Volume 1 – Arco 2
Capítulo 43: O Sábio Miserável No Parque
O som dos pássaros cantando nas copas das árvores que cercavam o pequeno lago lembravam um lindo arranjo de flautas. O lugar tinha boa movimentação de visitantes, como todos os lagos para pescaria num fim de tarde; para onde olhasse tinha alguma pessoa se divertindo.
No entanto, nada conseguia afastar a sua sensação de vazio.
Se algo acontecesse, a paz daquele lugar se tornaria uma crise caótica; de qualquer forma, a agonia já havia infectado o coração do pequeno garotinho, deixando seu corpo alerta mesmo durante um final de tarde agradável.
Olhou para o céu vermelho e viu as nuvens de pedra flutuando serenas, levadas para longe por uma suave brisa.
Eu tava dormindo?
Da mesma forma que uma sensação fantasma, ele sentiu um forte sofrimento, então passou a mão pelo rosto, na parte esquerda, e não tinha nada de errado.
Foi um pesadelo?
Só que não era a sensação perturbadora que fazia o jovem corpo do garoto enrijecer por causa dos calafrios.
Era a lembrança da tragédia do amigo.
Ele sempre foi uma criança solitária que tinha interesses diferentes das demais crianças. Nunca se importou com isso porque seus sonhos eram capazes de compensar os momentos de solidão, e os prazeres da modernidade poderiam soterrar qualquer marasmo.
No entanto, desde que se mudou para o sítio dos avós, tal hábito se tornou insustentável. A solidão piorou nesse período, e os sonhos não mais prometiam alegria e uma vida boa, mas desolação.
Os cuidados excessivos dos avós e pais, junto da nova rotina, enfiaram-no numa carapaça de arrogância, dessa forma transformando-o, de uma criança sonhadora, em um garoto mimado e egoísta.
Nem o coelho, branco como neve, que foi o presente da mãe para lhe fazer companhia amoleceu seu coração e muito menos iria fazer diferença o apelo do irmão para ver o sítio de outra forma, nada naquele lugar tinha sentido.
Dentro dele só havia a esperança de voltar para a vida na cidade junto dos videogames, porque acreditava que só assim seus sonhos voltariam ao normal.
No entanto, sabia que não poderia voltar, já que os pais venderam a antiga casa. Nisso, os dias passaram e cada vez mais ficaram sombrios, e o garotinho vazio e revoltado.
Até que um dia, durante uma violenta tempestade, tudo mudou, o garotinho encontrou um estranho menino vagando pelo sítio, sozinho, molhado e confuso.
— Sabia, a chuva não pode machucar você?
Um estalo lhe tirou do devaneio.
O que foi isso?
— Ei, Guilherme, você vai ficar a tarde toda com a cara amassada de uma capivara? Para de ser chato, vem cá. — Era a voz do seu irmão, o Paulo. — Papai vai jogar a linha na água.
Ele olhou ao redor, e viu o pai e o irmão pescando na margem do lago.
O que?
Como eles chegaram aqui?
Ele viu que as outras pessoas continuavam se divertindo naquela tarde agradável, tudo continuava normal.
Só que um sentimento profundo de solidão arrancou dele a paz.
O céu vermelho parecia mais próximo que o normal, gigante e ameaçador, despejando um tom sangrento às águas do lago, que até então calmas, começaram a ficar violentas.
O assustador era que, tanto o pai e o irmão, como as outras pessoas, nenhum deles achou aquilo estranho, era como se nada estivesse acontecendo.
Ele ouviu uma voz terrivelmente familiar: — Que bela lembrança, deixe-me ver mais… Por que não consigo ver seu passado?
A voz distante e áspera que o aterrorizou e fez sua pele se arrepiar continuou se repetindo dentro da sua cabeça. Tinha certeza que nunca ouviu algo assim, mas uma forte ardência no olho esquerdo lhe dizia que a voz prenunciava alguma coisa terrível.
A linha de pesca do pai fisgou um peixe.
Segundos depois, as águas começaram a se mover violentas, chocando-se à margem do lago. As ondas subiram, vorazes, como se algo sombrio e horrendo se agitasse sob a superfície das águas tumultuosas.
O pai se aproximou da margem para puxar o peixe e para isso, enfiou o pé dentro da água.
Não, não, não.
Por favor.
Não cheguem perto dessa água!
Mesmo distante da água, o garoto sentia um grande perigo. Seu olho esquerdo começou a arder como se tivesse queimando, pressionado seu rosto de forma dolorosa, como se alguma faca retorcida estivesse rasgando-lhe a carne.
Num estalo, o pai foi puxado para dentro da água e desapareceu nas furiosas ondas.
— Pai… — Paulo gritou, e sem nenhuma hesitação pulou dentro do lago.
O garoto se levantou, correu, mas com medo, não se aproximou da margem. Ele percebeu que as outras pessoas não se importaram com o que estava acontecendo, era como se ainda estivessem no agradável final de tarde.
Paulo voltou à superfície: — Eu não vi ele, acho que está preso na linha. Guilherme, papai vai morrer, pula aqui, vem me ajudar a procurar.
O garoto não mexeu um músculo, e o irmão ficou o encarando, decepcionado.
Sai da água!
Paulo também foi puxado para o fundo, só que alguns minutos depois, voltou à superfície, agarrando-se na margem. O seu corpo estava todo machucado. Ele estendeu o braço e disse:
— Guilherme, por favor, me ajuda…
No primeiro movimento, o garoto moveu o braço para agarrar a mão do irmão, só que o medo o impediu de continuar, fazendo-o recolher o braço, e arrastando a bunda na grama, e se afastou da margem.
— Não, não, não consigo, não é minha culpa…
Uma figura horrenda saiu da água, era um homem grande e usava um avental sujo de sangue, na sua mão tinha um cutelo de açougueiro, ele agarrou o pescoço do Paulo, puxando-o para o fundo.
As águas se acalmaram, e a brisa do fim de tarde voltou, parecendo que tudo tinha retornado ao normal. O garoto se sentiu aliviado por ainda estar vivo, só que era um sentimento falso, porque dentro de si, uma agonia rasgava suas entranhas.
Eu não consegui salvá-los!
Eu também não consegui salvar ele!
Eu não posso salvar ninguém!
E então, sem aviso, Skog começou a emergir da água bem na frente do garoto. Primeiro foi a cabeça, seguido pelo corpo e os horrendos pés de bode. O deus flutuou através do lago como se para abraçá-lo.
Apavorado, o garoto tentou fugir, só que foi inútil porque um cipó agarrou suas pernas o derrubando no chão, para em seguida suspendê-lo de ponta cabeça sobre o lago.
O vento aumentou de intensidade. As águas voltaram a ficar furiosas, mas dessa vez, tão violentas como as marés numa furiosa tempestade. Ela estava fervendo e o calor era infernal. Pendurado e indefeso, ele viu o corpo do pai e irmão derretendo no lago fervente cor de sangue embaixo da sua cabeça.
— Você é um pequeno covarde. Irá atrás do lago sem fundo? Pensa que irá escapar de mim? O lago sem fundo é quente demais para você — disse Skog, flutuando ao lado dele. — Você é um verme, ainda assim, não consigo ver seu passado. Por quê? Vamos, mostre-me mais dos dias que passou no sítio dos seus avós.
O garoto viu as pessoas, ainda se divertindo na beira do lago, então, desesperado gritou: — Alguém me ajuda, não deixe esse bicho me machucar!
— Você é patético. Seu pai e irmão estão mortos, e só consegue pensar em você mesmo. Nem se importa em envolver aqueles mortais inocentes no seu castigo, pois bem, veja…
Skog estalou os dedos.
Enormes labaredas de fogo começaram a emergir da água, e o garoto sentiu o bafo escaldante quando subiram a uma altura impossível. Os corpos do pai e irmão viraram cinzas instantaneamente.
Só que o mais aterrorizante foi que as chamas avançaram, envolvendo as outras pessoas, porém, elas não demonstraram reação, e continuaram as brincadeiras como se ainda estivessem num gostoso fim de tarde à beira do lago.
O sorriso nos rostos daquelas pessoas enquanto o fogo consumia seus corpos era aterrador.
— A vida dos mortais para os deuses não é nada. — Skog estalou o dedo mais uma vez.
De todos os lados começaram a vir os gritos de dor das famílias, desesperadas, atormentadas, gritando por ajuda.
A lancinante sinfonia aumentou de intensidade, e diante do olhar aterrorizado do garoto, a terra se abriu engolindo tudo para as profundezas escuras.
— Mostre-me o seu passado, senão terá um destino pior que o deles.
O garoto não tinha reação, além de fechar os olhos.
— Você não tem poder para evitar o desejo de um deus! Não pode esconder nada de mim!
Skog, com uma das mãos agarrou a cabeça do garoto, com a outra começou a penetrar o crânio dele, como se estivesse enfiando um garfo num pudim. Quando estava próximo de alcançar o centro do cérebro, foi atingido por uma forte descarga elétrica.
Surpreso, o deus se afastou e ao levantar a mão, todos os seus dedos haviam desaparecido, restando apenas poeira. Com os dedos regenerando, ele olhou para o apavorado garoto e perguntou, atônito:
— O que é você?
O cipó que sustentava o garoto no ar rompeu-se, e ele caiu no lago, gritando e agarrando-se ao nada, mergulhando nas intensas chamas.
◈◈◈◈◈◈
Guilherme ergueu-se nervoso entre a manta que usava de cobertor, o corpo em convulsões e empapado de suor apesar do frio, as mãos agarrando as palhas da cama e a cavidade do olho esquerdo latejando como nunca.
— Não, não — gritou. — Não sei de nada! Não me machuque!
Depois de bufar algumas vezes, o seu pulmão se acalmou.
O olho bom se adaptou à escuridão, e junto do fedor característico, percebeu que estava no chiqueiro. Por causa do seu descompasso, os porcos ficaram agitados, mas logo se acalmaram.
Onde ele está?
Então, ansioso, procurou Alonso, encontrando-o dormindo sentado no banquinho, e com a cabeça sobre os joelhos.
Ele respirou aliviado e voltou a se deitar, virado para a parede, só que desta vez, mordendo com força a língua para não voltar a dormir.
Na escuridão, Alonso ergueu a cabeça e abriu os olhos, e depois de dar um leve tapa na bunda do leitão Wiubor, suspirou preocupado.
— Não importa o que aconteceu com você, apenas lute, porque não irá descansar se não derrotar seus fantasmas. Só assim haverá paz em seus sonhos. — disse baixo. — Os homens maus não podem te ferir para sempre.
...