Volume 1 – Arco 2
Capítulo 55: O Sábio Miserável na Clareira da Morte - parte 3
Nos longos segundos de aflição, o assustado mercenário descobriu um pouco do verdadeiro Guilherme, percebendo que a descoberta só foi possível porque ele procurou as respostas dentro de si mesmo.
Era espantoso perceber como estava preocupado com aqueles dois irmãos, como não poderia priorizar a sua própria vida mais do que a deles, numa alucinada fuga. Resolveu tomar a frente para se habilitar para a batalha e proteger os feridos. Era estimulante pensar sobre que tipo de conquistas poderia alcançar quando se acostumasse a ser considerado um guerreiro.
Contudo, precisamos ser realistas, nosso estimado mercenário era um covarde! Por isso, ao que Alonso reagiu com coragem, trazendo para si toda a responsabilidade da batalha, Guilherme abandonou mais que depressa seus descabidos devaneios heróicos.
— Escutem os dois… — disse o Crista de Galo. — Eu vou arregaçar com esse bicho e vocês vão dar o fora, certo?
O Sábio Miserável suspirou aliviado.
— De forma alguma eu saio do seu lado, você pensa que só porque é forte pode fazer tudo sozinho, escute, não pode — protestou Felipa —, você é quem está mais machucado aqui, não vai lutar sozinho. Não é verdade, Guilherme?
— S-sim…
— Guilherme, você não quer lutar, você não queria nem está aqui. Cada um faz o que pode fazer: eu vou acabar com a raça desse lobo; você vai cuidar dela, a leve de volta para os pais nem que seja arrastada. Se fizer isso, considero sua dívida de gratidão comigo paga.
— Certo, deixe comigo. Vou tirar ela daqui tão rápido quanto um coelho.
— Nem pensar! — Felipa empurrou o Sábio. — Por quanto mais você vai fugir como um coelho?
Guilherme não sabia ainda como haveria de lidar com o cachorro mutante, mas a garota estava certa e conscientizou-se de que não seria possível viver fugindo pelo resto da sua aventura nesse mundo.
O que vai adiantar para mim escapar agora,
Se os próprios deuses querem um pedaço de mim?
Mais cedo ou mais tarde terei de enfrentar inimigos com os quais não poderei fugir.
Essa é minha única verdade!
Ele havia considerado, com cuidado, cada ângulo da questão. Iria abrir mão de qualquer possibilidade de fuga, não lhe interessando nem saber o quanto era o alvo principal do lobo; no entanto, concordaria em participar da batalha, desde que todos pudessem sair vivos desse bosque infernal, mesmo que qualquer promessa de vitória estivesse distante de todos eles.
Todos nós vamos escapar com vida desse lugar.
Você, Crista de Galo, já é meu companheiro, independente do que quer fazer.
Nós não vamos morrer aqui, não!
Porque nós dois iremos incendiar esse mundo.
Felipa, vendo que o Sábio estava perdido outra vez em seus pensamentos, chamou a atenção dele: — Guilherme, ei, não se esqueça que fui eu que cuidei dos seus machucados. Foi o meu unguento que curou você. Também tem uma dívida de gratidão comigo. Se você ficar, e lutar, vou considerá-la paga.
Guilherme saiu da sua toca do coelho com um belo brilho no olhar, olhou para a garota, sorriu e respondeu: — Fique tranquila, nós não vamos para lugar nenhum, Alonso não vai lutar sozinho!
Não restando mais o que fazer, todos os três ficaram em posição de defesa, buscando adivinhar por qual lado a fera iria atacar. Alonso ficou na frente, empunhando a espada em uma mão e uma tocha na outra; Felipa no meio, com outra tocha; e Guilherme na retaguarda, abraçado na sua estranha pá.
Os sons dos pesados passos da fera abrindo caminho pelas touceiras de capim dedo-de-anão pareciam vir de todas as direções. A escuridão da madrugada caía sobre a densa floresta, devorando a própria luz oscilante das tochas.
— GRRRRRRRRRR… — Como o despedaçar de uma janela de vidro, um rosnado assustador quebrou a concentração do pequeno grupo.
Um ser terrível e monstruoso emergiu do matagal. Era um lobo gigantesco, com garras afiadas, cauda com um esporão de escorpião, a cara deformada e o olho brilhando com sede de vingança. Ela atacou com uma ferocidade impiedosa, quebrando com facilidade a formação de defesa do pequeno grupo.
Alonso lançou-se contra a fera com a sua espada, tentando mantê-la afastada de seus companheiros. Felipa com a tocha tentou acertá-la com fogo, enquanto Guilherme desferiu golpes com a sua pá em desespero.
Entretanto, o lobo revelou-se implacável em sua investida. Com fúria descontrolada, avançou contra eles, derrubando Alonso com um poderoso solavanco de ombro. Enquanto ele lutava para se levantar devido à sua perna ferida, o lobo partiu em direção aos outros, desferindo um golpe fatal com o ferrão da cauda em direção ao rosto de Felipa. No último momento, Guilherme conseguiu usar sua pá para bloquear o ataque, colocando a pá na frente da cara da garota e salvando-a. No entanto, o recuo da cauda atingiu o braço de Guilherme, lançando-o para longe.
Guilherme sentiu muita dor, só que ao se recuperar, notou que estava próximo da entrada da trilha que leva de volta para o sítio.
Com esse primeiro ataque da fera, a triste verdade se revelou perversa: nenhum deles estava preparado para aquela batalha e todos tiveram que descobrir isso da pior forma possível.
O grupo se dispersou. Alonso ficou à esquerda, na direção dos pântanos, Felipa foi empurrada mais ao sul, e Guilherme parou na entrada da trilha, com o caminho livre para uma fuga.
A fera diabólica ficou no meio, encarando-os, escolhendo o melhor aperitivo, e então, ela olhou para Guilherme e sorriu. O corpo dela tinha inúmeros cortes, sangue brotava das feridas e escorria pelas patas, e o rosto estava ainda mais deformado. Contudo, o brilho do único olho bom era tão intenso que o Sábio conseguiu ler o que estava se passando naquela cabeça medonha: aí está você, seu maldito covarde, eu sei que quer fugir, vou permiti que o faça, então abandone seus amigos e fuja, fuja, fuja…
Pelo menos foi isso que ele quis compreender.
Não dá para matar essa coisa.
Só com uma esplanada da sua cauda, ela quase arrancou o meu braço.
Vencer é impossível!
Ao se deparar com a trilha livre e encarar que a formação do grupo foi quebrada tão facilmente, o Coração do Sábio ficou mortificado, e ao se deparar com o ar de desespero nos rostos dos irmãos, percebeu que eles também haviam perdido as esperanças.
Eu fui um idiota, a gente nunca teve chance de vencer.
Mas eu posso escapar.
Não tenho ferimentos e consigo correr bem rápido.
Mas se eu for, essa besta estúpida vai ficar livre para matar aqueles dois.
Droga, droga, droga!
No meio desse impasse mexicano, a faceta mais sombria do Sábio Miserável emergiu quando ele se viu diante de uma escolha aterradora: sacrificar a dupla de irmãos como distração para salvar a si próprio ou arriscar a própria vida, chamando a atenção da fera, e assim, dar-lhes uma chance de escapar.
Eu não consigo…
Eu não consigo…
Eu não consigo!
Em um gesto automático, ele ergueu a cabeça e encontrou o olhar de Alonso, que parecia resignado, como se aquele movimento fosse uma despedida. O Crista de Galo acenou, concedendo de forma silenciosa permissão para que ele o deixasse para trás. Em seguida, com esforço, tentou se pôr de pé, usando a espada como apoio.
Droga, droga.
O que estou fazendo?
Afinal, é a mim que esse bicho quer matar.
Eu sou o cérebro, sou o sábio.
É minha obrigação pensar em alguma coisa.
Eu não quero fugir…
Mas não consigo pensar em nada.
Cadê todas aquelas estratégias e jogadas incríveis dos jogos de RPG?
“Esse conhecimento, no inferno não significa nada”, a pedra sempre teve razão.
Sabia disso, só não quis aceitar.
Droga!
— Pedra, tudo isso é culpa sua, e você vai me ajudar agora. Eu não consigo criar nenhuma estratégia para derrotar esse monstro, mas posso atrair esse desgraçado para longe deles.
— Eu vou ajudar como precisar, não se preocupe comigo.
— Tá bom. Você é uma pedra, por isso espero que não fique com dor de cabeça, apesar que todo seu corpo é cabeça, ah, esquece, vamos nessa…
Mais desesperado do que qualquer outra coisa, Guilherme agarrou a pedra, e começou a batê-la contra a entranha pá, criando um som metálico agudo e muito alto.
— Aqui, cachorro burro, é eu que você quer, vem pra cá, vem desgraçado… — Ele começou a andar devagar na direção da trilha.
O ruído agudo deixou o lobo com mais raiva e ele foi na direção do Sábio.
Como estava predestinado desde o primeiro encontro na floresta dos arredores da vila Folha-Seca, Guilherme encontrou-se, enfim, mais uma vez frente a frente com o terrível líder da matilha de lobos cinzentos. Ele estudou os assustadores contornos da fera e viu apenas a morte. Seu campo de visão era limitado porque tinha apenas um olho bom, mas era o suficiente para saber que estava muito ferrado.
Com o foco do lobo no Sábio, os irmãos ficaram livres para se recuperar do primeiro ataque. Felipa foi até Alonso e o ajudou a ficar de pé. Em seguida, ela disse, surpresa:
— Ele me salvou, não acredito, se não fosse aquela pá, estaria com um furo no meio da cara agora. Mas, o que ele vai fazer?
— Não sei, mas temos que ajudar! — respondeu Alonso, levantando a espada.
Guilherme não poderia continuar pela trilha, caso contrário, bloquearia a passagem dos irmãos, então ele seguiu para a esquerda, na direção da parte mais escura do bosque.
Esse bicho vai acabar comigo.
Cortar em pedaços pequenos e depois engolir.
Então é isso, entrei num isekai para virar bosta de um cachorro mutante!
Se pelo menos fosse um dragão milenar.
Que nada, virá bosta de um cachorro, é o fim cômico para um miserável.
A maldita que pensou nisso, tem um bom senso de humor.
Droga!
Ele pensou no leitão Wiubor, lembrando como aquele animal foi um triste exemplo do que ocorre quando os fracos tentam se tornar heróis. Para agravar ainda mais sua angústia, dentro das calças, ele sentiu o bilhete de despedida do açougueiro pinicando sua pele, e seu corpo inteiro estremeceu, pois não desejava de forma alguma sentir outra dor parecida com a de ter um olho arrancado a ferro quente.
Acima de tudo, foi dominado pelo pavor de ser deixado para trás, e voltar a ficar sozinho.
Ele era o alvo principal da fera, por isso se os irmãos fossem espertos, já estariam longe. Ninguém poderia condenar aquela dupla por isso. Ele mesmo esteve a ponto de fugir.
O Sábio precisou aceitar que para completar de verdade a sua primeira missão, teria que ser abandonado à própria sorte e morrer.
Maravilha!
Ele entendia o que isso significava, só que ele não queria ficar sozinho.
Por favor, não me deixem aqui.
Me leve com vocês.
Não…
No momento que entrei nesse bosque sabia que seria meu fim.
Mesmo assim o fiz.
Não culpo vocês, não culpo a pedra, não culpo ninguém.
Eu nunca valorizei nada, nem a minha vida!
Só que Guilherme teve um choque de emoção, quando viu que Alonso e Felipa, com toda a dificuldade do mundo, estavam vindo ajudá-lo.
Maldito Crista de Galo, é para você salvar sua irmã.
Não eu.
O que você pensa que está fazendo?
◈◈◈◈◈◈
O Galo Mais Forte do Mundo
O rosto do Sábio ficou ainda mais pálido, mas ele não disse nada, e Alonso teve a impressão de que a vontade de viver de seu companheiro havia se esvaído. Ele se lembrou da conversa que tiveram no chiqueiro e compreendeu que, para aquele garoto, a própria vida não tinha valor, e que há muito tempo, por algum motivo, ele já havia desistido de tudo o que amava.
Alonso já tinha enfrentado suas tragédias, mesmo assim, não conseguia imaginar o que levaria uma pessoa a carregar uma carga tão negativa sobre os ombros.
— Guilherme, você não é o Sábio Miserável? Não é você que valoriza sua vida mais que tudo? Não desista! A gente vai matar essa coisa feia — gritou o Crista de Galo, e depois de se soltar do braço trêmulo da irmã, assumiu uma desajeitada posse de batalha. Sua coxa machucada dificultava muito a situação, mas se manteve determinado.
— É se matando que você quer honrar sua palavra, seu paspalho? — acrescentou Felipa, com seriedade, afastando-se do irmão e apoiando-se da melhor forma que pôde devido ao pé ferido. Mesmo assim, ela ergueu a tocha e a apontou para a fera. — Eu também vou ajudar!
— Não façam isso, é melhor que não se envolvam ainda mais nessa briga, ela é minha. — Guilherme parecia diferente, não de uma forma boa, e sim, de uma forma triste. — Os dois estão feridos. Alonso, você quer salvar sua irmã, certo? Não quero que fiquem aqui, droga, vão embora, seus malditos...
As palavras do Sábio eram verdadeiras, e isso mexeu com Alonso. Tudo estava indo mal, ou pelo menos quase tudo. Seria sensato recuar, levar a irmã para um local seguro e deixar para trás o Sábio Miserável. Em um instante, ele fechou os olhos, sabendo que ninguém viria salvá-los daquela luta; não dessa vez!
Acima de todas as questões, pairava uma, a mais torturante de todas: teria coragem suficiente para ser forte? Teria sobrado um fragmento do sentimento que experimentou quando a mãe foi assassinada, a ponto de admitir a ideia de um novo confronto com a morte?
Durante aquele interminável segundo de indecisão, uma lembrança surgiu em sua mente, fazendo-o sentir outra vez a pesada espada da crueldade dos poderosos. Ele tinha sido cercado pelo grupo de aventureiros da Mão de Ferro, determinados a matá-lo por ter fugido de um poderoso escravocrata, mestre das grandes caravanas, o Marquês do Percevejo.
Foi então que um soldado, com coragem, se colocou na frente e lutou sozinho para salvar a vida de um mero filho de uma escrava morta. Seu nome era Aliam, Casca do Sobreiro, e sua coragem mudou a vida daquele menino para sempre…
A situação era a pior possível, uma vez que o grupo de aventureiros era da classe C, e seu líder era um guerreiro poderoso. Aliam apertou o braço do menino em sinal de confiança e, em seguida, destemido, empurrou o frágil e pequeno corpo para o lado e assumiu uma postura de batalha para enfrentar os inimigos.
A cerração da noite molhava o sangue seco no corpo de Alonso como uma cascata fria e pesada. Foi com surpresa que, poucos segundos depois, ele viu o soldado rasgar o rosto do líder dos aventureiros de um lado a outro com um poderoso golpe de espada e sentiu satisfação ao ouvir o cruel homem gritar de dor.
“Sir Medric, o Flamejante, sua vergonha não conhece limites!”, gritou o soldado, brandindo a espada na direção dos outros homens. “Você matou uma mulher indefesa, e agora quer matar uma criança?”
“Casca do Sobreiro, canalha maldito, não professa vergonha para mim. Você é um soldado ponta branco, vai mesmo virar as costas para seu dever por causa de um filhote de cão?”, indagou o Flamejante, com a face ensanguentada e a mente dominada pelo ódio. “Muito bem, vou enterrar toda a sua história junto com você, aquela escrava e esse maldito menino!”
Ainda que Alonso se sentisse satisfeito ao ver o assassino de sua mãe receber um justo castigo, ele não conseguia compreender por que aquele soldado lutava por um desconhecido, pois tudo o que havia testemunhado desde que foi arrancado de sua terra natal era a crueldade e a ganância dos homens.
“Ninguém é forte o bastante para salvar outra pessoa.” Confuso, o menino com seu corpo ensanguentado com o sangue da própria mãe, perguntou: “Por que você quer me salvar?”
“Isso não é certo. Isso nunca foi certo. Homens poderosos caçando mulheres e crianças por prata”, afirmou Aliam, encarando os inimigos enquanto eles ajudavam o líder. “Não… aquela mulher foi a mais forte de todos nós. Ela abriu meus olhos, à muito fechados. Eu havia me esquecido do meu juramento de soldado: é dever do forte proteger o fraco!” Ele foi até o menino, segurou nos seus braços e disse com o olhar mais firme que aquela criança já havia visto na vida: “Nunca esqueça a promessa que fez para a sua mãe, que o sacrifício dela nunca será em vão!”
A dor do passado se mesclava ao sofrimento do presente, pesando em seu coração. A promessa que ele fez à mãe, o companheiro e amigo que ele julgou leal, as grandes aventuras que ele sonhou com confiança e alegria, tudo estava em jogo nessa batalha e na forma como iria reagir, eu não vou ser fraco!
Percebeu que só existia uma escolha e que podia parar de se torturar tentando encontrar um modo melhor de lidar com a situação. Não precisava mais pensar se deveria ou não lutar pelo Sábio, já que pensar nunca foi sua melhor característica. Tudo o que precisava fazer era separar a cabeça do corpo daquela criatura maligna.
Ignorando os protestos de Guilherme, Alonso abriu os olhos e avançou para atacar o medonho líder das matilhas de lobos.
...