Last Downfall Brasileira

Autor(a): VALHALLA


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 46: O Sábio Miserável e o Senhor dos Porcos

Por falta de uma visão melhor do interior do bosque, Guilherme observava a movimentação dos animais entre as grandes árvores. A maioria das criaturas eram pequenas e inofensivas. Ele achou que viu algo parecido com uma capivara, só que não tinha certeza e também não se preocupou porque não representavam perigo.

Só que mesmo assim não conseguiu ignorar a agonia que embrulhou a sua mente. Por causa do instinto, o Sábio  imaginava se poderia haver algo perigoso escondido nas sombras.

Tem alguma coisa lá?

Droga, um olho só não ajuda em nada.

É melhor eu voltar para o chiqueiro e escorar a porta, só por garantia.

Logo vou dar o fora desse império de monstros.

Mas e a Felipa.

Aff…

Ela se vira!

Para onde vai?

Droga!

Penso nisso depois.

Enfiado na toca do coelho, Guilherme não percebeu que já tinha uma fera próximo dele.

Arrastando a perna direita, Aliam caminhou bufando de raiva e, aproveitando que o miserável estava distraído olhando para  as sombras da floresta, se aproximou como uma ardilosa cobra.

Na cabeça daquele homem rude, a visão da sua filha junto daquele sujeito, tão próximos, abaixados e cuidando do canteiro encheu seus pensamentos de ideias descabidas.

Todos os traços do seu rosto, os cansados olhos inclusive, demonstravam grande dificuldade em aceitar uma relação amistosa do Sábio com a garota, por isso manteve a sua expressão furiosa.

Guilherme e Felipa não esperavam o bote sobrecarregado de raiva daquele homem manco.

Aliam empurrou Guilherme, que veio cair de bunda no chão como uma berinjela madura.

— O que você está fazendo com minha filha?

— Papai, não é nada, só estou mostrando para ele os usos da erva-da-mãe-moren.

— Eu não fui claro? Será que por causa dessa perna manca minha palavra perdeu autoridade nessa casa. Eu não quero esse miserável vagando por minhas terras! — Sua voz vibrava, fazendo com que eles se sentissem como uma dupla de crianças assustadas. — Felipa, eu não quero você perto dele, por isso proibi você de entrar no chiqueiro. Você não entendeu? Ele é perigoso.

Guilherme olhava com crescente desprezo para o homem. Não havia dúvida de que estava diante de outra criatura cruel desse mundo.

Frustrada, Felipa se levantou e ficou parada por um momento à frente do pai. Sentia-se cansada e irritada. Ela virou a cabeça, mas sem dar um passo, a garota parecia disposta a permanecer ali até que o odioso sujeito fosse embora.

— É lindo, eu fico até comovido, verdade. — Guilherme se levantou e sacudiu a terra das roupas. — É admirável como um pai dedicado só aparece nos momentos em que a filha não precisa de ajuda. 

Comparado aos monstros que Guilherme enfrentou, aquele homem parecia-lhe brincadeira. Lembrou das palavras dele na discussão com Alonso.

Teve um forte impulso de socá-lo, mas apenas observou o semblante cruel e os olhos profundos do homem sobre si, que o impediram de fazer qualquer coisa.

Não queria começar uma briga, ainda mais uma que não tinha certeza se seria lucrativa.

Nesse instante, Aliam sorriu e disse de forma provocante:

— O que você falou? O que você entende de família, ingrato miserável? Quer desrespeitar o benfeitor em sua própria casa, tomar liberdades com sua filha. Não tem honra?  Eu já fui um soldado dos pontas brancas, minha glória era conhecida; Aliam, casca do sobreiro. Eu não vou tolerar isso! Mesmo com essa perna manca ainda posso dar uma surra num fedelho qualquer.

Pera, sobreiro?

Essa é uma árvore da Terra.

Ah, deve ser uma coincidência, deve ser uma árvore da casca espessa e rugosa, esse nome seria uma escolha comum.

Mas pensando bem, eu ouvi muitos nomes familiares nesse mundo.

 Não levei muito a sério porque tava embasbacado demais.

Mas não posso cometer mais erros e os detalhes são importantes.

O que esses pontos significam?

Preocupada demais para falar, Felipa apenas afastou o Sábio com um movimento dos braços.

— Você entendeu, fedelho ingrato? Eu não quero você na minha casa!

O empurrão da garota e a voz do homem tirou Guilherme da toca do coelho, e ele, de forma instintiva, reagiu. 

— Sou um ingrato? — Lembrou do sacrifício de Alonso, e forçou o corpo contra as mãos da Felipa para ficar onde estava.  — Eu devo muito, mas não é para você!

Aliam balançou negativamente a cabeça, enquanto a filha tentava evitar um conflito desnecessário.

— Papai, ele só queria saber das ervas de cura. — Ela disse. — Não é nada demais.

Aliam olhou e sentiu-se ainda mais enraivecido porque a filha estava protegendo o miserável.

— Felipa, eu não quero você perto dele. Nessa casa, minha palavra é absoluta! — Ele encarou o Sábio. — Miserável, essas terras são minhas, só está aqui porque eu permitir, você me deve a vida, abaixe a cabeça e agradeça.

— Guilherme, o senhor da casa está com a razão — disse a pedra. — Um conflito equivocado não irá trazer benefícios. Dragão dado não se olha nos dentes.

Não!

Estar com a razão não é estar certo.

Tem diferenças, pedra.

— Por todas as mãos estendidas para mim, pelas noites frias, pelo sabor armado da minha ignorância, a gratidão entrelaçou na memória da minha vida. E você, é grato, senhor dos porcos?

— Ãh? — Aliam se perdeu nas palavras do Sábio.

Felipa riu de forma discreta.

— Eu não lhe devo nada. — Guilherme respondeu num tom calmo e encarou o homem. — Foi você que me tirou do rio? O unguento que curou minhas feridas foi você quem fez? A cama que dormi foi a sua? A comida que me alimentou, foi a da sua parte? 

“Como vê, não lhe devo nada!

“Ingratidão é deixar sem comida uma pessoa que jurou proteger só porque ela resolveu ajudar um estranho necessitado, isso é  pior que tratar um filho como um escravo.

“Você consegue entender isso, ex-soldado?

“Consegue, Casca do Sobreiro?”

Aliam não conseguiu entender como essas palavras saíram da boca desse miserável, mas elas sacudiram sua mente com a força de um golpe violento. Ele fez uma longa pausa, enquanto revia as lembranças da sua antiga promessa e as comparava com as ações feitas durante os últimos dias.

Foi impossível não pensar naquela mulher, com o filho nos braços, encharcando-o com o próprio sangue. Como seus olhos estavam cheios de esperança. O homem bambeou e deu um passo para trás.

Felipa achou que o pai estava demorando só para deixá-la nervosa.

Sem ter o que dizer, e cheio de vergonha, o homem apenas concordou com um movimento de cabeça.

A garota entendeu o que estava acontecendo.

— Pai… — Ela perguntou preocupada: — O senhor está bem?

Parecia que, para Aliam, pronunciar qualquer palavra de repúdio era um grande sacrifício.

Percebendo isso, Felipa sofreu com ele, já que ela conhecia aqueles sinais. Sem dúvida, ele estava lembrando o dia que machucou a perna, abandonou a vida de soldado e voltou para casa com Alonso nos braços. 

— Eu quero você fora das minhas terras antes do anoitecer. — Aliam disse então, encarando o Sábio Miserável.

— Eu não vou ficar um dia a mais, pode ter certeza!

— Guilherme, sua lógica não faz sentido — preveniu a pedra.

Certo de que ele não recuaria, Aliam respirou fundo e avisou:

— Eu lutei contra invasores e protegi meu país. Avancei além das fronteiras das nações inimigas e fiz muita coisa horrível. Cruzei as espadas contra a própria Rainha Vermelha, e dela, arranquei um sorriso. Vi horrores, por isso posso afirmar: da forma que machucaram você, não é algo que aconteça por acaso! Não quero o mal que segue seu rastro perto da minha família!

Rancor e agonia emergiram do interior de Guilherme. Foi a primeira vez, desde que começou a conversa, que sorriu franco e aberto.

— Mal? Horrores? — Ele fez uma pequena pausa, como se estivesse reunindo tudo que há de ruim nele na boca, e então cuspiu de uma vez só: — Eu sou o Sábio Miserável!

Todos os sentimentos negativos no seu peito desapareceram, substituídos pela escuridão que usou para esconder as fraquezas, enquanto via o ex-soldado emudecer na sua frente.

Os primeiros filamentos de trevas invadiram o seu coração quando estava entregue ao desespero, preenchendo a cavidade oca do olho esquerdo, e uma aura perversa o envolveu, libertando-o de toda a dor e cansaço dos dias de sofrimento.

— Hhe… Hhe… 

Não haverá um mal maior que eu nesse mundo!

Por um instante, Aliam reviveu todas as barbaridades que cometeu durante os serviços na tropa dos ponta branca, realizando as vontades brutais do Czar louco.

Tomado de uma súbita sensação de perigo, ele se perguntou como um garoto tão fraco conseguia emitir uma aura tão perversa, e isso suprimiu seu ânimo. Tentou imaginar o que o Miserável teria enfrentado na vida, do que seria capaz de fazer para sobreviver, e se sentiu frustrado por não ter ideia nenhuma, mesmo sendo um experiente soldado.

Esse garoto não era normal.

Pensando nisso, lembrou-se de que ainda tinha que debulhar grãos para alimentar as suas criações. Então se aproveitou disso para encerrar a conversa.

— Diferente de você, preciso cuidar da minha casa. Felipa, venha me ajudar! — Ele olhou de relance e se virou, mas antes inteirou: — Quero você fora antes do anoitecer!

Aliam foi embora arrastando a perna direita: — Vamos, Felipa, não ouviu te chamar?

— Já vou meu pai. — A garota examinou Guilherme, não viu nada além de um garoto muito ferrado. — Você é diferente.

— Eu sei, você já disse: sou esquisito.

Guilherme não parecia impressionado e nem interessado em ouvir mais nada a seu respeito.

Desligou a tensão que usou para encarar Aliam, deixou os ombros caírem e bufou aliviado. Ele lembrava aqueles sedentários que pareciam que iriam ter um troço no término de uma corrida.

Felipa recusou ter qualquer carinho pelo Sábio e, após dias cuidando dele, ainda sentia o mesmo, mas não podia negar que ele tinha algo diferente, e isso poderia resolver a maior aflição que tinha na vida, ainda que estivesse com ódio da forma que o pai ficou abalado por causa desse garoto.

— Não leve isso para o lado errado, ser esquisito pode ser uma boa coisa. — Ela disse.

— Você acha mesmo?

— Sim — respondeu ela, lembrando-se de que quando o viu dentro do rio não havia dado a menor importância. — Alonso e eu não temos o mesmo sangue, mas o amo como um irmão, carne da minha carne.

— Isso não é da minha conta!

— Nada como a sutileza dos ogros ao abrirem a boca, sempre com palavras doces e um sorriso encantador — disse a pedra. — Dessa forma nunca vai arranjar a namorada que tanto deseja. Seja gentil, a menina está tentando abrir o coração.

Aff…

Eu sei.

Logo vai vim a pedrada.

Aposto.

O Sábio suspirou e disse: — Desculpa, não quis ser grosso. Seu pai me deixou nervoso.

— Tudo bem, não é da sua conta mesmo. Mas não posso ignorar a verdade. Eu sei que um dia Alonso vai embora para se aventurar pelo mundo, esse desejo faz parte da natureza daquele idiota. Só… ele é bom demais, não serve para isso. Tenho muito medo do que pode acontecer com ele. Por isso peço que o leve com você e que cuide dele.

— Eu...? — Guilherme soluçou. — Ora, não sou eu que não presto para nada? Olhe para meu rosto, não consigo cuidar de mim mesmo.

— Sim! Por isso tenho medo que meu irmão cabeça oca termine como você. Outra coisa, você tem razão, você é o maior miserável do mundo.

Ahhh.

Eu tenho que ser gentil.

Mas ninguém é gentil comigo.

Droga!

Felipa demonstrou uma expressão admirada, obrigando-se a nada demonstrar além disso. Sabia que as possibilidades poderiam ser terríveis numa jornada com uma pessoa tão miserável como esse garoto, e não queria deixar esse sentimento enfraquecer sua decisão.

— Eu nunca vi alguém vencer uma discussão com lógica distorcida. 

— Como assim?

— Você disse que só devia gratidão para mim e Alonso porque fomos nós que o ajudamos. Só que meu pai é o senhor desta casa e tudo o que há nela pertence a ele, logo, tudo que usamos com você pertence a ele, então deve gratidão para com meu pai também, se não for maior.

— Bem, isso, veja bem... — Guilherme ficou sem graça.

— Não quero explicações, até porque não foi só isso que você usou para vencê-lo. Você juntou tudo que escutou nesses dias, e de alguma forma criou a lança capaz de atingir diretamente o coração dele. Você é ideal para esse mundo e só precisa de força, e Alonso é muito forte.

Guilherme parecia muito atraído pela ideia, embora, não queria envolver Alonso na sua guerra contra esse mundo, e assim seria, mesmo que tivesse que se afastar, limitando-se a deixar cumprimentos, despedidas formais e nada mais.

— Isso não é tão simples assim. — Ele disse de forma indiferente.

— E não é mesmo, sabe disso, por isso tem que aceitar. Você cuida do meu irmão e o meu irmão vai proteger você. Uma troca justa.

— Não vou arrastar o Crista de galo para minha merda. Tenho inimigos poderosos e esse mundo é o maior deles.

— O mundo é inimigo de todos que tenham um sonho!

Agora, as palavras de Felipa fizeram com que Guilherme considerasse a possibilidade. Ele lembrou das palavras sonhadoras do panaca de cabelo cor de fogo.

Uma coisa você tem razão, garota.

Cedo ou tarde, o Crista de Galo vai embora dessa casa.

— Eu vou partir hoje e mesmo que quisesse levar Alonso comigo, ele está preso na idiota dívida de gratidão.

— Você é surda!? — gritou Aliam já distante, quase contornando a casa. — Felipa!

— Eu sei que pode dar um jeito na dívida de gratidão. O importante é que Alonso sonha em se aventurar pelo mundo. Só depende de você, ora, não é o Sábio Miserável?

Felipa o cumprimentou com a cabeça, para depois correr na direção em que estava o pai.

O que vou fazer?

— Pedra, o que você acha da gente obrigar Alonso a entrar para o nosso bando? Acho que vi uma corda dentro daquele baú velho.

— Não podemos fazer isso. Iria ficar muito feliz se um jovem espirituoso se tornasse seu companheiro, iria lhe fazer muito bem. Mas Alonso precisa resolver seus dilemas e aceitar o convite. Nada feito contra vontade pode funcionar!

— Não se preocupe. Só estava brincando, é modo de falar.

Droga.

Esse pedregulho nunca iria aceitar mesmo.

Aliás, nem em mil anos eu seria capaz de imobilizar aquele garoto só com uma corda.

Será?

— O que pretende fazer?

— Ficar, aqui que não é — afirmou Guilherme. — Se até o cair da noite nada mudar, vamos embora sem ele. É isso!

Sentiu um nó subir-lhe à garganta enquanto olhava para a floresta. Ele ouviu ruídos nos arbustos.

Droga, não é nada.

Só outra capivara distorcida.

Isso mesmo.

— Filó, é você filhinha? — Ele brincou, querendo espantar os terríveis pensamentos.

Aqueles cachorros mutantes me deixaram traumatizado.

Ainda bem que nunca mais vou voltar a ver aquelas coisas.

Lobos malditos, acabaram com a graça de ter um cachorrinho.

Aff…

Agora vou ter que ter um gato.

Droga!

Guilherme ignorou e voltou para o chiqueiro. Ele queria descansar um pouco para poder voltar para a estrada com energia total.

◈◈◈◈◈◈

O Ataque da Matilha de Lobos

A lua azul se ergueu no horizonte, tingindo o bosque com tons azulados e sombrios, enquanto a matilha de lobos cinzentos se reunia em meio às árvores que cercam o sítio. Os lobos estavam imbuídos de uma chama de ódio nos seus olhos, desejosos por sangue e ansiosos para rasgar a carne do grande miserável.  

O pelo cinzento era iluminado pela luz do luar durante o tempo que aguardavam o sinal de ataque. Seus olhos refletiram uma mistura de ansiedade e indecisão. A adrenalina correu em suas veias, alimentando o ímpeto voraz.

O líder da matilha, uma fera que foi humilhada e deformada, ergueu-se diante deles, transmitindo seu próprio desejo de vingança.

O desejo do líder da matilha será o desejo de todos os lobos.

Seu rosnado ressoa com fervor e intimidação para deixar claro que hoje seria o dia do acerto de contas. Todas as feras absorvem esse sentimento, sentindo a ira crescer em seus corações. 

O sol desapareceu por completo, a escuridão se instalou e o líder da matilha uivou, quebrando a indecisão das feras como se fosse um grito de terror naquele bosque sombrio. O sinal de ataque ecoou entre as árvores, os uivos dos lobos se unindo em uma sinfonia perversa.

A matilha avançou para dentro das terras do sítio, cada passo impulsionado por um objetivo porque já tinham um alvo, sendo que só precisavam atraí-la para a armadilha. 

Essa noite o sangue da vingança iria regar as plantas!

E assim, a noite que era pra ser tranquila, se transformou numa cena caótica de destruição, marcado pela horrenda fera no pé do bosque, admirando a festividade brutal, enquanto o deformado rosto exibia uma expressão de satisfação.

...



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