Last Downfall Brasileira

Autor(a): VALHALLA


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 52: O Sábio Miserável na Clareira da Morte

Guilherme estava aprisionado por uma ansiedade crescente, desejando escapar daquela armadilha natural criada pelo espesso matagal que a dupla de resgate encontrou ao seguir a trilha dos lobos.

Ele observava, com o coração apertado, os pequenos animais fugirem para direções opostas, como se eles sentissem o mesmo mal que o assolava. Incapaz de compreender o que teria provocado a cena brutal que se revelou diante dele, o seu único olho bom se esforçou para capturar a dimensão completa da carnificina daquele lugar.

O Sábio se sentiu tragado por um redemoinho de sangue e corpos desmembrados.

As noites do solstício da lua azul sucediam-se, nebulosas. A grande lua vermelha cobria o ambiente com um fino véu avermelhado. Junto do brilho das estrelas e das duas luas, o bosque, vestido de penumbra, estava ainda mais assustador.

O ar estava carregado com um cheiro acre de terra revolvida, sangue e podridão, tornando quase impossível respirar de forma normal.

Guilherme se arrependeu no mesmo instante em que adentrou mais naquela trilha, ao ver o horripilante cenário se estendendo por toda parte, onde pilhas de ossos dos mais diversos tipos se empilhavam, corroídos até o tutano. De maneira bizarra, esses elementos transformavam aquele lugar em um imenso buffet ao ar livre.

E as duas sobremesas frescas haviam acabado de chegar.

O terror estampou-se no rosto coberto por bandagens do Sábio. O ar estava gelado, e mesmo assim ele precisou passar a mão sobre o olho bom, ofuscado pelas gotas de suor provenientes do nervosismo, revelando uma visão ainda mais apavorante do cenário.

Por causa do medo, ele começou a sussurrar, misturando palavras de pavor e interrogação, numa cômica confusão.

Alonso se sentiu derrotado, e esse sentimento era como ferro em brasa marcando a pele, devorando a coxa ferida. Ele precisou reavivar toda a sua coragem para continuar, ainda que a confiança que a irmã pudesse estar viva diminuísse a cada minuto.

Ele passou a mão no sangue espalhado pelas folhas e pelo mato, e percebeu que aquela quantidade não era normal. Se havia algo que se podia afirmar sobre as feras famintas, era que elas não tinham o hábito de desperdiçar comida.

Então encontrou uma cabeça de lobo arrancada até a raiz, e foi fácil determinar isso porque o dorso do pescoço ainda possuía parte da espinha dorsal. Num movimento de raiva, ele chutou a cabeça na direção do companheiro.

— Veja, esse maldito não quer mais morder, não é?

Guilherme olhou aquilo e quase caiu para trás.

— OHOUU… di, digo, é é uma cabeça de lobo?

— Traa, isso não é bom, isso não é bom! Tá muito quieto, muito estranho, muitas mortes… — Alonso olhou melhor ao longo da trilha. — Cadê você, minha irmã...

— É sério isso, Alonso? Eu só tenho um olho e você que é o cego? É melhor a gente dar o fora desse lugar. Nós não vamos achar ela aqui. Ela está mort... deixa, só vamos embora. Talvez ela tenha corrido, talvez até já tenha voltado para o sítio. É isso, tenho certeza.

— Eu sei que você acha que é tarde demais. Mas eu só vou voltar depois de encontrar a minha irmã, viva ou morta.

— Cara, isso é loucura, sua perna tá ferrada. Vamos voltar, acredite em mim, isso é o melhor.

— Se você quiser voltar, pode ir, eu cuido de tudo aqui. Isso seria até bom porque você pode avisar o senhor Aliam sobre tudo isso que encontramos. Diga para ele reunir os outros camponeses. Há alguma coisa grande no bosque, todos na redondeza correm perigo.

Guilherme segurou a sua estranha pá entre os braços como se fosse um escudo.

Algo maior que os lobos?

Merda!

— Você quer enfrentar essa coisa grande? Grande quanto? Você quer dizer outro crocodilo?

— Não é um crocodilo, isso tenho certeza. Mas não se preocupe comigo. Agora vá, é só seguir pela mesma trilha que viemos, ficar longe da água e manter a tocha acesa, que vai conseguir voltar.

— Voltar, VOLTAR SOZINHO? N-não! Vou ficar aqui. Você não vai lutar sozinho. Fiz uma promessa e estamos juntos nessa até o fim.

— Obrigado, amigo, juntos, eu acredito que vamos vencer as feras e salvar a testuda.

Vencer, até parece…

Droga!

Tem mato por toda parte.

Tô recuperado, minhas pernas tão boas.

É isso!

Mas o quanto eu aguento correr?

Idiota, o tanto não importa agora.

Você só precisa ser rápido para fugir!

Alonso continuou pela trilha, com o tilintar da esperança na mente, o brilho da tocha iluminando o caminho e a espada empunhada firme na mão.

Guilherme imitou os passos do Crista de Galo, com o tremor do medo percorrendo todo o corpo, o brilho da sua tocha oscilando por causa dos tremores e agarrado na estranha pá. Mais que depressa, ele se acomodou perto do companheiro. Sua mão apertou forte o cabo da sua arma improvisada e ficou atento a cada ruído. 

Mais partes de corpos apareceram pelo caminho, patas e caudas. Os lobos foram dilacerados. Seguindo a trilha, encontraram mais e mais partes dos bichos, muito sangue e sinais de uma violenta batalha.

Num momento, perto de uma touceira de mato, por causa da luz oscilante e a visão apenas de um olho, o Sábio pensou ter visto uma mão humana, seus bofes quase saíram todos, mas era apenas uma pata de lobo deformada pelas sombras.

Não é a mão dela.

Ainda bem…

O Crista de Galo iria ficar arrasado.

— O que foi, viu alguma coisa? — Alonso perguntou.

— Não é nada… — disse apenas, e isso foi estranho. 

Não contar sobre a impressão macabra talvez tenha sido uma escolha errada do Sábio, porque para Alonso, não haver partes humanas naquele lugar, enchia de esperanças o seu coração. E nessa altura da incursão, isso não era nada favorável para o nosso mercenário covarde porque o garoto do cabelo cor do fogo continuaria adentrando na mata, e ninguém podia saber até onde.

O Sábio sabia disso, e mesmo assim optou por não jogar suas firulas. O porquê dele fazer isso era um mistério para si próprio tão grande quanto as duas luas no céu.

— Ela está viva, meu amigo. — Alonso repetia essas palavras, mais para si mesmo, que qualquer outra coisa. — Eu sinto isso, pode confiar em mim.

Confiar uma pinoia.

Na verdade, você não precisa nem se preocupar, porque vamos encontrar ela.

Vamos nós três de mãos dadas para o pós vida.

Droga!

Depois de Skog e esse mundo, nem sei se existe algo depois da…

A gente vai morrer.

Após uma curta caminhada, a dupla de resgate chegou numa clareira aberta dentro do matagal, cercada por altas touceiras de mato dedo-de-anão. A visão que se revelou diante deles foi horrenda.

— O-o que aconteceu aqui? — Incrédulo, Guilherme engoliu a saliva que reuniu dentro da boca desde o ataque do crocodilo.

— Foi uma batalha! — Alonso respondeu correndo para o centro.

Guilherme suspirou e fechou o olho bom por um momento. Ele sempre descreveu esses cenários nas mesas de RPG, só que ali, sentindo o cheiro forte de carne crua, ele ficou sem saber o que fazer.

Caso conseguisse compreender tudo o que encontrou, seria capaz de bolar uma estratégia para escapar dessa situação perigosa. Só que sua mente estava nebulosa demais para se enfiar na sua toca do coelho.

Na clareia havia pedaços de lobo por toda parte. Os corpos tinham profundas feridas e alguns tiveram a pele rasgada de uma ponta a outra, e o formato do corte lembrava os cortes feitos por duas lâminas afiadas. O resultado parecia as carcaças que sobraram depois dos curtumeiros arrancarem a pele para a curtição.

Porém, o que realmente assombrou Guilherme foi o imenso corpo de um felino, maior do que os bisões que vagam pelas planícies da Terra, desfalecido próximo a um aglomerado de touceira de capim dedo-de-anão. A pelagem da fera lembrava a aparência de uma onça-pintada, e os enormes dentes que se destacavam de sua boca evocavam a imagem de um animal que, na Terra, só tinha uma comparação: o tigre dente-de-sabre.

Só de lembrar do tigre dente-de-sabre, já tenho calafrio.

Na região do sítio do vovô tinha essa peste.

Ah… naquela vez, quando voltei da escola, um quase arrancou meu braço.

Que perigo!

— Que criatura é essa? — perguntou Guilherme, se recuperando das lembranças ruins.

— Você não conhece? É uma devoradora de homens. Todo camponês tem medo dessa fera.

— Já falei, sou de uma terra distante. Lá não tinha essa coisa.

— Certo, sorte do seu povo. Ela é uma Onça Dente-de-Sabre. É uma fera muito perigosa, bicho de espreitada, gosta de devorar os camponeses que saem pela manhã para cuidar de suas terras. É um animal muito poderoso. — Alonso se aproximou do corpo, e viu nele um profundo furo na altura do pescoço. — Está morta. Foi aquilo que a matou. Parece a estocada de uma lança…. tem caçadores aqui — disse animado. — Eles vieram caçar a matilha e se depararam com essa fera. Tenho certeza que salvaram a testuda.

Guilherme olhou a ferida e reconheceu o padrão. Não tinha como esquecer depois que aquilo acariciou seu rosto.

Não, Crista De Galo, sinto muito, não há mais ninguém aqui, além de nós.

Não foi a ponta de uma lança que matou esse bicho.

Foi o esporão da cauda daquela aberração, o líder da matilha.

Tenho certeza.

◈◈◈◈◈◈

O Galo Desesperado

Alonso se deparou com a expressão preocupada do Sábio e sentiu seu coração apertar, com uma sensação ruim de inquietação. Por mais que quisesse acreditar que havia caçadores na floresta, sabia muito bem que isso não seria impossível, já que não havia sinal da presença de um grupo grande naquelas matas. Para piorar a situação, se uma onça dente-de-sabre estivesse em plena caçada, nada conseguiria escapar.

Cançado, ele apoiou o peso do corpo na perna machucada.

Então um pensamento repentino quase o derrubou ao chão, se ela conseguiu escapar dos lobos e dessa fera, deve estar muito ferida. Preciso encontrar ela rápido!

Ele não caiu porque usou a espada como bengala. De certa forma, o Crista de Galo não poderia se dar ao luxo de tombar ali.

Seu coração estava apreensivo com a possibilidade de não conseguir salvar a irmã. A garota, Aliam e Mia eram as únicas pessoas a quem ainda se sentia ligado neste mundo. Depois que a mãe foi assassinada, foram essas pessoas que o acolheram. No entanto, Filipa era especial. Foi ela que o fez sentir-se num lar de verdade depois de perder tudo, até mesmo a esperança. Além disso, a garota era espirituosa e determinada, uma flor à espera de desfrutar de uma vida feliz.

Ele lembrou quando era uma criança e chegou na nova casa. Após se lavar para tirar o sangue da mãe do corpo, uma pequena garotinha veio lhe trazer uma toalha para se secar.

“A sua toalha vai ficar suja”, disse ele, ainda tímido e choroso. 

“Não tem problema. Agora você é meu irmão, tudo que é meu, e seu também”, a menina se aproximou dele, “porque você tá chorando? Toalha suja é só lavar.”

“Eles mataram minha mãe.”

“Foi? Olha, vou dar para você minha mãe e meu pai, tá bom? Você não tá sozinho!” Ela agarrou ele pelo pulso e o puxou para cozinha, “você gosta de caldo? Mamãe fez para você comer, vamos, vamos… meninos não podem ficar chorando, sabia?”

De volta para o horror dessa noite, Alonso se apoiou com a espada e levantou a tocha para o alto.

— Ela não morreu. — Pressionado, Alonso orou baixo. — Sjel, eu não dou a mínima para quem você é…

“Você era o deus que minha mãe tinha fé. Ela me contou que os deuses precisam das orações das pessoas, não é isso? Pouco lembro da minha terra natal, mas as suas histórias eu guardo no meu coração.

“Você quer Last Downfall? Esse tesouro é importante para você? Muito bem, por minha mãe, por meu povo, eu imploro que cuide da minha irmã. Ela é uma garota esperta, sei que ela deve ter dado um jeito de escapar.

“Não sou de orar, e será muito difícil ter outra oração minha, na verdade, queria que todos vocês nem existissem, mas faço uma promessa, se você proteger a minha irmã, prometo que vou buscar a estrada, me entregar na graça de VALHALLA, e serei eu que irá encontrar Last Downfall, em nome de sua glória!

“Então, você aceita, deus idiota?”

...



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