Volume 1 – Arco 2
Capítulo 51: A Incursão do Sábio Miserável - parte 2
Guilherme ficou atônito diante do crocodilo monstruoso. Os músculos poderosos da fera se contorciam sob uma pele escamosa e amarelada como a areia de uma praia. A boca do animal estava escancarada, apresentando as presas afiadas semelhantes a lâminas que reluzem à luz das tochas, revelando a sua fome insaciável por carne.
Consciente de sua própria impotência diante da poderosa voracidade da fera, Guilherme só conseguiu imaginar seus ossos sendo triturados por aquelas mandíbulas.
Eu quero que a pedra quebre todos seus dentes, bicho maldito.
Que pena, Alonso… a gente poderia ser grandes amigos.
A maior de todas as aventuras!
O Sábio Miserável fechou os olhos e aceitou o fim.
Só que não era o fim. Para o alento do sábio, e com movimentos ágeis, Alonso saltou e empurrou Guilherme para fora da morte certa.
No entanto, essa ação deixou o Crista de Galo no campo de visão do crocodilo, que muito rápido girou o corpo, fazendo sua imensa cauda atingir com violência a perna direita do garoto.
A essa altura, ele estava à mercê da imensa boca cheia de dentes, pois sua posição desfavorável e o golpe da cauda que foi capaz de trincar o osso do fêmur o deixaram vulnerável.
O crocodilo girou o corpo mais uma vez e ficou de pé em frente a Alonso, e Guilherme ficou caído no chão, bem em frente aos dois, mas virado meio de lado.
Ele me salvou…
Não foi Alonso que convocou o crocodilo?
O bicho quer devorar ele também.
O que é isso?
Apesar da mente embaralhada, o Sábio escapou do violento ataque e respirou aliviado. Após analisar a situação, tal como a inserção de um raio, ele pressentiu o que estava prestes a acontecer e indicou ao companheiro que se afastasse da fera.
Então, o crocodilo faminto ignorou o miserável magricela, e voltou seu desejo para Alonso que estava ao seu alcance. Com violência, o bicho começou a abocanhar a ponta da espada.
Mesmo com a perna direita inutilizada, o garoto de cabelo cor de fogo ficou de pé e encarou o faminto animal.
— Guilherme, vá ajudar — disse a pedra —, os dois juntos podem derrotar o crocodilo.
N-não, não consigo…
Ele é iditota?
É só fugir, é só isso que tem que fazer.
Porque aquele garoto não sai de lá?
O Sábio Miserável arrastou-se para longe, coberto de lama e com a alma tão suja quanto a imundice do pântano.
Alonso puxou a espada, que cortou um pouco a boca do crocodilo. Depois sacudiu a tocha na frente dos olhos do bicho. Ele não queria machucar aquele animal, como também não queria ser a refeição dele, então decidiu afugentá-lo de volta ao pântano.
Ele suportou a dor da coxa ferida e elevou o corpo, balançando a tocha e batendo a ponta da espada no chão, enquanto caminhava devagar para frente.
— Grande animal da água, TRAAA, TRAAA, não sou seu inimigo, não sou seu alimento, a terra não é seu lugar — falou ele.
O crocodilo sacudiu a cabeça e deu alguns passos para trás, o bicho parecia atordoado.
Guilherme fixou a atenção no companheiro enfrentando sozinho aquela criatura monstruosa, sentindo o seu admirado coração acelerar. Naquele lugar, naquela situação, havia várias razões que davam base para as suas desconfianças e tudo aquilo só poderia ser outro embuste dos sentidos.
Desde que foi massacrado na cidade de Carrasco Bonito, ele não teve mais dúvidas de que a bondade não tinha lugar neste mundo. Isso se algum dia existiu uma realidade onde a bondade fosse valorizada, afinal.
Onde os fracos não têm vez.
Essa é a lei da existência.
O maldito do Anton Chigurh bebia leite enquanto estourava a cabeça das pessoas com um aspirador de pó.
Argh!
Bondade não existe.
Guilherme olhou mais uma vez aquela cena e só conseguiu ficar mais empolgado, ao mesmo tempo que confuso.
Em um instante, a fera fez um ataque. Alonso teve que acertar a espada no focinho dela, na cabeça e ao longo do corpo. Apesar de não cortar a pele escamosa, isso causou dor suficiente para causar-lhe desconforto.
A pele desse bicho é tão dura assim?
Não é isso, é a espada que não foi capaz de cortar.
“É meu orgulho do tempo de soldado”
Sei…
Que bela espada, essa sua, velho manco de merda.
Mas não é só isso, Alonso não quer machucar o bicho.
Ele respeita tanto assim a memória dos seus ancestrais?
Isso não é bom!
Mesmo com a inútil espada, e sem desejo assassino, Alonso continuava avançando.
— Pare, não ataque mais, não quero ferir você, volte para a água…
Guilherme achou um tanto inútil tentar falar com o crocodilo, pois era impossível que a fera faminta compreendesse qualquer coisa. Contudo, ele aceitou o respeito do companheiro por aquele animal, sem mencionar que enfim pode vislumbrar o verdadeiro espírito de luta; aquele inquebrável diante de um propósito.
Alonso continuou avançando, subjugando a fera diante de sua vontade.
Essa ação era a representação do sentimento que Guilherme sempre encontrou nas novelas, viu nos animes e experimentou nos jogos; sim, era o sentimento que ele sempre desejou. O ideal de coragem que orientou todas as suas teorias sobre aventuras, mas que nunca teve a oportunidade de vivenciar de uma forma verdadeira.
Ah… sem contar aquela vez; aquele dia escuro e barulhento no sítio dos avós. Só que diante do perigo, ele foi um miserável.
Um homem não pode recuar na sua vontade.
Eu nunca entendi isso.
Então foi isso que aquele carroceiro cheio de carcaças disse para mim no Bosque dos Sussurros.
E eu ignorei…
Cristóvão, quem era você, cara?
Foi isso que Zoro sentiu quando usou o próprio peito para avançar contra a espada do Mihawk.
Foi isso que Piccolo acreditou quando saltou na frente do golpe de Nappa para salvar Gohan.
Por que não consigo fazer que nem eles?
Por que para mim é tão difícil?
Sou o Sábio de alma miserável...
Tão vazia como o buraco do meu olho esquerdo.
Guilherme sentiu o peito apertado; ele já havia experimentado esse sentimento antes, nos dias em que passou no chiqueiro e pôde conhecer melhor aquele garoto. No entanto, agora ele aceitou de forma definitiva que Alonso era o exemplar de guerreiro que havia sonhado em ser durante toda a sua vida na Terra.
Porém, se a luta estivesse favorável para o companheiro, o Sábio estaria menos tenso. Afinal, o crocodilo era enorme e Alonso, com a perna fraturada, continuava a pressionar a fera faminta usando apenas uma espada sem fio e uma tocha. Na Terra, ele nunca tinha encontrado alguém assim, alguém capaz de manter a calma diante de uma situação tão perigosa.
No geral, as pessoas respondiam ao perigo com gritos e ações violentas. Havia também aqueles que simplesmente congelavam e sucumbiam; esse foi o destino do nosso estimado miserável. Em contrapartida, Alonso conseguiu manter o controle e demonstrar respeito por suas crenças, o que o tornava ainda mais incrível.
O crocodilo não conseguiu enfrentar o brilho da tocha refletida na lâmina da espada, então começou a recuar.
Conforme o recuo do adversário, Alonso persistiu na pressão, balançando a tocha e batendo a espada contra o chão, até que a fera bramiu de insatisfação e retornou ao pântano, desaparecendo nas sombrias águas.
O resultado não foi tão incrível como o início fez parecer. O crocodilo não tinha motivo para lutar; seu único desejo era uma refeição fácil, e Guilherme foi um atraente petisco ao permanecer parado na margem do pâtano.
Quando a luta terminou, todos os sentimentos foram impelidos para fora do corpo de Alonso e ele falou com orgulho:
— Traa, você perdeu, eu venci... hoje não há comida para você! — Então fez um sinal positivo para o Sábio.
No mesmo instante, Guilherme tentou levantar, mas escorregou no lodo, e voltou a cair sentado na lama.
Mancando, Alonso foi até ele e estendeu-lhe a mão.
— Venha, eu te ajudo. Está machucado? Viu o tamanhão daquela boca? Um porco inteiro desceria por goela a baixo de uma vez só. Você escapou tinindo, nessas matas precisa tomar cuidado. Até para beber água, porque pode morrer num estalo. Existem criaturas piores que lobos e crocodilos.
— Eu estou bem, não me machuquei. Você me salvou… — Guilherme pegou na mão do garoto e com impulso, conseguiu sair da lama, e então, de perto, pôde ter uma ideia melhor da seriedade do ferimento na coxa do Alonso. — Você precisa se preocupar com a sua perna. Como ela está?
— Isso aqui, traa, não é nada…
— Tá escorrendo sangue, foi profundo. É minha culpa, se não tivesse descon…
— Nada, nada, tô bem, só rasgou a minha calça. Vou fazer a testuda costurar como pagamento por ter salvado a pele dela. — Num momento, ele apoiou a perna ferida no chão e a cara de dor foi instantânea, mas a manteve firme. — Podemos continuar, os lobos não estão longe, posso sentir.
— Raios! — afirmou Guilherme. — Não se preocupe tanto com os outros. Você não entende que com a perna ferrada, se continuar, você pode morrer?
— Se não continuar, é ela que vai morrer. O que eu faço? Você é inteligente, então me diga, o que eu faço? Como vou encarar a dona Mia?
— Não sei!
— Então eu vou salvar minha irmã custe o que custar!
Guilherme se escondeu na toca do coelho porque estava confuso demais.
Huh?
Como esse cara pode ser tão diferente de mim.
Não ver que é inútil, aquela garota já está morta a muito tempo.
É verdade que salvar a garota vai pagar a dívida de gratidão, de certa forma, é a chave de sua liberdade…
Isso significa tanto assim para você?
Não, não é isso... é outra coisa.
O que há de errado com esse idiota?
— Sozinho vai ser complicado, mas a solidão não faz parte de mim, além disso, você tá aqui comigo, e juntos vamos conseguir. — Alonso falou da forma mais amigável possível.
Guilherme virou a cabeça, o suficiente para vê-lo com o canto do olho bom. De certa maneira, aquele garoto conseguiu criar entre os dois um forte laço de amizade, e isso era uma perigosa sensação que ele conhecia bem: os dois amigos contra os perigos de um mundo cruel.
Se sentiu péssimo ao lembrar que a pouco tempo imaginou horrores dele, por isso, naquele momento, não suportaria recuar.
— Eu não queria estar aqui, que isso fique claro. E não sou uma pessoa boa — disse o Sábio. — Não faço ideia do que os lobos possam estar tramando agora, mas pode apostar que é uma armadilha. É muita estupidez tentar um resgate nessas condições. Mas você salvou minha vida duas vezes. Eu vou pagar essa dívida, a minha dívida de gratidão. — Ele estendeu a mão. — Nem você, nem sua irmã, vocês não vão morrer; MINHA PALAVRA É MINHA HONRA!
— Não se preocupe com isso, eu cuido dos lobos. Eu quero que você proteja a testuda.
— Certo, eu vou fazer isso!
— Dívida de gratidão não se paga com prata, ela se paga com gratidão e confiança. — Alonso apertou a mão do Sábio e sorriu. — Eu encontrei um estranho rastro, o crocodilo atrapalhou antes de mostrar. Venha aqui, quero que veja isso.
O garoto do cabelo cor de fogo, com aparente dificuldade, caminhou para uma parte onde o matagal era denso e a vegetação estava toda revirada.
— Julgo que a convivência com o Alonso está lhe fazendo bem, Guilherme — comentou a pedra.
— Isso é besteira, não confunda as coisas! Aquele garoto é um idiota, ele vai acabar se matando. Eu só quero acabar com isso e dá o fora desse lugar sinistro. — Sua objeção foi clara. — Pedra… o que há de errado com ele?
— Você não entende, né? Todas aquelas histórias rasas não serviram para nada, não foi? Um rio não volta para a cachoeira passada. Esse garoto é do tipo de pessoa que não recua, que não desiste. Além do coração, ele tem alma de herói.
Droga, pedregulho, e eu, tenho alma de que?
A alma de um covarde?
Um miserável?
Coelho!
Merda, eu queria ser como ele.
Guilherme sentiu uma pontada de inveja e ignorou-a sacudindo os ombros, inconformado. Ele reconheceu o que estava nascendo em seu coração: a esperança, que, depois de tanta excitação, veio acompanhada do temor de que tudo não fosse apenas mais uma ilusão.
Esse sentimento era o pior de todos.
Ao chegar ao local indicado por Alonso, ele permaneceu distante e pensativo, mas a visão do cenário fez com que todas as suas aflições desaparecessem, concentrando-se apenas naquela sombria floresta.
Rajadas geladas de vento começaram a soprar com força. Um forte cheiro ferroso invadiu seu nariz, e de forma instantânea, lembrou do matadouro do açougueiro, e então apertou entres os dedos o bilhete daquele maltido que estava dentro das calças.
Puta merda!
O que aconteceu aqui?
Ao explorar o denso matagal, o ar frio, vindo da parte mais sombria daquela floresta, chicoteou-lhe com mais força o rosto. A cicatriz e a cavidade do olho esquerdo doeram; a sensação era como se fossem abrir outra vez.
A noite do solstício da lua azul se mostrava gélida demais para uma incursão noturna. A grande lua vermelha dava um tom de sangue para o horizonte ao leste. Em paralelo, na Terra, esse clima corresponderia ao início do inverno nas áreas localizadas além da linha do equador.
O Sábio caminhou em silêncio, acompanhado pelo murmúrio das copas que sacudiam no alto das árvores, acima dele, açoitados pelo vento gelado. O cheiro ferroso de sangue ficou mais forte.
Deu uma última olhada para a perna quebrada de Alonso, como se fosse um aviso de perigo, e avançou no caminho dentro do matagal, com a dolorosa sensação de culpa, já que o ferimento do companheiro foi por sua causa, por sua falta de coragem, por sua desconfiança… por seu egoísmo.
— Fique atento a cada passo a frente da cabeça — Alonso avisou, indicando rastro de sangue nas folhas.
Ele queria que os dois se mantivessem próximos, de modo que o ocorrido com o crocodilo não se repetisse.
A penumbra fustigava a dupla sem piedade, e o Alonso pensou que quanto mais eles adentravam no matagal, mais perto estaria de encontrar a Felipa.
A caminhada se tornou difícil, com os pés afundando no solo úmido e o constante vento gelado tirando-lhes a determinação, mas Alonso ignorava o desconforto e a dor para se manter firme, pensando na querida irmã que tinha sido tirada da sua família.
— Isso não está certo, não está mesmo — disse Guilherme assustado. — O que aconteceu aqui?
Alonso olhou ao redor e ouviu que o Sábio lhe falava alguma coisa, mas não conseguiu entender as palavras porque estava concentrado demais na situação. Ele apenas fez sinal para que o Sábio continuasse caminhando.
Guilherme obedeceu e percebeu que o companheiro estava muito aflito com alguma coisa, mas não conseguia decifrar todos aqueles sinais.
— Aqui é o cenário de uma feroz batalha — disse a pedra.
Droga!
O que vou fazer?
Essa missão de resgate foi uma furada desde o início, estava na cara.
É triste, mas a garota já deve estar morta a muito tempo.
Nessa altura, está sendo digerida, isso sim!
Como vou convencer esse cabeça de fósforo a desistir dessa loucura?
Ainda mais com o espetáculo que dei lá trás, falei que ele e a irmã não iam morrer.
Onde estava com a cabeça?
— Pedra — o Sábio Miserável sussurrou —, Felipa já está morta. Além de suicida, essa missão é uma grande burrada.
— Você não conhece os desígnios de VALHALLA. Não pode decretar a morte da pobre garota.
— Pro inferno VALHALLA, sabe que não dou a mínima para isso. Além disso, é só olhar esse lugar. Felipa está morta, é triste dizer isso, mas digo, ela está morta, mortinha da silva. Me dá uma ideia, droga. Como vou fazer o Alonso desistir dessa loucura e retornar comigo?
— Tudo bem. Você pode dizer que vai desistir e depois, PODE VOLTAR SOZINHO, já que a vergonha e desonra não lhe causam mal. Uma coisa é certa, aquele garoto só sai dessa floresta com a irmã, ou morto.
— Pera, vou ter que VOLTAR SOZINHO?
Guilherme estava a dois passos atrás de Alonso, então começou a olhar tudo à sua volta, imaginando olhos terríveis entre a vegetação, esperando por ele nas sombras. Ele sacudiu a tocha numa direção ao ouvir algo, só que não tinha nada lá.
— Irá VOLTAR SOZINHO! Sabe que não sou de muita ajuda numa batalha. Porém, pode inventar uma de suas desculpas. Tenho certeza que o coração gentil daquele garoto não vai guardar mágoas por ter sido abandonado pelo companheiro — continuou a pedra. — É só voltar pelo mesmo caminho e tomar cuidado para não encontrar outro crocodilo, claro, ainda há a possibilidade de encontrar alguma coisa muito pior, mas não será nada para o Sábio Miserável.
— Nada de desculpas! — O Sábio estremeceu — Nós não vamos voltar. Não vou abandonar um companheiro na necessidade.
— Muito bem! Você pode observar tudo que vai acontecer essa noite, e assim, aproveitar para despertar o gosto pela batalha.
Aprender a como ser um idiota, acho que não...
Se conseguir sair desse bosque medonha vivo e inteiro, já será o grande milagre da noite.
Droga, só me meto em furadas!
Nada mais havia a fazer além de continuar a missão. Guilherme caminhou, empurrado pelo medo, olhando para todos os lados, sem poder confiar na própria mente, tão assombrada que ela se encontrava perdida nas miragens da escuridão.
Então ele adentrou numa parte do matagal onde a trilha dos lobos terminava, e seu coração quase parou aterrorizado com a cena.
O que aconteceu aqui?
Isso é demais para mim…
Não posso, não posso.
Por que tenho que passar por isso?
...