Last Downfall Brasileira

Autor(a): VALHALLA


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 45: O Sábio Miserável e a Garota que Amava as Plantas

Na manhã seguinte, Guilherme acordou e não viu Alonso em canto nenhum do chiqueiro. Suas noites de sono eram péssimas por causa dos pesadelos, ainda assim foi capaz de descansar e recuperar o corpo ferido, e estava se sentindo bem disposto.

Era um bom sinal de que os ferimentos estavam praticamente curados.

Encontrou suas roupas penduradas numa corda. Elas estavam acabadas, mas estavam limpas e os rasgos foram todos costurados. As sapatilhas estavam amarradas no pé da cama. Usou um pedaço de tecido para enfaixar o rosto e esconder as terríveis cicatrizes.

Vou dar uma volta.

Preciso esticar os joelhos direito para voltar para a estrada e não ter um troço.

Depois de tudo que passei, a última coisa que quero é uma distensão.

Se pelo menos nesse mundo tivesse o bom e velho GELOL.

Como essas pequenas coisas fazem falta.

Ah, se eu encontrar álcool, arnica e cânfora posso fazer um pouco.

O caseirão que vovó fazia era melhor que qualquer coisa industrializada.

Eh…

Aff…

Era uma desculpa mixuruca para deixar o chiqueiro, mas ele precisava de um pretexto para si mesmo. O senhor daquela casa havia o proibido de sair, e não queria causar mais problemas para essa gente.

No entanto, havia algo que precisava fazer de qualquer maneira.

Depois que terminou de se vestir, estava pronto para sair e buscar um prêmio especial.

Andar vestido é muito melhor que andar enrolado numa toalha.

Não sinto frio na bunda.

Rsrsrs.

Tenho tudo que é meu…

Bem, só falta o pergaminho e meu lápis.

A minha bolsa de aventureiro…

Ele parou. Guilherme sentiu um aperto forte no peito ao lembrar que rasgou sua velha bolsa para usar o tecido para esconder os machucados.

Já pedi demais.

Não posso esquecer do pergaminho e lápis.

Aquela birrenta cheia de sardas vai se virar para me devolver!

O fato era que o senhor Aliam não queria ver o Sábio Miserável andando por suas terras. Quando Guilherme o viu, o sujeito lhe pareceu mais cabeça dura que a própria Felipa, mas era o último dia dele naquela casa, então não fazia sentido seguir regras tolas.

Tenho assuntos para resolver.

Não vou passar o dia todo enfiado nesse chiqueiro fedorento.

Já tô começando a entender os gestos desse leitão.

Rsrsrs.

Ele fez um carinho no lombo do leitão Wiubor e saiu.

Andou um pouco na parte de trás do terreno. Não importava para o lado que olhasse, toda a propriedade era cercada pelo denso bosque dos sussurros.

Pelo menos aqui não tou ouvindo aqueles malditos ecos.

Já basta o pedregulho no meu ouvido.

Brincadeira.

Que bom que ele está comigo.

Sim!

— Não é, pedra?

— O que?

Pedregulho esperto.

— Nada!

Andou um pouco mais, e aproveitou para tomar um pouco de sol, estava pálido que nem uma vela.

Se surpreendeu como a luz solar lhe fez bem. Ainda não era da mesma forma que no dia que reencarnou, porque ainda sentia algumas dores, no entanto,  comparado aos últimos meses, se sentiu muito melhor.

Parecia até que tinha ganhado peso.

Ele avistou Felipa cuidando do canteiro de ervas, cuidadosa, limpando e arrancando as ervas daninhas, e ajeitando melhor suas plantas.

Com passos silenciosos, o Sábio se aproximou devagar, mas ela o viu.

— Guilherme, você é muito desastrado, faz mais ruído que um porco com dor de dente. Vejo que está melhor, tá diferente que aquele saco de estopa todo rasgado que chegou aqui.

O Sábio Miserável ajeitou o pano no rosto, queria ter a certeza que cobriu  toda a cicatriz.

Ele sentia mais vergonha do que dor.

Aiaia!

Essa garota é um doce de jiló, uma verdadeira mestra da empatia.

Eu poderia cair agora de joelhos e contar meus problemas para ela, é de certo que encontraria um jeito de torná-los piores.

Bem… mas sei bem que tipo de garota ela é.

Preciso me aproximar com jeitinho, ou vou estragar tudo.

Aff! 

Jogou o resto das preocupações numa mala e trancou no canto mais reservado da consciência.

No entanto, estava cheia demais e mal-arrumada. Mas se recusou a se livrar das lembranças ruins porque o arquivo das crueldades desse mundo eram as suas melhores justificativas para tudo que queria fazer.

Foi para frente da garota, endireitou-se da melhor forma que podia, com gestos suaves, tentou um sorriso, forçando os lábios, mas não conseguiu.

Para uma pessoa de corpo e mente despedaçados era impossível sorrir.

Tentou ser amigável então.

— Felipa, oi! Cheguei não, vocês me salvaram. É meu último dia aqui, e como você não voltou mais no chiqueiro, queria te achar para agradecer.

Enquanto o Sábio falava, Felipa ia se levantando para dar-lhe um esporro, com os olhos zangados e ansiosos por um conflito. Porém, vendo o garoto impotente, desistiu dessa birra infantil. Só que tentou ser a mais severa possível.

— Não é para mim que deve agradecimentos, cabeça oca, porque se fosse por minha vontade, você estaria boiando em algum lugar bem distante de mim, nesse momento — ela disse, forçando-se para aparentar indiferença. — Foi Alonso, teimoso até o fim, ele que se sacrificou por você.

— Com o Crista de Galo falo mais tarde. — Guilherme estava determinado a encontrar uma maneira de se aproximar dela. — Foram seus curativos que fizeram a diferença. O que era aquele unguento que usou em mim, tinha um cheiro ruim, mas funcionou bem, até melhor que os remédios da Ter… bem, digo, era incrível, nunca vi algo assim.

O infeliz trapaceiro queria mostrar que saiu do chiqueiro para agradecer aquela garota, mas se fosse só isso, que tipo de Sábio Miserável ele seria?

Guilherme podia estar se sentindo grato, não era mentira, só que compreendia que algo para usar como remédio nesse mundo perigoso, poderia separar a vida da morte. Ele não deixaria essa oportunidade escapar.

Um isekai sem um poder de magia de cura apelativo.

Nem mesmo um fator de cura divino.

Que bosta de enredo!

— Ah, sabia, então essa sua cara de menino bom era isso. Não sou tonta como aquele coração mole. Você e gratidão não combinam juntos, nunca! Só queria saber do remédio para curar seus machucados, não é isso?

— Não, não! Bem, é verdade que estou interessado no seu unguento medicinal. Que é maravilhoso por sinal. — Ele riu para diminuir a cara de tapado. — Mas não é só isso.

Guilherme sacudiu os ombros, imitou um movimento de desmaio, confusão, e viu a face da garota mudar. Preocupada, ela ameaçou ir ajudá-lo.

O Sábio sorriu e fez um gesto positivo com as mãos.

Não é como o cabeça oca do Alonso, hein?

Você é fácil de ler, menina.

Oh, não, vocês são exatamente iguais.

São vítimas perfeitas!

— Guilherme, não faça isso — advertiu a pedra. — Eu sei o que você quer fazer. É uma estrada para a ruína. Essas pessoas são boas, vai mesmo usá-las?

Não há pessoas boas nesse mundo.

Só há ferramentas.

E serão todas minhas!

— SIGH! Não posso culpar você. — Felipa ficou mais disposta. — Da forma que te encontramos, não dá para saber o que irá enfrentar, é bom estar preparado — ela disse tentando recompor-se.

Conformada, Felipa voltou a se ajoelhar no canteiro, com todo cuidado e carinho do mundo, onde vários tipos de ervas eram cultivados. Fez sinal para que o Sábio se juntasse a ela.

Guilherme se aproximou sem jeito, e pouco cuidadoso se ajoelhou.

— Cuidado! Você é pior que um tronco de árvore caído na floresta. Eu amo minhas plantas mais que tudo. Se quebrar uma que seja, nem todo unguento do mundo vai curar o que vou quebrar em você.

— Você gosta desse canteiro de mato, hein? — ele brincou para disfarçar o constrangimento.

Guilherme nunca se importou com as plantas. Sua única noção de natureza eram os pés de alface que comia nas saladas, ou os pés de cafés no dia de poda.

— Mato? Você é um idiota, tenho certeza. Eu amo esse canteiro. É minha vida. As plantas são as melhores amigas das pessoas.

— Guilherme, seja mais cuidadoso com os tesouros das outras pessoas — disse a pedra.

Droga!

Eu sei, não fiz de propósito.

Não iria estragar tudo logo agora que essa esquentadinha abriu uma brecha.

Eu preciso do unguento dela.

E como ia saber que a maluca era uma natureba.

Aff!

Dessa vez, com a delicadeza de uma seda e bem devagar, o Sábio se aproximou.

— Desculpa! Eu sei que as plantas são importantes para as pessoas.

— Assim é melhor. As plantas cuidam de nós, por isso devemos ser cuidadosos com elas. Veja essa pequenina como exemplo, tão frágil, mas tão especial. — Ela explicou, enquanto passava a mão numa planta pequena com longas folhas num tom de verde intenso.

Embora procurasse palavras para quebrar o constrangimento e parecer mais inteligente, Guilherme sentia-se incapaz de achá-las. Não havia o que dizer além do básico.

— Que planta é essa? — Ele se apressou e agiu como um idiota.

— Você não a conhece? Essa planta cresce em quase todo lugar. Há, é verdade, sinto muito, eu entendo bem como é. Essa é a erva-da-mãe-moren!

— Hum… é, foi difícil. — Ele não entendeu porque a garota disse aquilo, mas para não piorar, decidiu continuar: — Para que ela serve?

— Como vou dizer? Serve para quase tudo, mas sua principal função é cuidar das enfermidades das pessoas. Quando os deuses abandonaram o mundo, essa erva foi um presente deixado pela deusa Moren para os homens.

Deuses?

Outra vez isso.

Que bosta.

Eles vão, eles vêm, eles abandonam, eles destroem, eles acolhem.

Droga!

É melhor tomarem uma decisão.

Mas uma coisa é certa, por onde passei, essa tal Moren é vista com carinho.

Será que nem todos os deuses são uns filhos da puta?

Uma ova que não!

Não vou cair nessa outra vez!

— Deuses não existem, mas se existissem, não dariam a mínima para as pessoas. Isso é certo!

A frieza das palavras do Sábio Miserável assustou e feriu Felipa. Dessa maneira, ela lembrou como esse mundo era um lugar cruel, e como as pessoas tinham esquecido os deuses antigos.

Era por isso que a pregação humanista do Círculo Dourado estava atraindo tantos adeptos.

— Diga a verdade, você é um Peregrino Dourado?

— O que? Eu, não! Nem sei o que é isso?

— Não acredito, fala a verdade, anda, como você não conhece os lacaios do Círculo Dourado?

Guilherme lembrou que ouviu sobre eles na Guilda da Caveira, e então lembrou da pregação do eremita que foi queimado na fogueira.

Era disso que aquele velho tava falando.

Foi aquela gente que depois queimou ele.

É isso!

É minha chance de conseguir mais informações desses malucos, mas não posso ser direto, já tô vacilando demais.

Pera, aquele velho tinha falado de uma tal Ordem Sacra.

É arriscado, mas posso usar.

É isso!

— Você diz o Círculo Dourado? É isso? Eu evito falar dessa gente, e não faço parte daquele grupo de malucos. Minha família segue o caminho da Ordem Sacra.

— A Ordem Sacra é a última ligação do mundo com os deuses. Só a sua família que segue os ensinamentos, e você, não segue? Foi por isso que saiu da sua casa?

— Eu sair de casa para seguir minha vida! Olha só, eu não sou como os malucos do círculo. — Guilherme poderia ter encontrado uma saída melhor, mas há coisas que não podia engolir. — Em todo caso, concordo com eles em um ponto, os deuses são malignos.

Apesar da indignação que sentiu, a garota não poderia condená-lo por perder a fé, já que nem era capaz de imaginar o que esse garoto tinha passado para ser desta maneira. 

— É fácil culpar as divindades como é fácil culpar os outros por nossos erros. Por isso, são os humanos que não merecem o amor dos deuses. — Ela arrancou uma das folhas da erva-da-mãe-moren e a entregou para Guilherme. — Pega, cheira!

O sábio pegou a folha e cheirou, de imediato reconheceu o aroma.

— É o cheiro do unguento que usou em mim!

— Sim! Se for triturada e misturada com gordura de algum animal, ou argila de rio, irá virar um unguento poderoso, e com muito cuidado, poderá curar quase tudo. Se fizer um chá, também é bom para má digestão e vermes.

— Que maravilha!

— Essa planta foi erradicada em muitas terras por causa do Círculo Dourado. Os idiotas preferem rejeitar tudo que lembre os deuses e buscar outras formas de curar as feridas das pessoas, até magia obscura.

É…

Não posso condená-los.

Pera…

Magia obscura?

Há outras formas de magia nesse mundo que não seja de origem dos deuses?

Bem…

A Menma, aquela maluca dos morangos, ela  usou magia.

Só que o quadro de poder dela era igual o meu e o do Skog, pensei que fosse tudo a mesma coisa.

Se bem que aquela desgraçada não tinha cara de heroína.

Quando voltar para a estrada, o pedregulho vai ter que me explicar isso direitinho.

Porém, agora tenho que focar no que está ao meu alcance.

Essa plantinha funciona bem para curar ferimentos.

Não posso perder a oportunidade.

Guilherme saiu da toca do coelho determinado, e sem importar, usou sua habilidade de avaliação. Ele não se preocupou com Felipa, já que ela também fazia parte do seu teste; dois passarinhos derrubados com uma pedrada só.

Que bosta.

Sou fraco demais!

— O que você fez? 

— Não viu nada?

— Não!

— Usei magia.

— Isso também, sei, você sabe mesmo usar magia? — Felipa riu seco. — É um mentiroso.

Bem, não tenho que provar nada.

Não é esse o foco.

O importante é que a magia realmente é algo raro e ela não é capaz de ver.

Mas até agora não vi muita magia nesse mundo.

Isso só prova que é especial.

Também mostra que aquela maluca comedora de morangos realmente era poderosa.

Então aquela pressão que senti vindo dela era isso?

Por que não senti nada vindo do Skog?

Opa…

E a pressão que senti vindo do Dick?

Nossa, a dele era muito mais forte, nem tinha comparação.

Será que ele é um herói?

Bem, cara de herói ele tinha.

Nem pensar, não faz sentido, ele era da classe G, o ponto mais baixo da Guilda dos Heróis.

Nunca que aquele lugar de merda iria deixar alguém poderoso num rank tão baixo.

O proprio idiota do Liel foi para a classe D.

Eu preciso encontrar mais usuários de magia para fazer mais estudos.

Só… fala sério, e se só eu puder ver os quadros mágicos.

Hooo!

Tá ficando interessante.

A pedra contou que a essência da magia nesse mundo é a palavra.

Então?

Será que isso é uma característica especial da classe sábia?

Ele disse que eu ainda iria descobrir o verdadeiro potencial do Fichário do Jogador.

Será que é isso?

Aquele maldito pedregulho fica contando as coisas pela metade.

Bem, não posso ter certeza sem mais testes.

Mas se a maluca que criou esse mundo jogou no ralo os clichês do uso de magia, como os símbolos de invocação, ou os benditos círculos mágicos, ou outra coisa extravagante do tipo.

É preocupante!

(...)

— Ei, ei, ei… — Felipa deu uns cascudinhos de leve na cabeça do Sábio. — Ficou encantado pelo aroma dessa plantinha, né? — Ela riu de satisfação. — Você é muito estranho.

Guilherme saiu da toca do coelho atordoado e disse, acompanhado o riso da garota:

— É verdade, essa planta é muito especial. 

— Guilherme — avisou a pedra —, há algo nos arbustos.

Foi a voz da Felipa que tirou Guilherme da toca do coelho.

Só que não foi o chamado da garota que ativou seus extintos, no entanto, um sentimento ruim o deixou agoniado ao ver movimentação numa moita entre as árvores da floresta.

Um esquilo correu da moita e subiu numa árvore, com isso, ele suspirou de alívio.

Tinha receio que fosse algo muito maior e cheio de ódio.

Se acalme.

Aqueles bichos nunca vão me seguir além do rio.

Cachorros detestam a água, essa é uma lei em qualquer mundo.

É um pesadelo a menos para me preocupar!

— O que foi? — perguntou Felipa.

O Sábio não queria falar sobre a terrível experiência com a vingativa matilha de lobos cinzentos porque acreditava que tudo acabou quando caiu no rio.

Aqueles cachorros são estúpidos demais.

Para eles, estou mortinho da silva, como um pedaço de chumbo no fundo do rio.

É isso.

Essa história acabou!

Guilherme não tinha ideia da distância que foi levado pela correnteza do rio até ser tirado da água, mas acreditou que graças a isso, os malditos lobos haviam ficado para trás, junto de todo o resto.

Era um recomeço perfeito.

— Não é nada. — Ele respondeu.

O que Guilherme não sabia era que um olho vermelho ardia de ódio, escondidos entre arbustos distantes, observando sua relação com a garota.

Pus fétido escorreu pelo rosto medonho, vindo do outro olho destruído, e a criatura salivou com um desejo  assassino.

Ela bafoou um hálito quente sobre as folhas verdes, que murcharam em seguida. 

Só que a criatura viu um homem furioso sair da casa e se aproximar da dupla de jovens, então ela rosnou de frustração e se retirou para o interior da floresta.

...



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