Volume 1 – Arco 2
Capítulo 62: O Sábio Miserável!
No centro do palco sangrento, com o suor e sangue escorrendo pelo rosto, cada uma das suas cicatrizes latejando e os gritos ensurdecedores da Felipa, Guilherme se viu em um momento decisivo. Seu coração batia com ferocidade, a respiração era ofegante, e a tensão no ar estava tão palpável quanto um lençol.
Seus instintos gritavam que esse era o ponto de virada, o gatilho do disparo em que sua determinação superaria a sua fraqueza. Nesse momento, a linha entre a vitória e a derrota era fina como um fio de seda, e sua decisão final moldaria sua vida de mercenário e a sua aventura nesse mundo.
Com o olho bom focado e músculos exausto, Guilherme respirou devagar a fim de se recompor, determinado a alcançar a glória da vitória.
Ele estudou a forma como o lobo mordia Alonso, deixava toda parte podre do seu rosto à mostra, e perto de Alonso, encontrou a espada caída no chão. Então, como uma onda revirando a sua memória, ele lembrou da sua luta contra o rato cauda-de-navalha, na floresta dos sussurros.
É como naquela vez que o rato agarrou minha perna.
O olho é a fraqueza.
É isso!
Felipa viu o Sábio, mais uma vez, mergulhar em seus delírios, e por um momento acreditou que fosse apenas uma fuga covarde da realidade. No entanto, desta vez foi diferente, pois logo em seguida sua expressão mudou, adquirindo traços maquiavélicos. Ele pegou a espada e contornou o corpo da fera, parando diante do rosto apodrecido.
No primeiro instante, ela ficou confusa, tentando entender as ações do Sábio contra uma criatura invencível. Cada golpe de espada, cada pancada com a estranha pá, tudo que eles tentaram foi inútil diante da força da fera. Até Alonso, que é muito forte, não foi capaz de matar essa coisa. Encarando essa realidade, o que um garoto que nem sabe como segurar uma espada poderia fazer?
Contudo, quando ela compreendeu a intenção de Guilherme, sentiu-se a pessoa mais burra do mundo. Tanto ela quanto o irmão fizeram tudo o que puderam e não conseguiram vencer a luta, mesmo que a resposta estivesse sempre diante deles e não a tivessem visto. Isso causou um choque tão grande que a garota se calou e apenas observou.
— Desculpe exigir mais de você, sei que tá doendo muito… — O Sábio cumprimentou com um gesto positivo o Crista de Galo —, mas você pode segurar ele mais um pouco? Isso vai acabar agora!
— Traa, acaba com a raça desse maldito… eu aguento, não tá doendo nada, consigo segurar esse lobo até o fim do mundo.
— Mentiroso… — Guilherme esboçou um meio sorriso.
Antes de mais nada, o Sábio percebeu que a área do rosto do lobo que estava em carne viva era a mais vulnerável, e que até mesmo um graveto poderia penetrá-la com facilidade. No entanto, também compreendeu que a responsabilidade de matar o lobo recairia sobre ele. Essa ideia fez suas mãos tremerem.
Posicionou a espada sobre a cabeça do lobo, de modo que a ponta pudesse penetrar o canal apodrecido do olho e alcançar o cérebro. Mesmo com as mãos trêmulas, ele continuou, e a lâmina atravessou a carne apodrecida com facilidade. A cada tremor do grotesco corpo e gemido de dor da fera, a determinação em seu coração enfraquecia, até que a espada encontrou o osso maciço do crânio e parou.
A situação crítica e o corpo fraco deixaram o lobo em pânico. Com grande esforço, conseguiu manter a pressão da mordida. Ele não tinha mais forças, contudo, se soltasse, não conseguiria se recuperar, tornando-se uma presa fácil para essas bestas humanas.
Ele sentiu a espada atravessar sua carne; foi horrível. No entanto experimentou o alívio ao perceber o humano fraquejar, agindo de maneira estranha, evitando cravar a espada até o fim, trêmulo, como se temesse o ato de matar. Por um momento, pensou que toda a maldade que havia visto escapar das trevas em seu olho esquerdo fosse apenas uma ilusão. Este humano nunca passou de um fraco e covarde.
Não há alívio longo o suficiente, pois o corpo do lobo se arrepiou ao perceber que o humano permanecia imóvel, mantendo a espada cravada no fundo de seu rosto. Acima disso, o que lhe causou o medo da morte, foi enxergar uma gosma preta escorrer da profunda e escura cavidade daquele olho maldito. E dentro desse olho, havia outro olho, olhando-o, desejando sua alma com uma fome infinita.
O osso do crânio era duro demais para atravessar só com sua força. Então o Sábio decidiu usar a sua estranha pá. Só que ainda restava um obstáculo para vencer: o receio de matar.
Não foi minha culpa.
Eu não tinha força para salvar ele.
Mas o cheiro do sangue foi tão horrível.
Para, para.
Agora é diferente, eu posso salvar Alonso e Felipa.
Mas não quero matar nada!
Ao sentir-se um miserável impotente, Guilherme percebeu que seu coração voltou a pulsar descontrolado, embriagado pela dor aguda que se originava da cavidade do olho esquerdo e se espalhava pelo restante do corpo.
O seu inimigo era uma fera que só lhe causou dor e sofrimento, e agora ameaçava seus amigos, ainda assim, era correto matar?
— Guilherme, matar ou morrer? — disse a pedra.
— Não existe tristeza em vencer uma batalha — aludiu Alonso, rangendo os dentes.
Felipa, vendo a indecisão de Guilherme, gritou: — ISSO, MANDA ESSA COISA PARA O VALE DOS MORTOS. — Ela reconheceu a natureza dele. — SÓ VOCÊ PODE FAZER ISSO, PORQUE VOCÊ É O SÁBIO MISERÁVEL!
A cólera brilhou como fogo no olho bom do Sábio, que posicionou a estranha pá acima do cabo da espada e bateu nele da mesma forma que um martelo faz com um prego.
— Plak… — A lâmina da espada penetrou ainda mais na carne apodrecida. — Plakkk… — Sangue e pus respingaram por toda parte.
O olhar apavorado do lobo encontrou o olhar determinado do Sábio.Esses dois inimigos sempre souberam se comunicar através de seus olhares, o que era curioso, pois ambos possuíam apenas o olho direito. Através desse olhar, Guilherme se despediu de seu primeiro grande inimigo neste mundo: no fim, vejo que não te odeio tanto assim; obrigado, você me ajudou a superar a minha principal fraqueza, a partir de agora poderei ser muito mais forte, adeus, agora, MORRA!
Levantou a pá muito alto, parecia que iria alcançar as estrelas, e lançou-a contra o cabo da espada usando toda a força dos músculos e da gravidade.
— Plakkkkkkkk…. — A lâmina rompeu o crânio, atravessou o cérebro e varou pelo pescoço.
Alonso sentiu o corpo da fera dar um espasmo poderoso, logo depois ficou mole, e a mordida perdeu pressão, então ele a soltou. Desprendeu a mandíbula que estava agarrada ao seu ombro e o empurrou. Dessa forma, o imenso corpo desfalecido do lobo caiu de lado.
Felipa largou a cauda, que caiu sem forças no chão. Admira e feliz pela vitória, ela contornou o corpo imóvel para olhar a expressão na fuça do maldito lobo, e foi aterrorizante perceber que ela ainda estava respirando.
— O quê? Ele ainda está vivo — falou surpresa.
Guilherme já esperava por isso, porque, no primeiro embate entre eles, o lobo conseguiu sobreviver à varinha com gosma ácida e desde então sua vida virou um inferno. Só que foi assustador ver o bicho ainda respirando com uma espada atravessada em sua cabeça.
Na Terra, vez ou outra, apareciam nos jornais casos de operários que tiveram o crânio atravessados por vergalhões, sobreviver, e tempos depois voltarem para o trabalho.
Ainda assim, isso é bizarro demais.
Eu não posso cometer o mesmo erro duas vezes.
Esse desgraçado tem que morrer.
Olhou para o lado e viu a rocha que havia tropeçado durante a batalha. Era uma espécie de granito, ou coisa parecida. Contudo, era grande e dura o suficiente, e isso era o que importava.
— Hhe… hhe… hhe… Alonso, aa rrocha…
Alonso achou difícil acompanhar a gesticulação estranha do Sábio, só que ao ver o olhar dele direcionado para a grande pedra, entendeu a sua intenção.
— Sim — concordou.
Seu corpo estava muito cansado e nem queria pensar no estado da sua coxa, e a rocha era muito pesada, só que depois de tanta dificuldade, não iria ceder ao esforço final. Com um esforço absurdo, conseguiu erguer a pesada pedra.
— Isso é impossível, como ele ainda pode estar vivo? — Felipa estava focada na cabeça do lobo, conferindo se a ponta da espada varou no pescoço, por isso não viu o movimento dos garotos.
— Nada demais, não é surpreendente — disse Guilherme, indiferente.
Guilherme se aproximou também e analisou o corpo, que além da fraca respiração, estava imóvel; queria ter a certeza que nunca mais precisaria lidar com esse problema.
— Na Terr… digo, uma vez que tem noção da formação do cérebro. — Ele apontou para a própria cabeça. — sobreviver após um ferimento desse, não é nada surpreendente.
—Você está falando da cabeça? Você sabe o que tem dentro da nossa cabeça, como?
Guilherme viu Alonso se aproximando, carregando a enorme rocha. Ele se levantou e se afastou.
O lobo abriu o olho e, fraco, observou a situação ao seu redor. Sua respiração tornou-se ainda mais enfraquecida, perdendo de forma gradual a capacidade de fornecer ar aos pulmões. Então, viu o Sábio Miserável encará-lo, e as trevas da cavidade do olho esquerdo pareciam ganhar vida, formando garras diabólicas. Sentiu um medo avassalador de ser devorado por aquela escuridão sem fim.
— AHinauuu…— ladrou derrotado e fragilizado.
Apesar do corpo monstruoso, ele lembrou um cãozinho, ferido e abandonado num acostamento de estrada.
— Ahinmm, o que é isso, maldito? Agora? Tá de sacanagem comigo? — Guilherme fez sinal positivo para Alonso.
Uma onda inesperada de medo inundou o coração de Felipa. Ela havia evitado considerar a possibilidade do lobo ainda conseguir lutar o tempo todo. Ao ver a criatura suplicar por sua vida, contudo, uma vez tão poderosa, substituiu o medo por compaixão. O lobo moveu a cabeça, e a espada cravada na cabeça se moveu. A dor, sem dúvida, era agoniante, mas a fera continuava a lutar com todas as forças pela vida.
— Ele quer viver — disse Felipa, comovida. — O que vamos fazer, a gente não pode deixar ele assim?
Alonso se aproximou carregando a rocha, e sem dizer nada, a jogou em cima da cabeça da fera, esmagando-a por completo.
— Pronto, agora morreu! — Guilherme falou de forma seca.
Parte dos miolos do lobo esguicharam, alcançando Felipa. — Ah! O que foi isso? — perguntou ela, retirando parte do cérebro do seu pé. — Você enlouqueceu, Alonso?
Alonso deu de ombros e apontou o dedo para o lobo morto. — VOCÊ PERDEU, EU VENCI… — Ele comemorou. — Nunca deveria machucar a irmã dos outros.
De repente, Guilherme sentiu o seu corpo esquentar e tentou entender o que estava acontecendo, o fenômeno, que além do calor, ainda fez a sua pele brilhar como se fosse uma lâmpada.
— O que, que, que, que é isso? — Ele ficou aterrorizado e confuso.
— O que foi? — Alonso não entendeu a aflição do Sábio. — Vencer lhe deu dor de barriga, traa? — Começou a rir.
Eles não estão vendo isso.
Fala sério.
Estou brilhando que nem um vagalume
Por quê?
O brilho reluzia com intensidade crescente, para desespero de Guilherme, enquanto seus companheiros permaneceram indiferentes, sem compreender o que estava acontecendo. Alguns segundos depois, o brilho desapareceu, e ele não sentiu mais nada, exceto uma gigantesca fome.
Droga, o que foi isso?
Foco idiota. Você sabe muito bem o que essa reação significa.
Ohh, Será?
Isso mesmo idiota.
Aumento de nível!
Faz sentido, por isso o brilho e a fome, o corpo precisa suprir as novas pontuações.
Mesmo assim, muita coisa não faz sentido.
Se foi isso mesmo, pera... não fui eu que dei o golpe final no bicho. Por que também ganhei XP? Mas participei da batalha, será que é XP compartilhado?
Será XP por experiência ou morte de inimigo.
Mas… nem Alonso e nem Felipa brilharam.
O que isso significa?
São muitas dúvidas.
Por que só eu consigo ver?
Foi a mesma coisa, quando a vadia da Menma, Orquídea de Sangue, usou a magia dela, só eu que vi a sua base. Também a mesma coisa quando usei a minha habilidade na frente da Felipa, ela não viu nada.
Droga, o que tudo isso significa?
Vou precisar estudar o meu fichário do jogador e apertar a pedra para ela contar alguma coisa.
Mas com calma, agora só quero sair desse bosque assustador.
Ainda confuso com todos os fenômenos misteriosos, ao sair da toca do coelho, Guilherme avistou Felipa agachada junto ao corpo do lobo. Nesse momento, a parte rasgada de seu vestido se abriu ainda mais, revelando sua roupa íntima, parte da bunda e o ferimento causado pelas garras da fera.
— O sangue do corte tá ficando preto — disse Guilherme, inocente, apontando para o corte com sangue seco. — Você tá bem?
Felipa notou para onde Guilherme estava apontando e, furiosa, interpretou as palavras dele de outra maneira: a sua calcinha é preta? Posso cheirar? Que por coincidência, a calcinha dela era preta mesmo. A garota se levantou como uma fera, ainda pior que o próprio lobo, ignorando a dor do pé ferido, o corpo exausto, a física, e deu um mega-ultra tapa na cara do garoto de aspecto abobado.
— Pervertido, não vai cheirar nada!
Com o tabefe na cara, Guilherme rodopiou todo o corpo. Não foi efeito de palavras, e não consigo explicar os efeitos sexuais na física desse mundo, em todo caso, o pobre Sábio girou como um pião e caiu no chão. Da mesma forma que um ágil coelho, ele logo se levantou como se nada tivesse acontecido e retirou o seu capelet, estendendo-o para a garota.
— Pega, pode usar!
Felipa aceitou, e meio sem jeito o enrolou em volta da cintura e agradeceu, toda envergonhada: — Obrigada!
Alonso rachou de rir, e foi até os dois, passou o braço no ombro de Guilherme e puxou Felipa para perto, e então disse orgulhoso: — Traa, vencermos!
Com a cutucada animada do Crista de Galo, a ficha do Sábio caiu e a sua letargia sentimental se partiu em vários pedaços.
Após enfrentar desafios terríveis e superar obstáculos que pareciam intransponíveis para um humano comum, Guilherme alcançou uma vitória verdadeira, a primeira em toda sua vida, as duas vidas.
A emoção que inundou seu coração e mente naquele momento foi indescritível. Uma lágrima escorreu do seu olho bom e se misturou com o sorriso triunfante, enquanto erguia o braço em celebração.
Porra…
Eu consegui!
...