Last Downfall Brasileira

Autor(a): VALHALLA


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 42: O Sábio Miserável Na Estrada Escura

Sentindo-se contrariado, forçou-se a desviar o olhar. O chiqueiro era um mausoléu de sombras, sujeira e fedor. Meia dúzia de porcos grunhiam numa orquestra desafinada e insistente, mas Guilherme não conseguia ignorar a estupidez do garoto do cabelo cor de fogo.

Ele é um idiota!

Sentado na cama de palha, ele sentiu a frustração agigantar-se em seu cérebro, até que não conseguiu concentrar-se em mais nada, sem poder parar de observar o garoto.

O tempo parou enquanto ele o analisava, praguejando-se com o modo estupido com que ele movia o corpo com gestos determinados, deixando-se absorver pela expressão firme que ele espalhava ao redor de si, atiçando os porcos tal qual um líder nato. 

Esse garoto é pior do que lidar com tatu bola enfiado dentro da toca.

Eu preciso inventar outra coisa e finalizar esse assunto, rápido!

Fazer ele desistir desse sonho idiota.

Se pelo menos quisesse ficar rico ou cheio de garotas.

Mas só quer tornar as vidas dos outros melhores.

Babaca! 

Droga, mas fui eu mesmo que puxei a maldita conversa.

Tudo culpa da pedra.

O que vou fazer?

Ah, já sei!

Vou usar meu poder ultra fodástico…

— Você não precisa de nenhuma lenda para tornar seu sonho realidade.

— Hã, como?

Isso…

Foi como papai falava: só é preciso amarrar a minhoca na linha e jogar na água.

Ele mordeu a isca.

— Bem, digo de experiência própria, pois eu vim de um reino onde não existe escravidão, fome e guerras. 

Fala sério.

Vou mesmo usar a Terra como exemplo?

Um dos lugares mais injustos que existem.

Mas pelo menos lá não arrancam os olhos das pessoas, não há escravidão e há muita comida.

É um paraíso comparado com esse inferno.

Um ISEKAI?

Mundo de fantasia?

Uma ova!

Enquanto Guilherme estava na toca do coelho, não percebeu que a expressão de Alonso havia mudado.

— Esse lugar existe de verdade? Traa, por que saiu de lá?

— É… não foi minha culpa, mas não é disso que tô falando, só quero que saiba que há outra forma.

— Sei não, uma terra assim é boa demais para existir — Alonso estava admirado, porém, um lugar como esse, para ele, era mais difícil de acreditar que a própria lenda Last downfall.

— Não estou mentindo. — Por um momento, e de forma inconsciente, o olho bom do Sábio se encheu de lágrimas ao recordar das tardes que passava nos parques. — Alonso, era tão bom deitar na grama para ver as nuvens de pedra viajando no céu vermelho.

 — Céu vermelho? Nuvens de pedras? Nunca ouvi falar dessas coisas. — Para o Crista de Galo aquele relato era muito estranho, mas julgou que era verdade, pois viu que Guilherme estava emocionado de verdade e o mundo era grande demais para ter certeza de qualquer coisa. — Nossa, o mundo é maior que a maior bunda do maior porco. Onde fica esse reino?

— É muito e muito longe, tão longe que não posso voltar. — Para dar crédito a sua história, Guilherme usou toda a informação que ouviu deste que chegou nesse mundo para criar a justificativa. — Fica além da floresta negra, do deserto e do grande lago de água salgada, muito, muito mais além…

Eu preciso de algo impactante para cravar a história.

Mas o que?

Qual era o nome daquele desenho que uma garota cruzava os mundos montado num cavalo…

Gostava tanto da música dele…

É isso!

— Alonso, é tão longe que só pode chegar cavalgando nas costas de um cavalo de fogo. 

Vou temperar a história com esse desenho.

Ele se dará por satisfeito.

Agora vai me deixar em paz.

A mente de um caipira nunca será desafio para um amantes das mais mirabolantes histórias e novels.

Pronto!

— Sério? Traa, que incrível, os cavalos de fogo são criaturas furiosas. Como você não queimou o traseiro? Vai, conta mais, como é a comida da sua terra? E as garotas, são lindas? Como é a vida sem escravidão?

Commmo?

Esse cavalo era só um desenho.

Fala sério, ele existe mesmo?

Droga!

Foco, foco, foco.

Isso não quer dizer que seja o mesmo, seria loucura e estranho.

Talvez cavalo de fogo só seja o nome de uma raça.

Foco…

Posso usar isso para finalizar esse assunto.

Guilherme deu um tapa na coxa, suspirou e deitou na cama de palha, esticando o corpo. 

— Ah, é muita coisa, coisas que você nunca viu, posso contar tudo, mas agora não. É o melhor que posso. Meus machucados tão doendo e quero descansar!

— Quer que eu traga alguma coisa para você? Quer água? Quer mais caldo, que tal uma folha verde para mascar.

— Acho que se pedisse qualquer coisa só traria mais problema para você. Não quero nada, só descansar, ficar bom e lhe devolver tudo que é seu. É só disso que eu preciso. — O Sábio se virou na cama, dirigindo o olhar para a parede, e contando os pequenos buracos por onde entrava a luz das duas luas daquele mundo.

— Eu voltarei mais tarde, traa, traa, mas você já sabe disso, ora — disse Alonso, depois pegou a tigela vazia e foi para a saída. — Pode ficar o quanto quiser. Só quero que fique bom, mas se quiser agradescer, quero ouvir as histórias da terra de fartura onde não há escravidão. Com isso, vou ficar muito feliz!

A simplicidade com que o Crista de Galo pronunciou aquelas palavras paralisou o Sábio.

Depois de tudo que enfrentou, ele não tinha confiança suficiente para pedir ajuda para ninguém, no entanto precisava de comida e repouso, por isso, enquanto estivesse naquele estado, seria em vão manter a pose de miserável para uma pessoa tão gentil.

Sentia-se inútil e incapaz de alterar a situação, e não queria voltar a falar sobre a Terra e as lendas desse mundo, mas havia uma única coisa que estava a seu alcance, algo que aprendeu com a pedra, e antes que o garoto do cabelo cor de fogo saísse, Guilherme se esforçou para fazer o seu melhor:

— Ei, Crista de Galo, desculpa por ser um idiota — disse, ainda olhando para a parede, mas disse com o coração. — Obrigado por tudo. Obrigado por ser gentil comigo. Eu vou pagar essa dívida: MINHA PALAVRA É MINHA HONRA! 

Alonso não se importou por ele estar de costas e não olhar para ele, porque sentiu que suas palavras eram verdadeiras, então sorriu e foi embora.

Guilherme suspirou aliviado. Estava gostando daquele garoto e era algo perigoso.

Admitir para si mesmo que sentia admiração por ele não o deixava nem um pouco emocionado. Ao contrário, aumentava sua apreensão, pois poderia significar uma barreira à sua jornada. Nesse mundo tudo deve ser deixado para trás.

Se eu me envolver com sua história, garoto…

O que terei que abrir mão da minha?

A comida pesou no seu estômago, somando com os últimos dias que fez de tudo para não dormir, se tornou impossível evitar o sono.

— Pedra, o que há de errado com ele? Aquele idiota não entende que se continuar com essas ideias vão machucar ele também.

— Você não ouviu a história? Já machucaram, só que ele não vai desistir por causa da dor.

― Eu sei que você queria saber mais da história dele, mas não posso arrastar o garoto para esse inferno.

― Ora, que isso, está preocupado com alguém, Sábio Miserável?

― Não… não é isso, pedregulho, você sabe.

― Couro de burro quando foge, eu entendo suas razões, mas não quer dizer que é o que sente.

― Fiz certo?

― Certo ou errado, ainda vamos descobrir. Porém, independente do que faça, não poderá livrá-lo da estrada que Valhalla traçou.

Eu posso!

Eu vou!

Essa maluca não irá ferir mais ninguém!

— Ele quer viajar pelo mundo, você pode convidá-lo para entrar para o nosso bando — continuou a pedra. — Alguém para conversar, em vez de uma pedra velha, poderá ser bom para você. Há coisas que só um bom amigo pode fazer.

Sonolento, Guilherme já não conseguiu dizer mais nada.

Um companheiro.

Um amigo.

Para mim?

Quem iria gostar de um miserável?

Impossível!

Acomodando-se na cama de palha, e com o corpo enrolado na manta, Guilherme acabou adormecendo com a palavra amigo a povoar os seus pensamentos. Por causa disso, ele havia esquecido que nas distantes terras dos sonhos havia um amigo com muita saudade dele.

◈◈◈◈◈◈

A Garota e o Lobo

Já era tarde da noite, estava muito frio, a grande lua vermelha brilhava no céu, a lua azul estava encoberta por nuvens.

Cuidadosa com os perigos noturnos, Felipa saiu da casa para jogar restos na caixa de lavagem dos porcos, no entanto, estava pensando no encontro que teve com Guilherme mais cedo, dessa forma a sua reação neste momento foi uma surpresa até para ela mesma.

Por isso, numa noite tão gelada, ela optou por passar por trás do chiqueiro, mesmo sendo um caminho mais longo.

Ao ouvir a conversa animada dos meninos, parou por um momento, e mordiscou os lábios tão forte que sentiu um leve gosto de sangue.

A garota não queria ser como aquele miserável e ficar ouvindo a conversa dos outros, eles estão se dando bem? Então continuou seu trabalho, Não dá para entender o que Alonso viu naquele caolho, seus pensamentos pareciam ter vontade própria, é claro que ele é perigoso!

Ela tinha medo que algo terrível pudesse acontecer com o irmão, já que ele tinha o coração bondoso e a cabeça cheia de sonhos impossíveis, por isso tudo que mais queria era que o Sábio Miserável fosse embora para longe da sua família, para ele chegar no estado que chegou… o que você enfrentou, garoto? Ela lembrou das palavras de Guilherme hoje de manhã, espero que você não esteja cometendo um erro, meu irmão, ao se aproximar dele.

Num momento, ela teve um lampejo de realidade, não posso ignorar sua intuição, irmão, será que esse miserável é a resposta para seu problema? Ela mordiscou os lábios, Isso significa que chegou a hora de você ir, só… será que posso confiar nele?

Os pensamentos de Felipa foram interrompidos quando viu, parado próximo do seu amado canteiro de ervas, um grande lobo cinzento. O bicho ficou a encarando, estudando-a, os olhos vermelhos eram terríveis, e depois de alguns segundos, a fera fugiu para a mata, desaparecendo na escuridão.

 ― Um lobo solitário, que estranho.

O Sábio Miserável não havia contado que estava sendo perseguido por uma matilha de lobos cinzentos, então não havia motivos para ela temer aquele lobo.

Apesar da fera medonha rodando o sítio, a garota deu de ombros e continuou o trabalho, já que era normal encontrar todo o tipo de criaturas vagando nas terras da família, até tinha ouvido de outros camponeses que havia uma onça dente-de-sabre caçando pelo bosque.

― Será que foi atacado pela onça? Por isso o pobrezinho perdeu a matilha? Não irá sobreviver sozinho! — Finalizou a análise daquela situação inusitada.

Após terminar a tarefa, voltou para dentro de casa.

...



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