Volume 1 – Arco 2
Capítulo 58: A Batalha do Sábio Miserável - parte 3
Para Guilherme, o grito de ajuda de Alonso foi como um soco no pé do estômago, no entanto, esse grito foi mais surpreendente que qualquer coisa. Como podia alguém tão forte quanto aquele garoto do cabelo cor do fogo pedir a ajuda de um fracote miserável?
Droga, droga, droga!
Vai, se mexa corpo, vamos, vamos, eu não posso deixar aquela garota morrer.
Alonso confiou em mim.
Vamos, se mexa!
Então, o Sábio se lembrou da pergunta que Skog lhe fez após salvar o garoto do caminhão assassino. Naquela época, ele ainda não sabia que o acidente era uma ardilosa armadilha preparada pela besta de aço e ilusão. Contudo, mesmo agora, ele não saberia como responder à questão.
“Por que você salvou a criança?”
Naquele dia, tudo foi uma enganação; Skog revelou-se um deus cruel, a criança era a besta da ilusão, criatura criada para enganar o coração das pessoas, e o temido caminhão assassino sempre foi a besta do aço.
Apesar de agora conhecer toda a verdade, ele ainda não era capaz de compreender aquele dia. Não sabia se o sentimento que o impulsionou a salvar o garoto era real ou falso, e mesmo sem entender por que tinha feito aquilo, não podia deixar de reconhecer que foi uma ação tola, porém, muito corajosa, a ponto de chamar a atenção de um deus.
Mas o sentimento foi real?
Eu quis salvar o moleque?
Ou só queria uma forma de escapar da minha vida miserável?
Vamos corpo, se mexa... droga!
— GUILHERME — gritou a pedra. — O QUE VOCÊ É?
Guilherme sentiu a cavidade do olho esquerdo latejar. Para atrair o lobo, começou a bater a pedra contra a estranha pá.
— Cachorro maldito — ele chamou. — Deixa ela em paz.
O lobo não se deixou cair na mesma provocação de antes, ignorou e se manteve focado na garota.
Foi uma descarga emocional tão intensa que percorreu seus músculos, fazendo com que seus membros se movessem. Assim, avançou enlouquecido, brandindo a estranha pá. No caminho, ele pegou uma pedra e a arremessou contra a fera, acertando-a no pescoço.
O lobo parou por um momento, como se observasse incrédulo aquela engraçada paródia do herói covarde.
Guilherme conseguiu alcançar o grande inimigo e começou a golpear o corpo monstruoso com todas as forças, só que não conseguia causar nenhum dano nele. Apesar da pá ser mais dura que aço comum, não era capaz de cortar a pele ou causar algum outro tipo de ferimento. Primeiro foi a espada, agora era a pá, era como se todas as armas que eles usassem contra esse monstro fossem ineficazes.
Graças à investida ousada do Sábio, Felipa escapou da morte, e Alonso teve um momento para recuperar o fôlego. Após o choque inicial, reuniu suas forças e se levantou, empunhando a espada, pois a batalha ainda estava longe de terminar. No entanto, ele estava perdido, observando o companheiro desferir golpes desesperados que se provaram inúteis. Sabendo que a espada também era ineficaz, viu a situação declinar muito rápido.
Apesar de ter recuperado a tocha, Felipa, ao observar o espetáculo dos garotos, repleto de atitudes inconsequentes, avaliou que suas chances de vencer o lobo eram pequenas demais. No entanto, seu instinto a impelia a continuar, mesmo sabendo que o mais sensato seria fugir.
Nessa batalha, o que mais afetou a garota foi ver seu irmão arriscando tudo em uma luta tão perigosa, que nem era a dele. No entanto, logo percebeu que esse sentimento era tolo, uma vez que ela mesma pedira ao Sábio Miserável que aceitasse seu irmão como companheiro, e para conquistarem seus sonhos, esse tipo de encrenca iria fazer parte da vida deles.
Olhou para o irmão e fez sinal positivo levantando a tocha, mostrando que estava bem.
Meio curvado por causa da dor latejante da coxa ferida, e com o corpo se movendo mais lento por causa do cansaço, Alonso entendeu o sinal da irmã. Foi então que ele encontrou o brilho maligno no olhar do lobo, apontado para o Sábio.
Ele se juntou com Felipa e os dois avançaram para ajudar na luta.
Guilherme não queria que aqueles dois continuassem na luta, pois percebia que todo o seu esforço seria em vão. Essa perspectiva o apavorou mais do que o lobo monstruoso à sua frente. No fim, ele se surpreendeu ao descobrir que se preocupava demais com aqueles dois.
Ele fez sinal para que os irmãos ficassem onde estavam e disse:
— Não! Não venham. Olha só, estou lutando, logo eu, fala sério. Vocês não me devem nada. Vão embora. Essa é a minha luta!
Alonso e Felipa se olharam confusos.
O lobo compreendeu o desejo do Sábio, e o encarou com um olhar cruel. Do seu olho esquerdo podre, escorreu um pus esbranquiçado e malcheiroso.
— É, isso tá horrível — Guilherme disse num tom provocativo. — Desculpa, só ficou assim porque não cauterizei a ferida, acredite, faz toda a diferença…
Ele encarou de volta e levantou a estranha pá.
Não adianta me olhar assim, maldito.
Eu também te odeio.
Foi por sua causa que tudo deu errado para mim.
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O X1 do Galo Contra o Lobo, Segundo Tempo
Por alguns instantes preciosos, Alonso lutou contra a indecisão, esforçando-se para se concentrar na batalha iminente.Ele entendia o que tinha que fazer, ainda tinha todo o peso do seu passado pressionando seu corpo, só que não podia negar que a situação era a pior possível.
O Sábio ficou sem ação ao ver que seu pedido foi mais uma vez ignorado pela dupla de idiotas, e o lobo, aos solavancos e rosnados, moveu para o lado e atentou contra o Crista de Galo, enxergando-o como o adversário mais perigoso.
A fera saltou na sua direção, imponente e aterrorizante, movendo-se rápido para um animal ferido e fraco, interpondo-se entre Alonso e Felipa. Em seguida, o segundo movimento da fera veio da ponta do esporão de sua cauda, esticando-a para atingir a cabeça do Crista de Galo.
Felipa ficou de frente para o inimigo, então ela foi rápida, esfregando a tocha na fuça do lobo com tanta raiva que ele ficou sem reação e teve que se afastar.
Alonso aproveitou esse momento para se mover para o lago, se esquivando do esporão e acertando-o com um forte golpe na coxa direita.
Para a tristeza deles, mais uma vez o golpe de espada não teve efeito. O lobo, no entanto, cambaleou devido ao impacto em sua coxa, seu corpo estava no limite. Desejando encerrar a luta, ele atacou o Crista de Galo de forma diferente, usando sua cauda num movimento de cima para baixo.
Alonso bloqueou com a espada, porém a pressão da cauda empurrou a lâmina contra o peito, cortando a carne e machucando suas costelas, não acredito que essa espada só vai cortar seu dona, é uma espada horrível! Por isso prefiro os machados.
A lâmina afundou mais. Os olhos do Crista de Galo se arregalaram. Ele abriu a boca, gemeu de agonia e caiu de joelhos no chão. Por causa da dor da coxa quebrada ao se chocar contra o solo enlameado, ele quase perdeu os sentidos.
Sua visão buscou o Sábio e o encontrou perdido nos pensamentos, de certo mentalizando algum plano ou pedindo instruções para a pedra mágica, e por isso seu coração se encheu de esperança, eu só tenho que suportar mais um pouco, ele vai pensar em alguma coisa para a gente vencer. Motivado, engoliu a dor e pressionou a espada contra o inimigo.
Felipa via a situação de outra maneira. Ela queria gritar para Guilherme fazer alguma coisa, mas, ao olhar para ele, o encontrou em um transe, conversando com sua pedra, e não havia vestígio de que ele fosse capaz de fazer qualquer coisa.
O lobo, perturbado pela reação do Crista de Galo, não permaneceu inerte e investiu com uma violenta cabeçada. A fera almejava encerrar o embate com o inimigo mais forte, para então desfrutar de sua caçada derradeira, antes que seu corpo sucumbisse aos ferimentos.
Alonso bloqueou a cabeça com o punho da espada, mas, ao fazê-lo, perdeu parte do apoio da espada, e o esporão da cauda deslizou pela lâmina, caindo sobre seu ombro com o peso de uma bigorna. Ele foi derrubado ao chão, incapaz de reagir.
Felipa avançou com a tocha para atacar, mas, desta vez, o lobo estava preparado e contra-atacou, golpeando-a com as garras de sua pata direita, rasgando o vestido e ferindo a sua coxa. Vacilante, Felipa recuou, retrocedendo enquanto era observada pelo olhar diabólico da fera.
O esporão da cauda estava armado para finalizar a garota.
A visão da irmã ferida devastou Alonso, e o pior era que a garota estava agora ao alcance da monstruosa cauda. Naquela clareira obscurecida pela neblina da noite, que nada mais era do que uma sinistra cobertura para seu corpo cansado, ele se sentiu pequeno e fraco., desculpa, mamãe, eu não consegui ser forte para proteger as pessoas…
Quando tudo parecia perdido, com a emoção quase incontrolável, seus olhos se fixaram em uma figura obstinada e heroica. O Sábio Miserável surgiu por trás, pronto para desferir um golpe na cabeça do lobo com a estranha pá.
Os olhos de Alonso se encheram de lágrimas, muito mais do que as dores eram capazes de causar, e eram lágrimas de esperança, forte será aquele que tiver bons amigos!
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O Sábio
Guilherme respirou fundo, esperando poder pensar em alguma frase de efeito antes de enfrentar o que, sem dúvida, seria sua última luta neste mundo. No entanto, percebeu que o inimigo não lhe daria tempo para sequer pensar.
Rosnando, o lobo reagiu com uma patada, e o Sábio se precipitou para bloqueá-la usando sua pá. A fera furiosa, com um único giro de sua grotesca cauda, arremessou-o para longe, advertindo-o com um olhar intenso a manter distância, pois não era a hora dele ser retalhado.
Alonso viu uma oportunidade para atacar a fera, embora soubesse que suas chances de sucesso eram mínimas. A maioria de seus músculos não respondia mais aos comandos de seu cérebro. Acima do seu estado físico, ele seria tolo por não aproveitar a chance de atacar um inimigo distraído em uma batalha de vida e morte. Com o apoio de um braço e a espada servindo como bengala, tentou se levantar o mais rápido que pôde.
O lobo não considerava o Sábio como uma ameaça e, portanto, não lhe dedicou muita atenção. Visto que, ao contrário daquele humano fraco e melancólico, o humano de cabelos cor de fogo representava uma ameaça genuína, por isso não poderia ser ignorado. Quando o viu se recuperar, desferiu uma patada, jogando-o de volta ao chão.
O humano fraco era ardiloso, mas não havia muito que ele pudesse fazer, e o humano forte estava cedendo diante dos numerosos ferimentos. Por esse motivo, a fera não tinha a intenção de prolongar a situação com os dois, pois sua ira estava focada em Felipa, que aproveitou a oportunidade para ganhar mais distância. O Lobo não permitiria, de forma alguma, que a bela do fogo diabólico escapasse.
Guilherme caiu, com uma forte pancada da cabeça contra o chão. Estava meio atordoado e, embora visse tudo o que estava acontecendo, não tinha forças para reagir, e isso extinguiu a pequena chama da coragem que havia se acendido nele.
Se ao menos minhas habilidades funcionassem…
Elas são tão imprestáveis quanto eu.
São fracas e miseráveis.
A pedra disse que eu seria forte, que teria um poder sem igual.
Era tudo mentira.
Eu não posso mudar, não consigo mudar, não vou mudar!
Ele conseguiu ficar de pé. O sangue lhe corria de um corte na testa, onde recebeu a pancada, quando bateu a cabeça contra o chão.
A cavidade do olho esquerdo lateja sem parar, e havia afetado a cicatriz, de forma que todo o lado esquerdo do rosto parecia uma massa viva de carne pulsante. Era o semblante deformado de uma criatura.
Ele viu o lobo, em um ataque covarde, golpear Alonso, jogando-o de volta ao chão, e depois direcionar toda a sua ferocidade para Felipa, divertindo-se com cada movimento de seu jogo violento.
— Pedra, eu posso vencer aquele desgraçado? — perguntou Guilherme, cambaleante, caminhando devagar para trás e contando cada passo.
— Sozinho, sem estratégia, não!
— Droga, você não sabe mesmo como incentivar as pessoas… não vou fugir, só que... vou morrer?
— Não saberia dizer. Você não tem nenhuma vantagem, porém, VALHALLA é caprichosa, não sei o que ela escreveu nas linhas de sua vida.
— Esqueça essa maluca, ela fodeu comigo bonito, nessa brincadeira de isekai diferentão e mundo novo. — Ele parou, calculando uma linha imaginária entre ele e o lobo. — Bem, não é verdade, eu me fodi sozinho da mesma forma que estraguei tudo na Terra. Pedra, sacrifício é um feito de herói?
— É o feito mais digno de todos!
Certo, 14 passos, com meio metro cada um, dá 7 metros inteiros.
Aquele lobo também tá na pior, já não é tão rápido.
Contando com a distância e que consiga me esquivar um pouco, mais o tempo que ele vai levar para me matar.
Posso conseguir cinco minutos, três no pior cenário.
Enquanto calculava a linha imaginária, Guilherme aceitou a estratégia dos fracos. Era uma ideia maluca que de certo o levaria à morte, mas se conseguisse usar a distância e o próprio corpo para ganhar tempo, os irmãos poderiam escapar.
É isso!
Errei muito e fiz muita merda.
Mas não vou morrer como um covarde.
Sou feio demais para ser a chapeuzinho vermelho, mas vamos nessa, senhor lobo mau, brincar de caçador e vovozinha!
...