Last Downfall Brasileira

Autor(a): VALHALLA


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 44: A Despedida do Sábio Miserável

Dois dias se passaram, e Guilherme havia encontrado a palavra ideal  para definir sua rotina: enfadonha.

Durante os dias tinha que aturar o temperamento oscilante dos porcos e durante as noites não conseguia dormir por causa dos pesadelos.

Na maior parte desse tempo, ele ficou dentro do chiqueiro, já que o dono da casa, o senhor Aliam, não queria de jeito nenhum um sujeito estranho vagando por suas terras.

Para passar o tempo, aprendeu que os porcos, com certos incentivos podiam executar truques; aqueles animais não eram muito diferentes dos animais adestrados na Terra.

O coelho aprendeu a sacudir as orelhas quando queria cenoura.

Era tão fofo.

Esse chiqueiro, no início, pareceu-lhe um castigo, mas agora, tão perto da partida, já estava emocionalmente acostumado.

Nada dura na minha vida!

Por que lamentar?

Além das longas horas que passou deitado na cama, também teve que suportar o péssimo humor de Filipa junto da sua mão pesada para trocar os curativos.

Quando a garota percebeu que a forma mais rápida de se livrar do Sábio Miserável seria continuar cuidando de feridas, quis deixar claro que seria tão enfadonho para o próprio Sábio quanto seria para ela.

Mas nem tudo foi ruim, porque se aproximou bastante de Alonso, e descobriu que gostava de ouvir os seus delírios e os seus planos para as futuras grandes aventuras.

As conversas giravam, desde grandes cavaleiros errantes e suas fantásticas conquistas, até criaturas misteriosas e assustadoras.

Quem se encantou de verdade, foi a pedra, que em hora ou outra, sussurrava para Guilherme que viu muitas dessas lendas nascerem.

Fora isso, eles não voltaram a falar da Terra e nem de Last Downfall, e toda vez que o rapaz de cabelo cor de fogo quis tocar no assunto, o Sábio Miserável encerrou a conversa com alguma grosseria.

Para ele, juntos dos terríveis pesadelos que atormentavam seu sono, lembrar da Terra, ainda acordado, e de tudo que deixou para trás para realizar os desejos egoístas era doloroso demais.

Ainda pior, porque a única certeza era que Last Downfall representava todo o mal neste mundo.

Era noite, Guilherme e Alonso dividiam uma tigela com uma espécie de papa branca, feita com os talos de capim dedo-de-anão.

— Depois que se acostuma, esse capim não é tão ruim assim.

— Traa, ah não, ele é ruim sim, juro que tem o gosto das bolas dos porcos.

— Ah é, como você sabe?

— Traa, não sei, mas tem… é o tempero da dona Mia que deixa gostoso. Ela tem chouriço de porco escondido em algum lugar, que usa aos poucos. Eu procurei para pegar um pedaço, mas não achei, traa, traa.

O Sábio segurou firme a tigela. A papa ainda estava muito quente e ele ficou mexendo-a para esfriar.

Olhou para o chiqueiro com cuidado enquanto se esfregava na cama de palha, bem devagar. Tentou encontrar alguma forma para prolongar ao máximo aquele momento.

É engraçado, mas vou sentir falta desse lugar.

Como a vida dá voltas.

Alonso pegou um pouco de papa e deixou o leitão lamber, depois deu um tapa no traseiro do animal que começou a rodopiar e bater o casco da perna direita no chão, parecia que estava sapateando.

— Que engraçado, tá dançando. — Guilherme riu.

— Sim, está, eu ensinei isso para ele! — Animado, o Crista de Galo fez carinho no porquinho. — Wiubor é um bicho muito especial, é muito inteligente.

— Os animais são como as pessoas, sabia, Alonso? Só é preciso o incentivo certo que eles irão sorrir e sacudir a cabeça.

— Não! Com o incentivo certo, as pessoas são capazes de muito mais que bater os pés no chão. Elas são capazes de mover o mundo.

Um clima triste esfriou a atmosfera alegre do momento.

— Sinto muito por só poder ficar aqui mais um dia — lamentou Alonso, sentindo um aperto no coração. — Sei que ainda não está curado.

— Você não precisa se preocupar mais comigo. Já fez o suficiente. Se estou vivo, é por sua causa.

Alonso hesitou antes de continuar, meio sem jeito, e pegou a tigela para distrair os pensamentos, querendo afastar a tristeza.

— Queria que ficasse aqui, gosto das nossas conversas — disse por fim.

— Não posso, tenho a minha jornada — avisou Guilherme, coçando a cabeça. — Aqui não é o meu lugar, no entanto, também não é o seu.

— O que você quer dizer com isso?

— Meu corpo ainda pode estar fraco, mas minhas pernas estão boas. Eu vou voltar para a estrada — disse, enquanto balançava a tigela com a papa. — Nossos interesses são diferentes, porém, você pode vir comigo. Olha só, podemos viajar juntos até a próxima cidade, de lá poderá ir em busca do seu sonho.

Direcionando o olho bom, Guilherme o encarou.

Alonso ficou em silêncio, e a fim de fugir do olhar do Sábio, se virou para o leitão Wiubor, acariciando a cabeça do animal.

— Guilherme — chamou a pedra —, ele não vai aceitar, é um bom jovem, é honrado. Só vai direcionar a vida quando pagar a dívida de gratidão com a família que o acolheu.

— Você não vai sair desse lugar. — O sábio suspirou.  — Nunca!

Depois de um tempo em silêncio, Alonso disse inseguro: — Não posso...

— O que é? — Guilherme tentava aparentar confiança ao olhar para o garoto com o olho bom. — A vida é sua, não se pode prender a nada, lendas, tradições ou ideias, poderá se arrepender muito no futuro. O tempo passa rápido demais.

— Eu não posso ir…

Droga!

Não vou convencer ele com falas baratas.

Preciso de algo impactante.

É isso.

— O homem certo no lugar errado pode fazer toda a diferença no mundo. Então acorde, Alonso... acorde e sinta o cheiro das cinzas, senão verá seus sonhos queimarem.

Alonso arregalou os olhos, e foi como uma ignição dentro da sua cabeça, sendo que a sua vontade era dizer: vamos nessa!

Só que não podia virar as costas para a família a que devia tanto, então controlou os fortes impulsos aventurosos.

— Olhe, eu não posso ir agora. Não quero um sonho através da vergonha, é o que importa para mim . Mas somos amigos, quem sabe VALHALLA junte nossas estradas no futuro.

Algo na voz do Crista de Galo fez com que a cavidade escura do olho esquerdo começasse a latejar. 

Ele prendeu o fôlego ao sentir uma pontada no coração, desejando que o garoto saísse do chiqueiro.

A cicatriz no rosto começou a coçar, e Guilherme esfregou as unhas nela, parecendo inquieto.

— Guilherme, se acalme, cada pessoa tem sua jornada, mas não quer dizer que seja o fim — disse a pedra. — Acalme-se, se descontar a frustração nas feridas, elas vão abrir.

Então o Sábio Miserável respirou. No entanto, tudo para ele era um fingimento, sua alegria, as conversas, o bom relacionamento, por isso naquele momento ficou impossível suportar.

Porém, outra vez só queria se enganar.

Foi a palavra amigo que causou essa reação pois queria negar o significado dela. Não suportaria sentir outra vez aquela dor.

Eu não preciso de amigos!

Eu quero ferramentas!

Em nome desse ideal, sacrificou toda uma vida. Trocou o convívio social e afetivo por noites de leitura de novels questionáveis e jogos vazios.

As pessoas são frágeis demais!

Logo cedo percebeu que uma vida sem sofrimento, significava evitar amizades ou envolvimento emocional com outras pessoas.

Portanto, embora na Terra tenha tido oportunidades de construir uma vida feliz, optou por ignorar cada possibilidade, pois sabia que iria perder tudo outra vez, não pelos outros, mas porque era fraco demais para proteger qualquer coisa. 

Eu errei com você, meu grande amigo.

Traí sua amizade.

Fui um covarde.

Sou uma pessoa miserável.

Tenho direito a novas amizades?

Não!

Não!

— Alonso, por favor, não! — Guilherme parou de fingir e segurou com força a tigela com a papa. — Esqueça isso, eu não sou amigo de ninguém, não mereço! Sou o Sábio Miserável. Valhalla escreveu para mim a solidão.

— Olhe, eu não costumo ser rude com os outros. Mas desta vez é diferente. O caso envolve uma pessoa que gosto. Você tá machucado, senão, traa, juro que lhe daria um bom cascudo.

Por um momento, o Sábio se sentiu bem.

— Eu não faço ideia do que Valhalla escreveu — Alonso continuou. — Tanto faz, você é meu amigo e pronto! Agora termine de comer a papa, se deixar esfriar demais, vai ficar dura como essa pedra que você tem pendurada no pescoço.

Ela é dura mesmo!

Guilherme se segurou para não rir.

Meus inimigos são poderosos demais.

Mas não demorou para o sentimento de frustração assumir o controle, e ele quis ignorar tudo e desaparecer para nunca mais voltar olhar a cara daquele garoto de cabelo vermelho.

Ainda que quisesse matar o sentimento de carinho, não podia ignorar que Alonso foi uma exceção. Mesmo ele sendo mais forte, nunca o maltratou e explorou suas fraquezas, como tantos outros fizeram.

Os malditos valentões.

Ao contrário, ele foi gentil e cuidadoso, um bom amigo, ainda que por pouco tempo.

Guilherme sabia que representava um perigo para qualquer pessoa, e com as ações, deixou isso claro, porém o Crista de Galo o aceitou, primeiro falando de sua vida, para depois compartilhar seus sonhos, e concretizou chamando de AMIGO o Sábio com o coração amargo.

Não fez cobranças e não fez promessas, foi tão simples como o primeiro floco de neve no início do inverno.

— O jovem poderia ser um bom companheiro, mas jamais podemos sobrepujar as vontades das pessoas que gostam de nós, é a melhor forma de ser um bom amigo — disse a pedra.

— Você tem razão!

— É claro que tenho. — Alonso se animou. — Ninguém nasceu para a solidão. E quem é meu amigo, traa, terá outros muitos amigos, porque sou pé quente.

Guilherme riu, terminou de comer a papa e disse:

— Isso não faz sentido.

— Faz sim, traa, fui eu que disse!

Os dois começaram a rir.

Os porcos demonstraram mais outros truques engraçados.

Aquela interação amistosa entres os dois se estendeu até tarde da noite. Foi uma bela despedida.

Sei que pode ver.

Olhe bem para mim agora!

Que coisa, né?

Conseguir fazer um amigo nesse mundo de merda.

Não vou destruir outra boa pessoa.

Preciso desaparecer de sua vida o mais rápido possível.

Só mais um dia, e voltará a ser só eu e a pedra.

Isso é o melhor para todos, né?

Não, só para você!

Droga!

...



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