Volume 1 – Arco 2
Capítulo 54: O Sábio Miserável na Clareira da Morte - parte 2
Naquela clareira, parado ao lado dos irmãos, Guilherme correu a vista pelo lugar e abraçou a sua estranha pá, torcendo que ela se revelasse uma arma poderosa. Só que nada aconteceu.
Por um instante, de olho fechado, permitiu o pensamento buscar a lembrança do homem que não conseguia esquecer. Em sua mente, via outra vez o rosto cruel e de expressão sinistra, ouvia o riso debochado e as provocações maldosas que usava para falar com os assistentes. Era incapaz de se libertar dessas recordações, que persistiam dentro dele como brasas incandescentes, consumindo seu olho esquerdo e devorando suas esperanças.
O açougueiro apoderou-se de sua vida com tanta firmeza, que nem dormindo ele conseguia esquecê-lo, vendo-o em sonhos que o apresentavam como o carrasco dos deuses, a fera sangunária e, para sua tortura, o lembrete de que nunca passou de um fraco corvade.
Guilherme tirou o bilhete ensanguentado de dentro da calça, olhou para ele e suas mãos tremeram.
Eu não tenho força.
Como vou proteger alguém se não consigo proteger a mim mesmo?
— Guilherme, se livre desse bilhete, aqui e agora, ele só lhe faz mal… — disse a pedra. — Está arrastando seu coração para as trevas.
— Não, pedra, esse é meu cartão de visitas, e vou usá-lo quando voltar naquela cidade maldita e reclamar tudo que foi tirado de mim! — disse sussurrando.
Alonso observou quando o Sábio retirou o bilhete de dentro das calças e ficou estranho, porém optou por não fazer comentários, pois acreditava que aquele pedaço de papel tinha alguma importância para o companheiro. Imaginava que poderia ser um presente de alguém da sua terra natal, talvez um membro da família. Embora pudesse parecer estranho algo tão significativo estar manchado de sangue, para o Crista de Galo não fez tanta diferença assim, pois a última vez que viu sua mãe, ambos estavam com os corpos cobertos de sangue. Portanto, ele apenas fingiu não ter notado nada.
— Por que você está parado aí? — Felipa agiu de forma diferente do irmão devido à sua irritação causada pela dor aguda em seu pé. Ela não tinha paciência para nada, muito menos para tentar entender por que aquele paspalho estava parado como uma paca assustada, apenas prolongando seu sofrimento. — Você não disse que queria sair rapidamente deste bosque? Ah, não me diga que está chorando?
— Não é nada… — Guilherme enfiou o bilhete de volta dentro da calça, de uma forma toda estabanada.
A garota percebeu o nervosismo dele e perguntou um pouco explosiva: — Você tinha algo nas mãos, o que era, diga?
— Ele tava falando com a pedra mágica, é isso, satisfeita — interveio Alonso. — Felipa, deixe ele em paz, todos temos nossos problemas, e guarde a sua chatisse para quando retornarmos, traa, pode ser?
— Eu tinha me esquecido que o único amigo desse garoto é uma pedra de rio.
— Não é verdade, eu sou amigo dele!
Guilherme esboçou um sorriso, embora as bandagens em seu rosto o escondessem. No entanto, para não tirar o valor de um simples jesto de companherismo, ele foi o suficiente para o Sábio conseguir lagar o bilhete maldito nas profundezas escuras de sua calça.
— Você é um cabeça de vento, meu irmão. Ah, não estou nem aí, só quero que ele fique atento, porque todos nós estamos em perigo. E outra coisa, chata é essa sua crista vermelha horrível.
Apesar de tudo, Felipa não tinha culpa do mau-humor, já que a ferida no pé lhe causava muita dor e, para locomover-se, precisou se amparar no irmão que lhe ofereceu apoio, avançando devagar e com muito cuidado.
Alonso parecia bem adaptado naquela altura, todavia, não queria demonstrar a dor que estava sentindo com a coxa ferida, só que era evidente que a sua situação era ainda pior, precisando fazer um esforço considerável para se manter firme.
Guilherme assistia o estado dos irmãos com tanta preocupação que esmagava-lhe o ânimo.
Como vou tirar esses dois desse lugar?
Para se sentir melhor, ele dava pequenas batidas na sua peculiar arma improvisada.
Vamos pá, anda, sei que tem algo aí dentro…
Esse clichê dos isekais é o mais certo de todos.
Vamos…
Você não vai me deixar na mão, não é?
Independente dos apelos do Sábio para aquele pedaço de ferro enferrujado, a divisão do grupo ficou dessa forma:
Felipa pegou a tocha que estava com o irmão, a qual não apenas iluminaria o caminho, mas também poderia servir para sua defesa. Porém, ela se viu em uma situação aterradora ao sentir o medo se insinuar por todo o seu corpo. Ainda que as reações abobadas dos garotos mostrassem uma situação sob controle, ela sabia que a besta feroz estava em algum lugar, esperando o momento certo para atacar, e por isso precisaria ficar em alerta para defender o paspalhão, o irmão e a si mesma.
Esse sentimento era tão verdadeiro que o Sábio Miserável se tornou a sua maior preocupação. Ela tinha a certeza de que, diante do primeiro sinal de perigo, o paspalho fugiria. Ou pior ainda, pois um covarde desesperado pode ser muito mais perigoso do que qualquer fera raivosa, disposto a sacrificar vidas alheias em prol de sua própria segurança.
A garota lançou um olhar atravessado para Guilherme, para então erguer a tocha, mostrando uma determinação inquebrável.
Enquanto a coxa quebrada castigava seu corpo, Alonso assumiria a responsabilidade de levar sua irmã. Então, com a destreza de um equilibrista, ele começou a caminhar com cuidado pela trilha irregular do bosque, apoiando Felipa. Todo o peso desse trabalho recairia sobre sua perna boa e cada passo se transformou numa dança precária, equilibrando-se entre seguir a trilha e evitar cair em algum buraco.
Já Guilherme ficou com a crucial responsabilidade de proteger a retaguarda dos irmãos. Ficar para trás era um trabalho que ele não queria de forma alguma, mas como era o único que estava inteiro, teve que aceitar a tarefa. Ele também ficou responsável por levar a espada, além de carregar a sua estranha pá e a tocha.
É claro, eu tinha que ficar com o trabalho mais difícil.
Nem sei por que tô fazendo isso.
O que vou ganhar?
Tá fazendo por um amigo!
Ah, deixa disso…
Para piorar, aposto como aquela sardenta pensa que sou um covarde.
Pensa que vou fugir.
Droga, ela vai quebrar a cara.
Vai ver!
Num ímpeto de exaltação e capricho, ele quase atirou a pá no mato. Contudo, acabou desistindo e, com uma postura retraída e olhar atento, passou a acompanhar os irmãos caminhando à frente, certificando-se de que não percebessem seu olhar crítico. Enquanto observava como eles se ajudavam, o Sábio pensou em Paulo, seu irmão que havia ficado na Terra. Por um momento, sentiu entusiasmo ao lembrar que agora tinha um sobrinho também.
Se aquela visão não foi mais um truque do maldito querubim deformado.
O Lucas é meu sobrinho.
Quando atravessar o lago sem fundo e voltar para a Terra, vou querer conhecer ele melhor.
Só… será que o Paulo vai perdoar tudo que fiz.
Não posso pensar nisso agora.
A minha missão agora é tirar esses dois desse lugar!
A fim de compreender melhor sua situação e aproveitando que estava com a espada, o Sábio tentou realizar alguns testes. No entanto, ao segurar o punho dela, percebeu que era como empunhar a própria pá, sentindo desconforto e agonia, como se estivesse segurando uma sacola cheia de fraldas sujas prestes a romper. Em outras palavras, parecia que a própria espada o estava rejeitando.
O que há de errado com essa espada?
Não…
O problema sou eu.
De fato…
Eu fui burro por escolher uma arma sem ter certeza.
Se não tiver facão nesse mundo, tô muito ferrado.
— Pedra, essa espada mostrou que estou preso ao facão. Pior, será que existem facões nesse mundo?
— Esse modelo é semelhante a uma faca comum. Deve haver algum camponês que a possua. No pior cenário, ainda pode ser forjada — respondeu a pedra. — Mesmo que não exista nada semelhante neste mundo, você pode contratar um ferreiro talentoso e fornecer as medidas necessárias para que ele a forje para você.
— Que droga, com tantos modelos de armas poderosas que conheço dos animes e das novels, vou ter que fazer uma faca de cozinha gigante. Todos vão dizer que é uma arma de camponês. Dessa forma, os outros bandos de mercenários nunca vão me respeitar.
— Você ainda verá maravilhas com os itens mais simples. Não se deixe desanimar, o que faz de uma arma ser lendária, é o seu usuário.
— Você acredita que posso ser um grande espadachim com um facão?
— Sim! Lembre-se que você tem o total controle sobre o fichário do jogador, por isso tudo é possível. Sua única barreira é seu nível baixo e sua covardia.
— Precisa falar assim?
— Você é um covarde, não pode negar isso porque faz parte de sua natureza. Só que acredito que irá superar o medo e poderá expandir seu nível para operar as grandes maravilhas.
Pedregulho de merda, morde e assopra…
Mas é verdade.
Deste a vila Folha Seca que não olho o meu fichário do jogador, que droga, havia esquecido dele.
Também, não tive um minuto de paz.
Ainda assim, sou um idiota, ele é a fonte do meu poder.
Com tudo que passei, será que não subi nenhum nível?
Se bem que não sentir nada diferente.
Depois que isso acabar vou ter que conferir meus pontos.
— Havia esquecido — perguntou a pedra —, não foi?
— Ah, claro que não! Além de corvade, agora vai me chamar de idiota também?
— O dragão escaldado tem medo de água fria.
— Ei, volta para a realidade, não é hora de se tornar um imbecil completo — chamou Felipa. — Pare de choramingar para essa pedra e preste atenção no caminho.
A garota ficou olhando para o sábio sem falar mais nada, até perceber que não iria receber nem um sinal positivo sobre a compreensão das suas instruções, então suspirou desanimada.
— Tenha respeito, Felipa, ele está falando com a pedra — disse Alonso, despreocupado, e continuou andando. — Ela é uma criatura mágica do grande rio.
— Qual rio?
— Não faço ideia, mas ela é capaz de falar.
— Você ouviu?
— Não, traa, não ouvir uma só palavra.
— Mesmo assim você só acreditou, não é mesmo? Nossa, é uma dupla de paspalhos. Vou morrer nessa floresta! Era melhor eu ter ficado escondida naquela mata. E quando o lobo viesse comer vocês, eu daria no pé.
Não sei qual pé?
O que está ferrado?
Que garota chata, e eu ainda achei ela bonita.
Gaaaado deeeemais…
Enquanto Felipa afirmava o que havia dito, houve uma sutil movimentação no matagal próximo a eles, mas devido à tagarelice da descompensada, nenhum deles percebeu.
— Guilherme, há alguma coisa se esgueirando no mato à sua esquerda — disse a pedra.
Guilherme hesitou, sem saber se avisava para os outros também, mas naquele instante ele viu as touceiras de mato se moverem de uma forma diferente do que a causada pelo vento.
— Vocês não entenderam nada do que eu disse — Felipa continuava reclamando.
— Bosta, cala a matraca, garota! — Guilherme apontou na direção da movimentação. — Tem alguma coisa ali espreitando a gente.
Alonso se acostumou logo com a situação. Antes de qualquer coisa, pegou a espada das mãos do Sábio e lhe jogou a irmã, e então armou a guarda.
Depois de apoiar a garota, Guilherme foi para frente dela, ficando de contraposto para Alonso, escondido atrás da pá.
— O que foi, o que você viu? Tem certeza que não era o vento? — perguntou Felipa.
— Eu sei que você pensa que sou um covarde. E você não está errada. — Guilherme olhou para trás e seu único olho bom alcançou a garota. — Eu sou o que sou, mas prometo que nem você e nem o Crista de Galo vão morrer: MINHA PALAVRA É MINHA HONRA!
— Certo, então prove que até os covardes podem ter honra, Sábio Miserável!
Na frente, ouvindo a discussão, Alonso sorriu e encarou o matagal sem temor.
O pequeno grupo se preparou da melhor forma possível para enfrentar o que fosse sair daquelas touceiras de mato.
A grande lua vermelha despejou sua luz sobre o bosque dando-lhe um aspecto fantasmagórico. Guilherme apertou a pá contra o peito, enquanto esfregava o queixo nela, sem perceber que estava tremendo de cima a baixo.
Custe o que custar, não vou deixar eles morrerem!
...