Volume 1 – Arco 2
Capítulo 48.5: A Investigação do Aventureiro - parte 1
Nesta noite as sombras pareciam vivas, e para ajudar, tanto a lua vermelha, quanto a azul estavam encobertas por nuvens, tinha que estar tão escuro? Liel pensou, mas ele tinha uma ideia em sua mente para facilitar a investigação da vila Gurupi.
Olhou para Ramsdale que contornava pelo lado norte, e acenou para Clint que avançava por trás.
A vila Gurupi não era grande, por isso a ideia de dividir o grupo foi a certa. Na parte da manhã, enquanto os companheiros discutiam onde iriam se banhar, o líder fez um mapa mental que se provou efetivo como os mapas desenhados em pele de porco. Por tanto, apenas uma noite seria suficiente para tirar as conclusões necessárias para encerrar a missão, por mais que fosse uma derrota.
Liel avançou por uma rua secundária, passando a mão ao longo das paredes geladas das choupanas e tentando manter-se oculto. Correndo quando era hora de correr e parando abruptamente antes de cruzar com algum Peregrino Dourado numa ronda, esses malditos são piores que as corujas olhos-vermelhos, pensou, segurando a respiração, por que todo esse cuidado com uma mera vila de camponeses?
Ele se agachou atrás de uma pilha de feno e analisou o peregrino logo a sua frente, que olhava todos os cantos. Outro peregrino se aproximou e disse alguma coisa para o companheiro, isso distraiu-o, e depois de alguns segundos, ele seguiu numa outra direção, contendo as risadas.
Por Krig, espero que eles não estraguem tudo, ele refletiu, pensando nos dois companheiros e avistando que mais a frente tinha uma dúzia de homens, que os dois tapados vejam esse movimento, sejam cuidadosos, e não acordem os moradores pelo ruído dos pés pesados.
Liel esgueirou-se por trás de um galinheiro. Correu para frente e virou para a esquerda, indo para a parte oeste.
Ele ouviu vozes enquanto vistoriava uma carroça que continha uma grande quantidade de cordas e toras de madeira, então a escuridão começou a tremeluzir com o laranja da luz de uma tocha trazida por dois peregrinos.
Os dois sujeitos vistoriaram o interior da carroça enquanto o loiro se enfiou por baixo dela.
— Desta vez não serão necessárias — disse um deles.
— Não dá para saber, ainda mais com esse grupo de aventureiros na vila. — O outro completou, jogando uma lona sobre as cordas e toras. — Se bem que uma grande fogueira seria boa para espantar o frio do solstício da lua azul.
Esses malditos... pensou Liel, gostam tanto assim do fogo?
A dupla moveu a carroça para outro local, enquanto o loiro rolou para perto de caixas velhas e ficou oculto na sombra de uns barris de água. Seria tão fácil quebrar o pescoço de um e arrastar o outro para a escuridão, ele pensou, então fez uma careta de desaprovação, não posso me precipitar, senão o cabeça de couve inundaria meus ouvidos com sua ladainha.
Os peregrinos eram o foco da missão deles naquela noite. Foi para capturar um desses infelizes que o grupo Manoplas da Força estava perdendo a noite de descanso.
Liel contornou para o norte e outra movimentação suspeita chamou sua atenção, uma que desta vez não poderia ignorar.
Viu um grupo e os seus membros estavam vestidos com mantas negras, perfeitamente camuflados pela escuridão, mas não o suficiente para os olhos de um aventureiro que também é capaz de usar a noite para se esconder.
Sacou de sua espada e avançou encostando-se na parede de uma choupana. Ele podia parar e escutar, para ter a melhor noção do que iria enfrentar, mas não dava tempo, pois todas as figuras misteriosas adentravam num casebre, restando apenas uma do lado de fora que ficou de prontidão como uma coruja, vigiando toda movimentação.
Ao notar que não havia peregrinos por perto, avançou por trás, e apesar que aquilo não fosse parte da missão, decidiu atacar, porque tinha a certeza que estranhos vagando pela noite quase sempre são boas fontes de respostas.
Com destreza, Liel chutou na altura do joelho e acertou a nuca com a ponta do punho da espada, e a figura misteriosa caiu desacordado no chão antes que sua mente pudesse entender o que havia lhe golpeado.
Depois que tirou a manta escura do sujeito, viu que se tratava de um homem comum, é a porra de um camponês dessa vila, passou a mãe pelo rosto ao perceber que as coisas haviam se complicado, será que aquele velho tinha tanta coragem assim? perguntou-se.
Ele arrastou o camponês para trás do casebre, e depois se escondeu do outro lado, atrás de uma choupana, de forma que ficasse de frente para a saída do lugar, e então pôs-se a esperar empunhado a espada.
◈◈◈◈◈◈
As Figura Suspeitas na Noite
Depois de um tempo, uma das figuras saiu do casebre. Faltava pouco mais de uma hora para o amanhecer, mas seria o suficiente para o misterioso grupo terminar o trabalho.
Podia ver-se o crepúsculo matinal tingir o horizonte norte de laranja, porém, não se avistava qualquer Peregrino Dourado patrulhando as ruas, e isso era um ponto positivo.
Nessa hora da madrugada, caía sobre ele uma garoa fina, e ele sentia um frio capaz de fazer a pele doer. A manta negra não era suficiente para aquecê-lo. No entanto, seu corpo tremeu de verdade, não pelo frio, mas sim pelo pavor de não encontrar o companheiro que deveria estar de vigia.
Assustado, ele escondeu melhor o corpo dentro da manta e fez sinal para uma outra figura que esperava na porta, fazendo assim que todo o grupo saísse carregando um enorme volume oculto por uma capa preta. O volume era tão pesado que precisava de dez braços para transportá-la, e ainda com dificuldades.
— Onde está o Jean, ele não tinha que estar aqui? — perguntou um dos transportadores. — Isso ficou perigoso, nesse caso, não seria melhor a gente retornar para dentro?
A figura na liderança suspirou forte, tanto que os outros puderam ouvir. Ele olhou em volta avançando com cuidado, esse seu único movimento disse às outras figuras tudo o que precisavam saber, então todas continuaram a segui-lo.
Porém, ao avançar dois passos adiante, deparou-se com o líder do grupo de aventureiros, que empunhava a espada. Nesse instante, sua caminhada cessou, e um arrepio percorreu todo o seu corpo por baixo da escura manta.
Ele lançou um olhar à esquerda, nutrindo uma esperança desesperada de encontrar alguma rota alternativa. Contudo, sua visão encontrou o arqueiro, bloqueando essa via, e percebeu o aventureiro cabeludo flanqueando-o por trás. Diante desse cerco completo, não lhe restou alternativa senão sussurrar humildes preces à sua divindade.
◈◈◈◈◈◈
Liel analisou a situação com cuidado, no entanto, não demonstrou agressividade.
— Mantenham a paz nos corações — disse ele, com calma. — Não pretendo fazer mal para vocês.
Ele abaixou a espada e caminhou entre as figuras, que permaneceram paradas, como se estivessem petrificadas pelo medo.
Ao ouvir as palavras do líder, Clint se aproximou de Ramsdale, e percebendo que o companheiro mantinha o arco armado, pronto para qualquer eventualidade, também se armou com sua maça lisa.
A figura principal até tentou impedir que o loiro avançasse agarrando-o pelo ombro, mas o aventureiro o deteve parando sua mão e afirmado:
— Não quero fazer mal, já disse! Você tem culhão, velhote, tenho que admitir.
Depois, continuou avançando até o grande volume protegido pelas figuras, e quando puxou a capa preta, revelou-se uma estátua do deus Krig, feita de bom mármore e cuidada com todo o zelo do respeito e da admiração.
Ele se virou para a figura principal, levantou a mão esquerda e encostou o dedo polegar no centro da palma, então disse:
— Me chamo Liel, sou um aventureiro de classe D e sou devoto do deus Krig, o senhor das guerras. — As suas palavras causaram agitação em todas as figuras, como se ele tivesse atirado uma pedra pesada dentro de um lago de água estagnada.
Enquanto as figuras entreolhavam-se, Clint fez uma pergunta para Ramsdale:
— Aquele sinal é o mesmo que ele fez para aquela família nômade na estrada. O que isso significa?
— É o sinal da fé dos homens para os deuses. Foi criado pela Ordem Sacra, uma forma de contornar a brutalidade do Círculo Dourado. — Ramsdale soltou a mão que pressionava a corda do arco. — No fim, serve apenas para provar que dividimos a mesma fé. — Ele guardou a flecha na aljava.
— Funciona como o código da Guilda dos Heróis, que se alguém proferir em mentira terá uma morte horrível? — Clint deixou a pesada maça lisa cair no solo, deu uma olhada para as figuras e se surpreendeu quando todas revelaram os rostos.
— Não, a fé não funciona dessa forma. A fé não pode ser imposta.
— Ora, com força, tudo pode ser controlado. Tá vendo, isso é muito arriscado. — O descabelado entendia que para derrotar um inimigo podia-se fazer jus de qualquer arma, e a mentira era a mais simples de todas. — Se o líder fosse um dos peregrinos, teria todos eles nas suas mãos.
O astuto arqueiro olhou-o com um brilho divertido nos olhos e disse sorrindo: — Ah, meu amigo, isso é a fé!
A figura principal também tirou a manta, revelando o rosto cansado do chefe ancião da vila.
— Aquele é o velhote de mais cedo — explanou Clint, surpreso.
— E quem pensou que seria, hein, o Regente?
Clint ficou calado e revirou os olhos.
— Você é uma piada, cabeludo de merda. — Ramsdale começou a rir. — Vamos chegar perto, quero ouvir os detalhes da conversa.
Os dois companheiros se aproximaram do líder do grupo.
— Haverá marcha dos nobres cavalos de guerra no campo de batalha. — O chefe cumprimentou o líder do grupo Manoplas da Força. — Meu coração se alegra ao ver jovens aventureiros clementes ao deus da guerra.
Liel olhou toda aquela encenação e disse:
— Corta essa, velho. É dessa forma que demonstra seu respeito, transportando a estátua de um deus na calada da noite como se fosse um ladrão?
— Também, e aquela estátua destruída na entrada da vila, não vamos esquecer dela. — Ramsdale completou. — O que significa aquilo?
— Aquela era uma estátua feita de barro queimado, era o molde e aparência de um camponês, não tinha importância — respondeu o chefe, entristecendo de forma que o rosto enrugado pareceu ainda mais corroído pelo tempo. — O Círculo Dourado precisava quebrar a imagem de um deus, só lhe demos uma para que se sentissem satisfeitos.
O ancião tentou encarar Liel, mas vacilou, e a sua visão veio a procurar os companheiros. Ninguém se moveu, ou esboçou qualquer reação, até um rapaz que estava perto dele dizer:
— Vocês não podem nos julgar. A Guilda dos Heróis permitiu esse sofrimento. O que vocês fizeram com o nosso amigo que ficou de vigia?
Liel percebeu então que havia cometido um erro, ao olhar para o rapaz preocupado com o amigo. Só faltava a pessoa querer reagir, querendo vingança para o homem atacado. Não tinha vontade de falar. Estava tão amargurado que nem conseguia se mostrar arrependido, portanto era melhor que o deixassem em paz. Tentou puxar a espada, querendo mostrar quem estava no controle, mas o rapaz reagiu, olhando-o com mais fervor.
Decidiu deixar a espada de lado, para poder contornar a situação da melhor forma possível, essa gente não entende o perigo que estão enfrentando, ele pensou.