Last Downfall Brasileira

Autor(a): VALHALLA


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 47: O Sábio Miserável e o Ataque da Matilha de Lobos Cinzentos - parte 1

Deitado na cama de palha, Guilherme aguardava. Era um lugar para repousar suas aflições, o refúgio perfeito para um Sábio Miserável como ele. Pensou em tirar um cochilo, só que a mera ideia de encontrar Skog nos sonhos o mantinha desperto. 

Porém, ele não conseguia ficar parado na cama, rolando de um lado para o outro, com os pensamentos em ebulição. O tempo para sair do chiqueiro havia se esgotado.

Eu não posso dormir de qualquer maneira.

Chegou a hora de ir.

Ninguém fez nada para que eu pudesse ficar mais.

Talvez se eles tivessem pedido com jeitinho eu até poderia considerar ficar aqui.

Ah…

Para onde eu vou…

É noite…

Poderia fingir algum mal súbito, pelo menos ganhar tempo para o dia amanhecer.

Não vai dar.

Eles querem se livrar de mim.

Droga!

 Além disso, os porcos estavam inquietos, agitados e emitindo sons estranhos, como se estivessem apavorados.

Guilherme aproveitou para enrolar com panos limpos a parte destruída do rosto. Os ferimentos já estavam quase curados, mesmo assim, achou melhor esconder para não assustar as pessoas pelo caminho com sua aparência grotesca.

Notou que o leitão tremia todo o corpo.

— O que foi Wiubor? Por que está tão triste? Ah, é muito triste mesmo, não te culpo por estar assim, droga. Eu vou embora, mas não é para tanto, né? Não sabia que você gostava tanto de mim. Você poderia falar com aquele manco de uma figa para me deixar ficar, hein?

Nossa…

O que tô falando, pedindo para um leitão me salvar, é isso?

Ele é só um porco idiota…

Um idiota que vou sentir falta.

Pelo menos esse bicho vai sentir falta de mim.

Ehh!

Guilherme deu de ombros e entrou dentro da toca do coelho. O seu tempo estava acabando e precisava encontrar uma solução para o dilema de Alonso.

Ele percebeu que aquele garoto seria uma ferramenta capaz de ajudá-lo a encontrar o lago sem fundo; essa seria a forma que ele poderia voltar para sua casa, na Terra, sem ter que enfrentar a terrível busca por Last Downfall.

O que eu vou fazer se o cabeça de fósforo não largar tudo para vim comigo?

A pedra não vai gostar se eu usar persuasões um pouco mais drásticas.

Talvez um pouquinho?

Uma mentirinha ali, algo inventado lá.

Aquele tapado se surpreende com qualquer coisa.

Seria fácil influenciá-lo.

Não… o pedregulho não gosta de nada desonesto.

Ele iria azucrinar meus ouvidos até eu pedir arrego.

Certo, o que vou fazer então?

Quer saber, tô nem aí, se não quiser vim, o problema é dele.

E de cabeça dura, já me basta a pedra.

Aquele Crista de Galo nem veio se despedir de mim.

Maldito!

Queria ignorar os sentimentos, mas seu coração batia acelerado, a cicatriz no rosto coçava, e então percebeu que seus desejos não faziam sentido mais uma vez.

Será que vou sentir tanta falta dele assim?

Seu plano era conversar com ele antes de ir, e quem sabe assim, os dois pudessem chegar  num acordo. Só que já havia escurecido e Alonso não veio falar com ele. O tempo limite para ficar no chiqueiro acabou.

Tinha um gosto amargo, mas isso significava, afinal, que o Crista de Galo nunca foi um amigo de verdade daquele miserável.

De repente um som horrível invadiu seus ouvidos.

— Uuhhhhh!

Todo o corpo de Guilherme estremeceu.

O que foi isso?

Um uivo?

Gritos e sons de destruição arrancaram-no da toca do coelho.

Ele espiou através de uma fenda nas tábuas do chiqueiro. Seu corpo começou a tremer de maneira descontrolada, pois o medo, de forma inconsciente, invadiu seu coração, assim como os traumas afetam a mente dos covardes.

A vista do olho bom não se adaptou de imediato, e no primeiro instante não viu nada além da penumbra da noite.

De repente, na escuridão, um lobo cinzento passou correndo pelo campo de visão, deixando-o apavorado. Quando conseguiu recuperar-se o bastante para analisar a situação, uma sequência de pancadas começou a forçar a porta do chiqueiro.

Droga, droga, droga.

Eles vieram atrás de mim.

Eles nunca vão me deixar em paz?

São os malditos cachorros mutantes.

Maldição!

Ele empurrou o velho baú para guarnecer a porta e ganhar tempo para pensar num plano de fuga.

— Guilherme — chamou a pedra. —, o que está acontecendo?

— Os malditos lobos cinzentos... é isso que está acontecendo.

— Vai lutar?

— Nem a pau, José! Vou dar no pé. Chega de chiqueiro para mim.

— Até quando vai fugir? Ainda suporta essa vergonha? Eles vão te perseguir para sempre. Saia e mate todos eles!

— Vergonha não é nada, enquanto eu estiver inteiro. Não quero lutar, muito menos matar, só quero dar o fora dessa ratoeira. 

Arrastou a cama e a colocou sobre o baú, dessa forma, usou tudo que tinha para bloquear a porta. Aquilo não iria aguentar, mas ele conseguiu um pouco de tempo para pensar.

Naquele casebre não tinha outra porta e nem janelas, apenas havia pequenos buracos no chão para escoar as fezes dos porcos, e só poderia escapar por eles se fosse do tamanho de uma barata, dessa forma, se viu encurralado.

Sem poder arranjar uma saída, arregalou o olho bom, tentando pensar numa solução, preso num terror lancinante.

O que vou fazer?

Droga, droga, droga.

Tenho que arranjar uma forma de sair desse chiqueiro.

— Pedra, tem alguma ideia para tirar a gente daqui?

— Se eu disser, promete ficar e repensar sua atitude?

— Aff, desembucha de uma vez, maldita. 

— Certo! Só há uma forma para se livrar: terá que lutar.

— Lutar, lutar, lutar... vira o disco meu chapa, você tem tesão nisso. Já o meu tesão é escapar e ficar seguro. De forma alguma tenho prazer em sentir dor. Desista, não vou enfrentar nada, e ainda, é certo que aquele cachorrão mutante tá lá fora também.

— Você não pode abandonar as pessoas que te ajudaram. A desonra será grande.

— Não se preocupe com isso, eu aguento a desonra. De toda forma, eles darão um jeito. Aquele velho otário foi um soldado, e Felipa falou que Alonso é forte, então vão se virar muito bem. Somos nós que estamos ferrados. Será que não entende isso?

Desesperado, Guilherme começou a chutar as ripas da base do chiqueiro atrás de alguma solta.

A sua falta de habilidade era vergonhosa e causava-lhe muitas dificuldades. Desesperado, o miserável parecia ver milhões de ripas fedidas na sua frente. Com um chute mais desmedido, o seu pé varou uma madeira podre e soube que ali poderia criar um caminho para a fuga.

Pegou o banquinho que Alonso usava para dormir e começou a bater contra o buraco que fez com o pé. O banquinho estraçalhou todo.

Desculpa Crista de Galo…

Pelo menos vai poder voltar a usar sua cama.

É… eu acho.

No entanto, o buraco foi alargado o suficiente para o Sábio passar. Ele estava prestes a escapar, quando viu os olhos apavorados do leitão.

Droga, Wiubor, não me olhe assim.

Não é minha culpa.

É sim!

Esses porcos são tudo que essa gente tem para sobreviver ao inverno.

Sem eles, vão morrer de fome.

Por que ainda tô parado?

A porta continuava a ser forçada com violência, dessa forma iria arrebentar a qualquer momento.

Guilherme se moveu, mas não para fugir. Ele foi até os porcos e tentou fazer que passassem pelo buraco, só que os animais estavam apavorados demais para fazer qualquer coisa.

hhe… hhe… iidiota, ddeixa oos ssacos dde ccarne ppara ttrás, vvão eencher aa bbarriga ddos llobos.

NÃO!

Guilherme olhou para Wiubor e teve uma ideia.

Você sabe dançar, não é mesmo?

Como era que o Crista de Galo fazia para esse leitão mexer as pernas?

Ele lembrou dos gestos e correu para o buraco, repetindo-os na direção da saída. Seus dedos batiam na madeira e criavam um som ritmado. 

— Wiubor, Wiubor… vamos leitão idiota. Não é tão difícil assim.

O leitão reconheceu e respondeu se aproximando, e quando viu a abertura, escapuliu por ela tão ligeiro que Guilherme mal conseguiu distinguir a sombra do bicho desaparecendo.

O porco que estava mais próximo viu e seguiu o leitão, e foi seguido por outro, numa reação em cadeia. Só que os bichos eram lentos e só podia passar um de cada vez.

A cama que estava sobre o baú caiu no chão. Um pedaço da porta foi arrancado, mostrando que ela não aguentava mais e seria feita em pedaços.

— Vamos, porcos idiotas, vamos, vamos… eu não vou morrer aqui.

Guilherme lembrou-se do pergaminho e do lápis que Felipa ainda não lhe tinha devolvido. Esses itens eram essenciais para dar continuidade à jornada, pois continham anotações de todas as descobertas que havia feito neste mundo. A informação mais crucial, no entanto, era o desenho do brasão de armas do nobre que havia feito com que o antigo possuidor deste corpo fosse um escravo.

Depois de tudo que passou, não poderia cair nas mãos de um senhor de escravos cruel. O trauma do olho arrancado já era suficiente, e tinha certeza disso, já que apenas o maldito bilhete do açougueiro estava com ele, enfiado no fundo das calças.

Droga!

A situação não permitia o luxo de recuperar todos os itens e ele sabia disso. A porta estava prestes a cair, e mesmo receoso, após o último porco passar, se jogou no buraco e também escapou.

No lado de fora, alguns porcos foram atacados, porém, a maioria deles conseguiu escapar correndo para lados diferentes. O foco dos lobos era a destruição. Wiubor se enfiou por baixo de uma pilha de madeira e desapareceu.

Ótimo, tô sozinho.

É assim que você me agradece, leitão maldito.

O Sábio correu contornando o casebre e procurou uma forma de escapar, mas não sabia para onde ir, pois estava muito escuro e tumultuado para encontrar um caminho.

Os lobos atacaram frenéticos, destruindo a propriedade e matando os animais que conseguiam pegar.

Testemunhando toda a agressividade da matilha, Guilherme trouxe os piores pensamentos à mente, junto com possibilidades insanas. Vendo como os lobos estavam atacando de forma aleatória, ele pensou que poderia aproveitar o tumulto e escalar até o topo do telhado da casa principal. Escondido lá, esperaria até que tudo se acalmasse.

Sim, é isso que vou fazer.

Não vou morrer hoje!

Encolhido atrás do chiqueiro, ele procurou o melhor caminho para alcançar a casa principal. Seu olho bom não demorou para vislumbrar toda a situação, e quando avistou o Aliam lutando com todas as forças, seu coração disparou.

O homem tinha uma espada na mão e enfrentava três lobos enormes. Ele não conseguia se mover por causa da perna ferrada, mas suas técnicas de esgrima eram suficientes para manter as feras longe.

Felipa e a mãe estavam atrás de Aliam, ambas seguravam tochas que também ajudavam a afugentar os lobos. 

Alonso encontrava-se um pouco mais distante, cercado por um grupo maior de lobos. Sem nenhuma arma em mãos, ele enfrentava os inimigos apenas com empurrões e murros. Ao presenciar essa cena, Guilherme ficou perplexo e quase teve um piripaque quando viu um lobo saltar para abocanhar o Crista de Galo pelas costas. No entanto, o animal recebeu um soco tão poderoso na fuça que deu para ouvir o som do osso da mandíbula se partindo.

— BICHOS MALDITOS! — Alonso gritou. — Podem morder minhas costas, é a minha parte mais dura, traa! Eu vou quebrar cada osso do corpo peludo de vocês.

Esse idiota metido.

Por que você não pegou uma espada?

Sei lá, pega um pedaço de lenha!

Porcaria.

Isso não pode continuar assim…

Pelo menos parece que ninguém vai morrer.

Não preciso me preocupar.

Vou dar o fora.

O Sábio Miserável já havia aceitado a situação e estava pronto para fugir na direção da casa principal, quando a pedra falou:

— Guilherme, a Felipa e o Alonso estão com dificuldades, são muitos lobos.

— Ah não, para mim eles parecem bem entrosados, tão se virando bem. O manco vai proteger eles. Eu vou subir no telhado da casa principal, lá vamos ficar seguros. É a melhor coisa a fazer.

— A melhor coisa só para você, não é?. Lembra da criança Luci, você a protegeu, não foi? O que você sentiu? Abandonar na dificuldade quem lhe estendeu a mão é uma vergonha grande demais. Não carregue mais esse peso.

— Quando ajudei aquela remelenta eu quase morri. Naquela vez eu estava muito ferrado, doente, só podia tá delirando para fazer o que fiz. Agora que estou melhor não vou me arriscar. Aqueles bichos são terríveis. Além do mais, Alonso e Aliam tão dando conta, e se continuar assim, vai tudo acabar bem.

— Esqueceu das técnicas de caça que usou contra eles? Não vê que estão tramando alguma coisa? A intenção deles não é matar. 

O que?

Ele tá falando na vez que derrotei o líder deles.

É verdade que disse que entendia de caça.

Mas foi outra mentira, tudo que sabia era do jogo Hunting Clash.

Naquele dia só venci graças à gosma ácida e muita sorte.

Mesmo assim, o que essa pedra tá me avisando?

Vai acontecer alguma coisa?

— Pedra, não adianta, já falei que inventei todas aquelas histórias. A única coisa que sei é que se a gente chegar no telhado, vamos ficar bem.

Guilherme deu um suspiro de alívio e se preparou para correr, fingindo que nada daquilo tinha a ver com ele. 

Uma dupla de lobos foi para o canteiro das ervas e da plantação de abóboras. Eles começaram a morder, cavar e destruir tudo.

Felipa ficou revoltada com a ação dos lobos, demonstrando isso com choro e gritos altos. Ela amava aquelas plantas mais do que qualquer outra coisa, e ver suas preciosas flores sendo destruídas era uma dor insuportável. Sem pensar, a garota começou a se debater, tentando se soltar do abraço desesperado de sua mãe.

Não seja idiota, menina.

São só plantas, não vale a pena.

Você não vai fazer isso, não é?

Elas são seu tesouro…

Guilherme agiu como um miserável e nem mesmo as suas grosserias foram capazes de criar um estado de furor parecido com aquele que dominou a garota. Ela expôs toda a sua fúria. Ao pensar o quanto ela se importava com aquelas plantas, essa reação não era de se admirar. 

Felipa se livrou da mãe, se esquivou do pai e correu para o seu amado canteiro. Usou a tocha para afugentar os dois lobos. Os bichos se afastaram, só que não foi por muito tempo, e logo ela se viu cercada por uma dúzia de feras ferozes.

Mia caiu de joelhos chorando.

Aliam não podia se afastar da esposa, ainda mais nesse estado, ela seria uma presa fácil, e também com sua perna ruim, não poderia chegar a tempo para evitar a tragédia.

— Alonso! — Ele gritou. — Felipa está cercada!

O Crista de Galo correu chutando e socando tudo que via na sua frente, mas não era suficiente, havia muitos inimigos bloqueando o caminho: — Saiam da minha frente, malditos! 

E Guilherme, ah, esse não fez nada.

Felipa lutou com coragem, brandindo a tocha. Contudo, os lobos não demonstravam medo e rapidamente desarmaram a garota, deixando claro que os malditos animais estavam sempre no controle da situação. Uma das criaturas abocanhou sua perna esquerda, fazendo-a cair no chão e gritar de dor. A matilha de lobos se fechou ao redor dela, dando a sensação de que a garota seria despedaçada.

Guilherme, trêmulo e assustado, não suportou observar a cena e desviou o olhar. Nesse momento, viu à sua frente, a menos de um metro de distância, tão próximo que podia sentir o hálito quente e fétido: o maquiavélico líder da matilha.

A fera fitava o Sábio Miserável e parecia satisfeita com o que estava vendo.

Guilherme enxugou o olho bom e a face com a camisa, endireitando o corpo, procurando entender aquela bizarrice. Ele compreendeu que se aquele monstro o atacasse, antes mesmo de sentir qualquer dor, seria desmembrado. Então engoliu a saliva e abaixou a cabeça num sinal de submissão.

O líder não atacou. Em vez disso, aproximou o ferrão de sua cauda perto do rosto do Sábio. A fera uivou tão alto que os ouvidos de Guilherme doeram.

Um dos lobos abocanhou o cabelo da Felipa e a arrastou para dentro do bosque. Todos os lobos também correram seguindo-o, eles desapareceram na escuridão.

O líder encarou Guilherme. Da ferida do olho direito escorria pus, e parecia que ainda tinha resquícios da gosma ácida que continuava a corroer a carne, criando uma dor interminável. No outro olho, de cor vermelha, tinha um brilho estranho e único. 

Se o olhar daquela criatura raivosa pudesse falar, teria dito: — Covarde… você arrancou minha honra, então vou arrancar algo de você, e vou continuar destruindo tudo pelo o que se aproximar até o seu fim. O que vai fazer, covarde?

Diante daquela coisa e sem nenhuma forma de reação, Guilherme caiu de joelhos e começou a chorar, torcendo que tudo aquilo acabasse de uma vez.

Por favor, não me machuque…



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