherme foi indiferente. — Mas fique grata pela pedra, porque mesmo sem se mover, nós só vencemos por causa dela.

— Ta, ta, ta… — A garota se aproximou mais e deu um peteleco na pedra, não de uma forma jocosa, mas descontraída. — Obrigada pedra, continue mantendo esse maluco na linha.

— Gentil senhorita, essa tarefa está cada vez mais rochosa.

— Pedregulho, se você tivesse língua, juro que já teria arrancado ela da sua boca.

Felipa não entendeu, mas sentiu uma vontade enorme de rir.

Guilherme não soube o que pensar daquilo, e reagiu dando um passo para trás. A mente cansada e perturbada o interrogava sobre os motivos que o haviam levado a uma vida reclusa, mas ele conseguiu ignorá-la, pois sua besta lendária estava certa; o sentimento de orgulho era intoxicante demais.

O que aconteceu naquela bosta de vida não importa mais.

Eu vou ser diferente nessa nova vida!

O Sábio se agachou ao lado do corpo do lobo e moveu a grande rocha para o lado, revelando a imagem grotesca: a cabeça da fera esmagada. Entre os miolos, encontrou sua estranha pá e a espada.

Ele pegou a pá, que estava toda suja de miolos, no entanto não se importou muito. Após bater a pá contra a rocha, a maior parte da sujeira se desprendeu dela. Em seguida, enrolou a bandagem no rosto e cobriu as horríveis cicatrizes. Era como se tentasse esconder uma sensação sinistra, mas não sabia o porquê nem para quê.

Alonso também se agachou próximo do corpo do lobo, com dificuldade, já que o sangue havia esfriado e a dor dos ferimentos aumentado de forma considerável. Ele apanhou a espada.

Felipa se aproximou do Sábio e deu-lhe um tapa na nuca; ela não havia aceitado bem a forma como ele a tinha evitado antes. Eles se fitaram com ardor, e a garota, por fim, falou, tentando sair daquela situação embaraçosa em que se enfiou:

— Você que obrigou meu irmão a jogar a pedra na cabeça do lobo, não foi? Quer transformá-lo num monstro como você?

— Não, ele nunca seria como eu… Até porque, não obriguei ninguém a fazer nada, não é mesmo, Alonso?

Felipa encarou o irmão.

Alonso apenas sorriu, em resposta. Passou a mão pelo cabelo rebelde, tentando em vão tirar a mecha cor de fogo que teimava em lhe cair na testa. Logo em seguida, ele abriu a boca do lobo e usou a ponta da espada para arrancar um dos longos caninos da fera.

— Não faz isso, Alonso — pediu Felipa. — Profanar o corpo dele já é demais.

— Traa, por quê? Nós vencemos, ele perdeu, temos direitos aos espólios.

— Porque você quer arrancar o dente dessa coisa? — perguntou Guilherme. — Vale alguma coisa?

— Não sei, deve valer alguma coisa em algum lugar. Eu não faço por prata. Na minha terra natal, os grandes guerreiros usavam como adornos partes de suas presas para fortalecer seus espíritos nas batalhas.

— Ah, legal…

De novo isso…

 Almas e espíritos.

Juntando com o deus das almas, Sjel, tudo tá conectado.

Só que não consigo ver o ponto principal que une tudo numa coisa só.

Alonso é mesmo um herói?

Ele será meu inimigo?

Preciso levar em consideração que hoje, ele quase morreu e nada aconteceu.

Nos enredos das novels e animes, é nessas horas que os personagens especiais despertam o poder oculto.

Não, eu sou um herói, esse mundo quis me matar várias vezes e nada aconteceu.

Esse isekai não foi construído com um enredo genérico.

É o mundo de uma maluca.

Tenho que pensar diferente.

O que não estou vendo? 

Alonso arrancou o dente e o enfiou dentro das calças.

Guilherme tinha muitas dúvidas sobre Alonso, mas os últimos dias e a batalha os tornaram íntimos demais. A melhor estratégia quando não se tem certeza sobre algo é mantê-lo por perto; então, ele se concentrou no desejo do seu coração, olhando para o garoto de cabelo tom de fogo.

— Alonso, eu vou criar o bando de mercenários mais forte que será conhecido pelo mundo inteiro!

— Você? — comentou Felipa. — Até parece, precisaria morrer e nascer de novo mil vezes.

Guilherme engasgou, só que conseguiu ignorar a garota e continuou: — Quero que você entre para meu bando e juntos vamos viajar, encontrar grandes tesouros e viver as maiores aventuras.

Alonso mostrou-se surpreso, esfregando a rala barba no queixo.

— Tem certeza. Você tinha dito que queria seguir sozinho a sua jornada.

— Eu fui um idiota. Com sua força e coragem, junto do meu conhecimento, seremos invencíveis; seja o escudo do meu bando. Vamos juntos explorar os mistérios e segredos do mundo, até mesmo encontrar Last Downfall. O que me diz, quer caçar aventuras? — Guilherme notou, então, que Alonso o olhava com um sorriso pesado.

— Não posso responder, ainda tenho assuntos para resolver.

— Eu sei, mas resolva-os rápido. Aliam não vai me deixar ficar mais na casa dele, e irei partir. Quero que seja junto de você, um companheiro.

Alonso sorriu, dessa vez mais leve e tranquilo.

Felipa sabia o que aquele convite significava, e estremeceu ao imaginar que talvez o irmão nunca mais voltasse a ser o mesmo se continuasse junto do Sábio Miserável e que, de certa forma, seria o melhor para a vida dele.

— Você quer mesmo virar mercenário, Alonso? — Ela perguntou.

Alonso não respondeu, só que seus olhos brilharam.

— Pera, não é só virar, não é assim que funciona, além do mais, ele ainda não tá pronto, é bondoso demais, mas com os meus conselhos vai chegar lá: tem jeito para a vida de mercenário. — Guilherme brincou, e depois passou a estranha pá na aba do vestido da garota, limpando a sujeira da lâmina.

— Que nojo, o que é isso no meu vestido… Ahhh, miolos de lobo.

Felipa deu uma sequência séria de tapas em Guilherme. Só então ela notou que no olho bom dele tinha um brilho diferente, intenso e confiante, muito diferente daquele trapo humano que ela tirou do rio, então também ficou feliz.

O Crista de Galo aceitou a situação cômica, divertindo-se com ela. Já considerava o Sábio um amigo, e aquele momento era ideal para concluir a missão de resgate. Colocou-se no fim, gargalhando e fazendo piadas sobre a roupa suja da irmã. 

Não adiantava querer se aprofundar naquele momento de descontração, porque, mesmo tendo vencido a fera, eles estavam em um lugar perigoso. Assim, Guilherme deu de ombros e, como era o que estava em melhor condição física entre todos ali, foi recolher as tochas espalhadas antes que se apagassem, enquanto Felipa enchia Alonso de tapas, ignorando seus ferimentos.

— Os irmãos são boas pessoas. É fascinante essa sensação, de dever cumprido, de estar entre amigos, não é mesmo?

Guilherme se sentia desconfortável com a palavra amigo, por isso se esquivou, respondendo de forma aleatória: — Pedra, a gente precisa sair desse lugar primeiro antes de pensar sobre qualquer coisa.

No regresso para o sítio, Guilherme assumiu o posto de vigia, procurando impedir que algo ruim acontecesse e, se percebesse alguma movimentação na mata, chamaria os irmãos. Estava com uma das tochas e a sua estranha pá.

Alonso e Felipa iam na frente, um dando suporte ao outro, para que pudessem caminhar, apesar dos ferimentos, pelo terreno irregular do bosque.

O grupo começou a cruzar a clareira onde estava os corpos dos lobos e da onça dente-de-sabre.

Felipa bocejou e o Sábio focou o olho bom nela. De modo visível, ela estava exausta, parecendo muito frágil, segurando o irmão contra o ombro, no conhecido gesto de bengala. Ela ainda carregava a outra tocha. No fim, diferente da impressão intransigente que tinha dela, a garota se mostrou forte e zelosa.

Alonso estava em uma situação crítica, mas empunhava sua espada, demonstrando disposição para enfrentar qualquer ameaça. Guilherme usou seu cachecol para fazer uma atadura na coxa ferida dele, e as marcas de dentes em seu ombro haviam parado de sangrar por conta própria, embora ainda fosse uma visão preocupante. Cada passo do Crista de Galo provocava dor, e sua expressão confiante cedia a uma careta de agonia; estava claro que o retorno seria difícil, ainda mais considerando o árduo caminho de volta para o local.

— Guilherme, um momento, há algo respirando — avisou a pedra —, uma fera ainda está viva.

O Sábio respirou fundo, nervoso. Embora tivesse experimentado o gosto da vitória e da confiança, não podia ignorar o fato de que, se fossem atacados agora por um remanescente da matilha vingativa, seria desastroso.

— É um lobo? Consegue dizer onde ele está? Essa fera também deve estar muito ferida. Eu vou atraí-la para outra direção. Não vou avisar Alonso e Felipa; vamos mantê-los longe do perigo. Não quero que se machuquem mais. Você e eu cuidaremos disso.

— Espere, não é um lobo, é outra coisa. A respiração é mais fraca, mas não está ferida, porém está faminta. Debaixo do corpo da onça dente-de-sabre, é lá o esconderijo da pequena criatura.

Pequena, hum…

Será?

Nesse caso acho que não faz mal dar uma olhada, só por segurança.

Guilherme se aproximou do imenso corpo da fera, percorrendo-o com o olho bom os lugares que algo poderia se esconder. 

— Miauuuu! — Ele ouviu um frágil e agudo miado.

Opa!

— Ei, vocês, esperem um pouco.

— O que foi, viu alguma coisa? — Felipa perguntou. — Se for outra brincadeira, vou te enterrar nessa floresta. Por sua culpa, preciso de um banho urgente.

O Sábio tentou descobrir o esconderijo da criatura naquele grande corpo rígido. Um dos possíveis chamou sua atenção por estar próximo das tetas. Ele inseriu a mão por baixo e tateou até tocar algo pequeno e quente, depois puxou para fora.

Ele sentiu uma fisgada na ponta do dedo, pareceu que a pele havia sido espetada com agulhas. Soltou o bicho, que em seguida, tentou voltar para o esconderijo, só que não podia mais se enfiar debaixo do corpo devido à rigidez do cadáver.

Então os três puderam observar por completo a silhueta do pequeno felino. 

— Ah, não acredito, é um filhote — disse Felipa.

— Pode até ser, mas os dentes dele já são afiados — acrescentou Guilherme, esfregando a ponta do dedo. 

— É diferente dos outros — disse Alonso, levantando a espada.

Alonso tinha razão, aquele filhote era diferente da mãe e dos irmãos, na verdade, ele era estranho de uma forma perturbadora. A pelagem era branca e não tinha as marcas onduladas pretas, comuns nas onças-dente-de-sabre, apenas algumas manchas marrons espalhadas pelo corpo. Porém, a característica mais desconcertante eram os olhos, tanto a retina quanto o globo ocular, na cor vermelha. 

Nesse instante, Guilherme se deparou com o olhar ameaçador do felino. Apesar de ser um filhote, demonstrou valentia e vontade de viver. Os olhos vermelhos brilhavam como dois rubis e ele exibiu os dois grandes e afiados dentes.

Ele não é como a mãe.

Por que?

Ah sim, claro, é um albino.

O animal sentou-se ereto e apenas virou a cabeça para encarar os três jovens, com uma incomum voracidade.

— Ele é um monstro — disse Alonso.

— Ele não é um monstro, apenas nasceu diferente, é um albino.

— Albino? — perguntou Felipa. — É uma raça diferente? Ele é filhote da onça dente-de -sabre, como ele pode ser diferente da mãe?

— Bem, é uma característica rara, mas pode acontecer…

Nesse instante o filhote rosnou.

— Traa, não dou a mínima para o que aconteceu como ele, só sei que é um devorador de homens. — Alonso levantou a espada, sem pensar duas vezes, estava pronto para dar um golpe. A questão principal era que o filhote não se parecia com nenhuma das onças dentes-de-sabre que ele conhecia, por isso era estranha e perigosa. — Monstro ou não, não vai sobreviver sozinho. Vou trazer a boa misericórdia para essa criatura.

...



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