Volume 1 – Arco 2
Capítulo 57: A Batalha do Sábio Miserável - parte 2
Guilherme congelou quando os irmãos avançaram contra o lobo. O miserável encontrou seus olhos; havia uma chama de superação nas expressões deles. Ele nunca tinha visto algo assim, nem mesmo nos ditos campeões e nos super ricos da Terra. Deu um passo para trás como se quisesse fugir daquela visão; um calafrio percorreu sua espinha enquanto a dupla inconsequente trocava golpes com o insuperável inimigo.
Por que eles são assim?
Será que não entendem que nunca vão vencer?
Os segundos pareciam intermináveis. Depois do avanço contra o lobo e das brutais consequências dessa loucura, Guilherme estava mais desesperado do que nunca. A fera havia tomado conta da batalha, tornando impossível uma vitória. O nosso mercenário covarde sentia-se sufocado e, para suportar, deixou a mente viajar para os momentos de lazer de sua antiga vida na Terra, quando lia suas novels e decorava as regras dos jogos de RPG.
Era tudo tão fácil.
Não tinha gritos e sangue.
Eu só precisava esticar a mão e pegar o que quisesse.
Não saberia dizer quantos minutos se passaram desde o começo da luta de Alonso contra o lobo, já que para ele, horas, minutos e segundos passaram a ter a mesma duração. Ele assistiu toda a batalha como se tivesse vendo um filme ruim.
Durante esse tempo, travou uma dura luta consigo mesmo, debatendo-se entre lutar e fugir. No entanto, a ideia de que ninguém poderia derrotar uma criatura tão feroz permanecia enraizada em sua mente.
Eu preciso fugir.
A minha vida tem que ser o mais importante para mim.
Eu não posso desperdiçá-la outra vez.
Arrependeu-se no mesmo instante do seu pensamento covarde, ao testemunhar Alonso lutando em um cenário tão desesperador, onde se empilhavam os sonhos mortos dos heróis. Só que o Sábio não conseguia reagir, havia fugido a vida toda e quando resolveu fazer algo, o resultado foi o pior possível.
A ruína estampou-se naquela face de linhas fracas e deprimentes.
Guilherme ergueu com um movimento rápido a mão e esfregou as bandagens do seu rosto que ocultava as horríveis cicatrizes. Uma coceira profunda corroía sua carne. Ele começou a falar, misturando palavras de socorro e raiva em uma alegoria deformada e confusa. Sentiu-se derrotado, perdendo a esperança de que um dia ainda pudesse ser melhor.
Ele não sabia o que fazer; uma parte de si estava aliviada por não ser o alvo da criatura que o atormentou por tanto tempo, mas outra parte, cada vez gritando mais alto, ansiava por arrancar e mastigar o olho restante daquele lobo maldito. Esse conflito interno paralisou seu corpo, criando um terrível impasse, onde não conseguia decidir se devia ajudar ou fugir.
— Sem ajuda, eles vão morrer — interferiu a pedra.
— É, vão mesmo — concordou o Sábio num tom indiferente, contudo, evitando olhar para os dois irmãos, que lutavam por suas vidas. — Eu não sei o que fazer.
— A verdade poderá livrar a alma das trevas: todos morrem um dia, porém, uma morte sem propósito é um desperdício.
— O que você tá falando?
— Sabe muito bem o que é. Hoje é a sua vez de sobreviver, Guilherme. Você tem a oportunidade de escapar, a situação está a seu favor. Encontrou dois substitutos para morrer em seu lugar. Você conseguiu, miserável! Agora, tudo o que precisa fazer é contornar a batalha, correr para a trilha e voltar em segurança para a choupana.
— Mas o que vou contar para o Alian? E a Mia, eu prometi que iria salvar a filha dela; aquela mulher não iria suportar a dor.
— Não precisa mais mentir para si mesmo, você nunca acreditou no lema: MINHA PALAVRA É MINHA HONRA. Além do mais, você é um mentiroso, por isso é capaz de inventar uma história bonita para se safar, como sempre faz, não é? O importante é sobreviver, não é mesmo?
— Por que você tá falando isso, pedra, você não é assim? — Ele apertou a estranha pá contra o peito com tanta força que sentiu o metal gelado ferir a carne.
— A verdade pode libertar: acima de tudo, eu não quero que você morra!
— Para, pedra, não fala mais…
— Parar? Não! Você precisa ouvir; irá sobreviver, mas, é claro, para escapar, terá que sacrificar a vida dos seus únicos amigos, as únicas pessoas que se importaram com você em muito tempo, as únicas desde ele… anda, vai, corra, fuja, é só fazer o que sempre fez: é só ignorá-los, a vergonha não é nada para você. Você irá sobreviver…
Guilherme lembrou do dia que o açougueiro arrancou seu olho esquerdo. Lembrou do sentimento de vazio e solidão… e lembrou do sangue que escorreu pelas folhas dos pés de café.
Quando reencarnou neste mundo, disse a si mesmo que este seria seu isekai, onde poderia fazer o que quisesse. No entanto, este mundo lhe mostrou o quão miserável ele era, e a única coisa positiva foi o início da amizade com Alonso. Ele desejava acima de tudo preservar esse sentimento, para assim honrar a promessa que fez ao velho amigo, o garoto que corria no cafezal.
Por causa desse sentimento pesado, seus músculos não se moveram.
— Pedra... eu não consigo fugir.
— Você não consegue ou não quer?
— Eu… eu não quero fugir!
— Ooohh... por que você não quer fazer o que sempre fez? Não foi tão fácil na última vez? Sempre foi tão fácil para você, fugir e abandonar, o que mudou agora?
Guilherme até tentava correr, mas seus músculos não obedeciam aos antigos reflexos, tal a aflição que sentia.
— Eu não quero que eles morram. — Ele reuniu toda a coragem que tinha dentro do fragilizado coração para conseguir dizer a sua verdade: — Eu nunca mais vou abandonar um amigo!
— Fazer o que é correto diante do perigo é uma grande prova de coragem. Pobre será os maus, quando os covardes se levantarem. É meu testemunho, pois vejo o nascimento de uma estrela que irá incendiar esse mundo. O que você irá fazer?
A batalha dos irmãos contra o lobo atingiu um momento crítico, e o coração de Guilherme disparou ao ver que Alonso caiu no chão após ser atingido na coxa pelo monstruoso esporão. A fera diabólica estava agora focada em Filipa, que se encontrava desprotegida.
Com coragem, a garota se aproveitou disso para atrair o lobo. Ela suportou a dor do pé ferido e correu para o lado, esperando que com esse movimento pudesse ganhar um pouco de tempo para o irmão se recuperar e voltar para a luta.
— Aqui, sua coisa feia! — ela gritou, usando a dor como motivação.
O esforço de Felipa, embora considerável, foi inútil. O lobo, apesar de estar com o corpo ferido devido à luta contra a onça-dente-de-sabre, ainda conseguia ser mais rápido, e nada o impedia de alcançar sua presa. Abriu a bocarra repleta de dentes afiados, que salivavam ansiosos pelo toque na macia carne da garota.
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O Canto do Galo desesperado
Alonso ficou caído no chão, sentindo sua coxa queimar após a estocada do esporão da fera, será que esse bicho tem veneno? perguntou a si mesmo, não... não posso me preocupar com isso agora. Eu tenho que parar aquele monstro.
Ele usou todos os músculos do corpo para se levantar, a dor era enorme, não importa o quanto tá rasgando minha pele, eu nunca vou parar até arrancar a cabeça daquele desgraçado, mesmo que tenha que lutar até o fim dos meus dias.
Seus pensamentos eram a força motivadora para seu corpo, eu sou o mais forte; é meu dever proteger a todos!
No entanto, no momento em que usou apenas os músculos de um dos braços para sustentar todo o peso do corpo, porque o outro segurava a espada, um único membro não teve força suficiente para sustentá-lo, e ele voltou a cair no chão.
Não queria admitir, porém, o golpe da fera foi profundo demais e rompeu alguns ligamentos. Além disso, provocou um sangramento, mas ele agiu rápido e conseguiu estancá-lo, cobrindo a ferida com lama. No entanto, não podia fazer mais do que isso. Para piorar, a espada atrapalhava mais do que ajudava, porcaria, esse pedaço de ferro inútil, eu sei que se tivesse uma chance, eu acabaria com esse lobo com minhas mãos!
Vendo que a situação da irmã estava pior que a dele, prestes a ser estraçalhada pela fera.
Diante da iminente tragédia, Alonso avistou Guilherme um pouco mais afastado, balbuciando palavras ao vento e tremendo. Apesar de seu estado lamentável, ele ficou aliviado pelo companheiro não ter fugido, como todos esperavam.
Ele sempre preferiu lutar suas batalhas sozinho. Dessa forma, poderia priorizar o inimigo, livre de qualquer preocupação que não fosse vencer. Já havia enfrentado e vencido muitas lutas que muitos consideravam impossíveis. Sua própria liberdade foi conquistada com sangue, o sangue daqueles que amava. Por isso, conhecia a dor da impotência e fez de tudo para ser forte. Nesse vislumbre de vitória e derrota, ele se lembrou da promessa que fez à mãe...
“Eu vou ser forte para matar todos eles”, disse a criança com o corpo ensanguentado e o coração cheio de escuridão.
“Não, querido!” A mãe foi o raio de luz que quebrou as trevas. “Eu quero que você seja forte para proteger as pessoas, seja forte para cuidar de seus amigos, seja forte para viver… seja forte para vencer a solidão e desespero.”
“Sim, mamãe, eu vou ser o mais forte de todos e meus socos irão derrubar todos os homens maus!”
A mulher sorriu, e ainda que estivesse muito ferida, foi uma pintura tão linda que limpou as trevas da visão daquela criança. Ela passou a mão no rosto do filho e enxugou as suas lágrimas com a ponta do dedo, e então disse: “Você é uma criança tão linda, meu filho, sinto muito por você ter nascido num mundo tão cruel.” Com essas palavras, sua mão caiu ao lado do corpo, pois sua vida havia chegado ao fim..
“Eu prometo que vou fazer esse mundo ser bom!”
Antes de adentrarem juntos na floresta do sussurro para resgatar Felipa, Alonso pediu ajuda a Guilherme de maneira indiferente, pois acreditava que era forte o suficiente para resolver qualquer situação por si mesmo. No entanto, ele logo percebeu que ainda tinha suas fraquezas e compreendeu que não havia vergonha em precisar da ajuda de um amigo. De forma gradual, seu receio diminuiu, mas o medo intenso permaneceu.
Nada mais havia a fazer, e aceitando isso, ele esticou o corpo, jogando terra para o alto, acenando como louco, sem poder confiar na própria voz, tão impotente que estava.
Se sentia culpado por ter acreditado que poderia derrotar o lobo. Aquela criatura era uma fera que se propôs a matar todos ali e sabia muito bem disso. Se tivesse agido de outra forma, poderia ter tirado Felipa e Guilherme desse lugar sem arriscar suas vidas. Mesmo assim, acreditou que poderia lidar com a situação, mesmo com todos os sinais indicando o contrário. Sentimento de frustração, tristeza e raiva de si mesmo misturavam-se em seu coração. Foi presunçoso, mas não incorreria no mesmo erro.
A sensação de terror e impotência ainda o dominava, mas um sentimento de paz começou a invadi-lo. Havia chegado o momento da verdade, e ele se sentia confiante o suficiente para pedir ajuda ao seu amigo. Com toda a força dos pulmões, gritou para tirar o Sábio da inércia:
— SÁBIO MISERÁVEL, AGORA, SÓ VOCÊ PODE SALVAR A MINHA IRMÃ!
...