Volume 1 – Arco 2
Capítulo 60: O Sábio Miserável e as Trevas do seu Coração
Logo após remover as bandagens do rosto e revelar as terríveis cicatrizes, Guilherme concentrou-se no lobo, pressionando com força o punho de sua estranha pá. Havia muito em jogo nessa batalha final contra o vingativo inimigo, e ele não podia permitir que a fera fosse atrás dos irmãos. Desde que conheceu Alonso e Felipa, sua perspectiva sobre a vida havia mudado, e ele desejava preservar esse novo sentimento a qualquer custo.
Só que ele não tinha forças para proteger ninguém, e isso era um fato que não mudaria apenas com coragem.
Sou tão fraco…
Minhas habilidades não prestam para proteger ninguém.
Eu não quero perder mais nada.
Não vou deixar nunca mais tomarem meus tesouros.
Eu quero poder!
Eu quero poder!
Eu quero poder!
De repente, a sua toca do coelho ficou apertada, como se estivesse caminhando numa caverna escura e úmida. Ele subestimou os perigos ocultos nas trevas que espreitava à sua volta. Ao piscar o olho bom, encontrou-se imerso em uma areia movediça criada pelos fragmentos das emoções perdidas, uma sensação pegajosa e implacável que o puxava para baixo.
Não conseguiu conceber tanto ódio e a cada movimento desesperado apenas o afundava mais, enquanto a escuridão o envolvia como um abraço apertado. Cada pensamento, cada respiração, parecia um esforço fútil de escapar do abismo que a si próprio cavou para fugir, e ele desejou de coração por um vislumbre do amanhecer quente.
Tá tão frio…
Pedra, pedra, não deixe ele me levar!
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O Pavor da Fera
— Hhe… hhe… hhe… vvou ccomer sseu ccoração…
Nas profundezas das florestas escuras, um majestoso lobo, o auge de sua espécie, viveu sua vida como um verdadeiro monarca. Seu estilo de vida foi um poema em movimento, um balé de força e graça. Cada anoitecer, ele guiava seus irmãos e irmãs pelas trilhas sombrias em busca de comida. Nunca foi fácil garantir sustento para uma grande família, ainda mais num mundo governado por homens e suas armadilhas. Apesar de todas as dificuldades, ele foi o líder poderoso da sua matilha, um guardião dedicado de sua família.
Porém, naquele fatídico dia, a matilha já não comia há dias. As presas haviam desaparecido e a noite estava sendo dominada por criaturas malignas. Por isso, quando encontraram um humano sozinho no bosque, viram uma oportunidade de conseguir muita carne, tornando-a irresistível para ser ignorada, mesmo com todos os perigos de atacar o bicho homem. Tudo parecia favorável, e a sinfonia da caçada começou. O líder se movia em harmonia com seus companheiros de matilha, coordenando seus ataques com a mesma habitual dedicação que demonstrou em inúmeras caçadas bem-sucedidas. A presa parecia indefesa, fraca e pronta para ser abatida.
Então, muito rápido, um graveto, muita dor e seu mundo foi destruído.
Nenhum animal poderá ser condenado por matar para se alimentar, como também nenhuma presa terá de ser punida por se defender. Contudo, talvez o erro do grande lobo foi ficar preso ao sentimento de vingança, ainda que ele tivesse seu senso de dever e aquele humano fosse diferente demais para ser esquecido.
Só que agora, a fera se viu diante de outra coisa, algo maligno das profundezas escuras. Seu olho apurado viu uma fumaça negra, úmida e uniforme escapar do buraco no olho esquerdo do humano. E dentro da cavidade, nas trevas, uma coisa olhou de volta.
— Hhe… hhe… hhe… nnão hhaverá aamanhecer…
Ao se deparar com essa visão das trevas, o lobo sentiu um arrepio percorrer sua espinha, seu coração acelerou numa dança descontrolada e seu olho bom se arregalou de terror, então, de forma instintiva, uivou por medo: — Hoooooo…
— Guilherme… — chamou a pedra —, a batalha ainda não terminou.
— Hã, o que foi? — Por um momento, Guilherme ficou confuso ao ver a expressão apavorada do lobo, sua sensação era de que tivesse acabado de acordar de um pesadelo, mas então, se lembrou onde estava e que havia revelado para a fera as cicatrizes do rosto. — Sim… — disse ainda desnorteado. — Essas cicatrizes são horríveis, nós dois somos monstros!
A presença da coisa maligna desapareceu e tudo que ficou foi o buraco escuro e profundo, tão profundo que parecia não ter fim.
Só que a visão aterrorizante que viu a deixou abalada, paralisando-a por um instante, enquanto seus pensamentos se embaralhavam em um turbilhão de medo e choque. A fera lembrou das matilhas de lobos brancos do sul, dos negros do norte e dos azuis que vagavam nas terras esquecidas; sentiu emoção ao lembrar que parte de seu sangue ainda irá vagar depois de sua morte, existindo nos irmãos que eram líderes de outras matilhas de lobos cinzentos espalhadas por todo o bosque do sussurro; considerou até todas as formas de vida, presas e não presas dos lobos.
Tudo se perdeu; sua vida estava no fim, e aquela visão de horror permaneceria gravada em sua mente até o momento final; uma lembrança indelével do impacto avassalador do verdadeiro mal que havia presenciado. Ao conseguir se recuperar do trauma, o lobo entendeu que tinha uma missão maior do que a vingança e as outras presas; ele deveria se concentrar apenas em matar esse humano, essa criatura das trevas, enquanto ele ainda estava fraco, para o bem de toda a existência neste mundo.
Esse seria o seu legado para a linhagem de sua linhagem.
O lobo despejou toda a sua sede assassina. Se precisasse se segurar nos próximos minutos, tudo estaria perdido de qualquer forma. A verdadeira batalha teria que ocorrer nesse lugar e entre os dois. Com as presas expostas e o esporão da cauda armado, avançou como se os ferimentos em seu corpo não causassem nenhuma aflição e correu o mais rápido que podia na direção do humano.
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O Sábio
Guilherme ficou confuso com aquela reação descompensada do lobo, já que segundos antes o animal estava lutando para se manter em pé, e agora tinha recuperado o vigor para um ataque feroz.
É, acho que provoquei esse bicho demais.
Ele vai usar tudo para acabar comigo de uma vez só.
Ah, tanto faz, maldito, pode vim, tenho uma supresa para você.
Guilherme não esperava uma reação tão favorável, e mesmo que tenha provocado esse ataque de fúria do seu inimigo, não entendeu a reação lunática do lobo. Para ele era estranho, parecia que havia um lapso temporal, algo que tinha esquecido. No entanto, ele não tentou encontrar uma resposta e aproveitou a oportunidade. Segurou firme o punho de sua estranha pá e esperou.
Com meus pontos de força e esse pedaço de ferro enferrujado, não vou conseguir nem arranhar o couro duro desse bicho.
Se uma espada não adiantou de nada, o que posso fazer com uma pá?
Bem, não adianta, foi a minha escolha…
Posso fazer que nem fiz com o rato cauda-de-navalha. Usar o próprio peso desse bicho para enfiar toda a pá como se fosse um gigante supositório.
Sim, vai ser isso mesmo!
Agora só preciso da posição certa.
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A Escolha do Galo
— O que aquele idiota pensa que vai fazer? — Filipa parou ao lado do irmão, custando em acreditar no que estava vendo. — Ele fica falando sozinho, balançando a cabeça, enquanto o inimigo estuda como vai parti-lo ao meio.
— Nada disso, ele tá falando com a pedra mágica. Eles tiveram uma ideia, eu sei!
— Não é possível, idiota, você acreditou mesmo nessa história? Olha… olha aquilo, ele só pode estar orando para algum deus, pedindo para não morrer. É tão medroso que nem sabe segurar a arma dele.
— Não! Não é isso, ele odeia os deuses, eu sei, traa, você é uma garota, não entende de brigas, ele tá criando uma boa distração, é isso.
Enquanto observava Guilherme enfrentar o lobo, Alonso sentiu o peso da responsabilidade sobre seus ombros. Ele sabia que a vitória nessa batalha dependia de uma escolha decisiva: proteger a irmã sacrificando um amigo, ou, salvar um amigo arriscando a segurança da irmã.
Ao perceber que não podia hesitar, uma sensação de determinação envolveu-o. Ele era o mais forte do grupo, e para garantir a vitória, teria que liberar toda a sua fúria e arriscar a própria vida, não apenas para salvar as pessoas que lhe são importantes, mas para pôr um fim naquela fera maligna. Essa consciência o impeliu a entrar no calor da ação, com a determinação de fazer o que fosse preciso.
— Ele quer morrer? — Felipa lembrou das inúmeras vezes que nessa noite foi salva por aquele fraco e covarde garoto, e ao perceber a intenção de seu irmão, ela olhou-o, admirada. — Bem, aquele paspalho tem um pouco de coragem, só um pouquinho. Você não vai deixá-lo sozinho, vai?
— Eu não vou deixar ninguém morrer!
— Claro que não vai… aquele é um paspalho mentiroso, você é um paspalho ingênuo. — A garota sorriu —, e eu sou uma paspalha intrometida. Também vou ajudar. O que você vai fazer?
— Traa, bater no desgraçado e continuar batendo até ele morrer.
— Claro, porcaria!
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O Sábio
Guilherme já estava pronto para apoiar o cabo da pá no solo, deixando-a igual a uma estaca, só que ficou pálido ao ver que o lobo mudou a movimentação.
Depois de experimentar a varinha com gosma ácida de lagarta-verde, o lobo havia aprendido que aquele humano era ardiloso, e prevendo que ele tinha alguma ideia em mente para derrotá-lo, mudou o foco para a estranha arma que ele segurava na mão.
A fera mudou a forma de correr, avançando com o corpo inclinado, dando a entender que iria abocanhar a coxa esquerda do Sábio.
O miserável quer morder a minha perna.
Tá bom…
Vou afundar a cabeça dele com uma pancada bem no meio da testa.
Com essa jogada do inimigo, Guilherme levantou a pá, deixando-a sem apoio firme.
Era isso que o lobo queria. Então ele parou de forma repentina, direcionando o movimento do corpo para o lado, e com isso conseguiu impulsionar a cauda para golpear com o esporão a mão empunhando a estranha pá.
A pá saiu voando, rodopiou e caiu no chão a pouco mais de dois metros do Sábio.
Guilherme entendeu no mesmo instante o que estava acontecendo. Ele ficou sem reação, abismado como aquele bicho havia conseguido prever seu plano. Naquela vez, a farinha com gosma acídia funcionou tão bem, que esperou que dessa vez seu novo plano fosse funcionar melhor.
Ele se viu numa mesa de RPG, quando realizava uma boa jogada, só que seu adversário, como num passe de mágica, reagia com uma contra-ofensiva melhor.
Seu coração estava pulsando tão forte que conseguia ouvir cada batida. Com o olho fixo na fera, sentia a adrenalina fluir por suas veias. Ele tinha lido sobre essa sensação nas novels, visto nos filmes, jogado nos jogos de RPG, e ficou tão surpreso por não conhecê-la, que se permitiu sorrir para o seu inimigo.
Se isso não fosse me custar minha vida, queria sentir outra vez esta emoção.
Então esse é o gosto?
O sabor de uma luta de vida e morte.
Overdose de coragem.
Guilherme não tinha tempo para degustar o recém descoberto sabor da aventura, porque o seu inimigo ainda tinha mais surpresas preparadas para ele. Acompanhou a fera correr e virar o corpo num novo ataque. Se pudesse recuperar a pá, teria uma chance de bloquear o ataque.
O lobo avançou rápido e antes que o Sábio pudesse tentar algo, atacou usando a pata com as garras expostas. O golpe veio de cima para baixo no lado direito, acertando parte do braço, parte da costela e coxa. As garras afiadas rasgaram pano e carne.
— AHAAAAA! — Guilherme gritou.
Os talhos feitos pelas garras pareciam queimar a sua carne. Então, mais uma vez, o medo e desespero invadiram o seu coração, eliminando toda a emoção da batalha que havia despertado dentro dele. O Sábio gemeu. Era quase impossível pensar numa reação, buscando uma saída, com o único olho bom cheio de horror.
Ele avistou a pá, e precisaria dela se quisesse ter uma chance, e num movimento desesperado foi em sua direção.
O lobo não esperou e atacou usando a cauda.
Sábio viu o poderoso esporão se aproximando de sua cabeça. Tentou desviar, mas não percebeu uma pedra enorme à sua frente, tropeçou nela e caiu, batendo a cabeça no chão. Um pouco atordoado, ele procurou a pá e a viu a menos de dois metros de distância. Também notou que o lobo se preparava para outro ataque. Com os ferimentos e a pancada na cabeça, uma onda de medo percorreu seu corpo, paralisando seus músculos e mente.
Na verdade, a pá não estava longe, e um pouco além, tinha uma das tochas, ainda acesa. Se ele se esforçasse um pouco mais, poderia alcançar algo para poder se defender. Só que era tarde demais, o velho Guilherme da Terra havia assumido o controle, o mesmo que desistiu de tudo que tentou e amou.
— Guilherme — disse a pedra —, não desista agora, a sua arma está logo ali, não desista, você vai conseguir.
Se o Sábio tivesse olhado melhor, teria percebido que a pá estava tão perto dele que apenas esticar o corpo poderia alcançá-la. Só que apavorado, o olho bom ficou fixo no lobo dando uma meia volta vagarosa e parando diante dele, pouco mais de três metros de distância.
Com uma expressão diabólica, a fera alcançou o que tanto ansiava, não só a vingança para quem destruiu sua vida, mas poderia matar aquela besta criada na profundeza das trevas. Seu olho bom brilhou, e isso criou um contraste nojento com o olho podre. O desejo que o consumiu por tanto tempo teria um fim, enchendo-o de uma satisfação indescritível. Ele contraiu os músculos, inclinando o corpo para poder dar um salto sobre o humano capaz de arrancar a cabeça dele numa só mordida.
Guilherme, diante o desejo assassino do lobo, ficou apavorado demais para tentar fazer qualquer coisa.
Esperar vencê-lo é ilusão; só vê-lo já é assustador.
Ele desistiu…
— Não! Reaja, ainda não é o fim! — clamou a pedra.
— Quem eu quis enganar, pedra? Esse é meu limite. Eu nunca fui capaz de defender meus sonhos. Não mudei nada, sou o mesmo fracassado da Terra e mereço morrer.
— Você nunca foi fracassado, não vê? Você foi corajoso, apesar de fraco, com tudo contra, sempre fez o que acreditou ser o certo. Você se arriscou para salvar a criança do caminhão assassino, você se arriscou para defender a garota gato, você defendeu a menina Luci, agora, está arriscando a vida para proteger dois amigo… você arriscou tudo para salvar a vida dele…
— Como você sabe?
— Ora, pequeno coelho, eu sempre estive com você!
— Obrigado por acreditar em mim, velho amigo. Eu não posso vencer essa coisa, agora vou morrer, e não quero ficar sozinho. Pedra, está comigo?
— Até o fim… mas ainda não é o fim, quem tem amigos, terá o maior poder do mundo!
O lobo saltou, escancarando a bocarra repleta de dentes visando a garganta do Sábio.
Guilherme só conseguiu olhar.
Eu precisei morrer para descobrir o valor de viver.
Eu quero viver!
O horizonte está tão distante de mim.
Você conseguiu, VALHALLA, fez sua sátira dos ISEKAIS.
Parabéns!
— Criatura desgraçada, traa, você tá bem onde eu queria e não vou deixar você machucar meu amigo!
De repente, na sua frente, surgiu um poderoso escudo, envolto em chamas capaz de queimar o mundo inteiro.
Hã?
Como?
Demorou um segundo para Guilherme perceber que o escudo na verdade era Alonso, que tinha a pele morena iluminada pelos raios da lua vermelha e o cabelo tom de fogo esvoaçando com o vento da noite. Isso, mais a emoção, causou uma ilusão de chamas ardentes. Só que a parte descrevendo um escudo era verdade, porque o Crista de galo se posicionou na frente do Sábio, ficando de frente para o ataque do lobo.
O lobo estava no ar e não poderia interromper o ataque, então focou o ataque no humano intrometido e inclinou o corpo para baixo, protegendo o tronco com as patas, levando em consideração que ele tinha uma espada na mão. Ele entendia que, se eliminasse de uma vez o único guerreiro entre esses humanos, nada poderia impedi-lo de matar sua presa principal. Além disso, esse inimigo estava muito ferido e não tinha conseguido causar dano antes, então, mesmo com a espada e posição favorável, não representava risco algum.
— Você é tão burro assim? — perguntou Guilherme, incrédulo e temendo que o Crista de Galo também fosse moto. — Era para você tá lonje, junto com a Felipa. Por que você tá aí parado?
— Eu não vou abandonar um amigo!
— Seu grande idiota, maldito, quer morrer também!
— Morrer? Não! Gosto de viver. — Alonso largou a espada e lembrou das palavras de sua mãe, “o forte protege o fraco”. — Traa… sem esse pedaço de ferro é bem melhor. — Olhou para Guilherme e com um sorriso confiante, ele disse: — O meu soco é o mais forte do mundo… nós vamos vencer!
...