Volume 1 – Arco 2
Capítulo 41: O Sábio Miserável Não Consegue Esquecer
Guilherme evitou grosserias durante toda a conversa e só ficou preocupado quando Alonso já havia parado ao seu lado. O garoto tinha um olhar distante e ele nunca saberia o que se passava naquela cabeça vermelha.
Eu não deveria ter perguntado sobre a vida dele.
De onde ele era.
Isso não faz diferença agora.
Bem… toda a informação é importante.
Será que errei?
Se ele se irritar não vai ser legal.
Mas não havia outro jeito.
Pelo menos não parece bravo…
É outra coisa.
Obcecado, entretanto, pelo desejo de redimir seus erros, ficou em silêncio e observou-o com atenção. Não viu nem sombra de nada perigoso. Era melhor esquecer tudo e se recuperar para deixar esse lugar, onde aprendeu que as situações são mais complicadas que parecem, banido de sua mente o Crista de Galo e seus dilemas morais.
Alonso sentou-se na cama, no lado do Sábio, mantendo a tigela de caldo apertado nas mãos. Ele suspirou e depois disse, um tanto saudoso.
— Minha terra natal é muito longe, muito mais que consigo lembrar, nem sei calcular o tanto. — Alonso bebeu o caldo e terminou de comer, então continuou. — As planícies de fogo!
Um garoto com o cabelo cor de fogo que veio de um lugar com nome de fogo.
Eh... que original!
— Guilherme, é uma abertura, fala sobre LAST DOWNFALL, também não esqueça de perguntar sobre o deus Sjel, precisamos saber se esse bom garoto é um dos heróis. Não o quero como nosso inimigo, sua morte seria muito triste.
Morte?
Droga, pedra, já falei que não quero mais saber disso.
Mas você não vai me deixar em paz.
Dessa vez não vou ignorar seus palpites.
Se esse garoto for um herói, não posso ir direto ao ponto, tenho que contornar.
Nossa, será que não entendeu isso?
Ele tá mais ansioso que eu.
hum…
— Planícies de fogo, hum, já ouvi falar, é terra de um povo fervoroso. Você é uma pessoa de fé, Alonso?
— Fervoroso, fé, você diz acreditar nos deuses? Traa, não! Não vou me dedicar a seres que não ligam para as dores das pessoas. É certo que eles nem existam, é perda de tempo acreditar nisso.
— O que? Como assim? Não entendo, ouvi você clamar pelo deus Sjel várias vezes.
— Sjel é o deus da minha terra natal, o deus da minha mãe, o deus que ela clamou enquanto morria. Ele não a ajudou e não irá me ajudar, não devo nada a ele. No entanto, é a cultura do meu sangue, dos meus antepassados, minha mãe acreditou nele até o fim… só presto respeito para me sentir mais perto dela.
É um cabeça de vento.
Isso é acreditar, idiota.
Mas posso me aproveitar dessa falta de lógica.
— Você é perspicaz, garoto, faz muito bem não dedicar esperança aos deuses, tudo neles é falso!
— Por que? Você também tem algum deus na sua linhagem? Enquanto você dorme, ouço clamar pelo deus Skog
— Eu, não… não, só digo isso, bem, deixa pra lá, Skog também é o deus da minha terra natal, mas me conta, a lenda LAST DOWNFALL, é da sua terra também?
Alonso sorriu vendo o Sábio se enrolar todo, mas se empolgou ao ouvi Last Downfall, pois entendeu que o Sábio estava disposto a falar o que sabia, por isso poderia falar mais abertamente sobre seu grande sonho, e depois de colocar a tigela vazia no chão, perto do é da cama, disse sorridente:
— Traa, você sabe onde fica? Sou eu que vou encontrar esse tesouro!
— Vá com calma, amigão, oh, não sei onde fica, até porque isso não existe. Só queria saber sobre a origem dessa lenda tola.
Alonso sorriu e o Sábio notou que era um sorriso controlado, mas que tinha esperança, que carregava um fardo muito pesado sobre as costas.
Ele sorriu de volta, mas se controlou para não lhe indicar nada, temendo que fosse desencadear algo que não pudesse controlar, no entanto, precisava de um gancho para continuar a conversa.
— Um tesouro que pode realizar os desejos das pessoas — disse, virando o rosto. — É uma bela lenda, no entanto, algo assim nunca poderia existir. Só idiotas acreditam nela.
Os olhos de Alonso brilharam forte e ele disse confiante: — EU SEI, MAS QUANDO ENCONTRAR VOU PROVAR QUE AS PESSOAS NÃO SÃO IDIOTAS POR ACREDITAR NOS SEUS SONHOS. VOU DESEJAR UM MUNDO SEM ESCRAVIDÃO, SEM FOME, SEM MEDO. VOU TRAZER MINHA MÃE DE VOLTA. VOU CRIAR UM LUGAR BOM PARA O SENHOR ALIAM E DONA MIA, E ARRANJAR UM BOM MARIDO PARA FELIPA, UM FEIOSO… — Terminou o discurso rindo.
— Oh, que nobre, porém a tristeza será maior que a razão — lamentou a pedra. — Last Downfall só poderá realizar um desejo!
Guilherme descansou os ombros com um suspiro de frustração.
Alonso se levantou da cama e foi até o baú velho, o abriu e pegou algo, em seguida voltou para perto do Sábio e estendeu para ele o que tinha apanhado.
— Toma, Felipa encontrou isso nas suas roupas, encontrou mais coisas, mas ela achou interessante e disse que vai trazer depois — ele falou de forma inocente, porém ansioso demais.
Guilherme não podia ver direito, mas reconheceria aquelas manchas de sangue em todo lugar, na verdade, podia senti-las com sua carne, tanto que seus pelos se eriçaram todos. Ele sentiu outra vez a colher de ferro incandescente dentro da cavidade vazia do olho esquerdo.
— Eu não sei ler, mas Felipa disse para mim que é um bilhete de agradecimento. Traa, você conhece um açougueiro, isso é muito bom, pode arranjar carne? Um pouco de osso para dar gosto ao caldo seria bom demais.
Guilherme arregalou o olho bom, e foi como ver, naquele instante, a colher tão vermelha, tão quente, quanto a língua do demônio.
Ele apanhou o bilhete e se encolheu, tremendo, buscou um canto na cama para se esconder, só que não tinha lugar nesse mundo que pudesse enfiar essa dor que lhe rasga o peito.
— Hhe… hhe… hhe… nnão eesqueça… nnão eesqueça… vvão tte mmachucar mmais…
— O que foi? — Alonso ficou confuso por causa do balbuciar fraco, e nunca havia visto uma pessoa se encolher daquela forma, somente viu algo parecido, nos porcos, quando ia matar algum dos animais para alimentar a família. — O açougueiro não é um amigo seu?
— Não quero falar!
— Hã, o que foi? Você trabalhava lá, e um dos animais machucou seu olho? Foi isso? Acidentes acontecem, não precisa ficar com vergonha. Veja, ele até fez um bilhete de despedida. Escreveu que poderia voltar, ele gosta de você.
Alonso tinha suas feridas, mas até ele não foi capaz de imaginar o trauma que o Sábio encolhido carregava dentro do coração.
— NÃO É NADA, NÃO QUERO FALAR DISSO! — Não aguentando mais remoer as lembranças, gritou, esperando que a imagem daqueles homens terríveis desaparecesse da sua mente. — ME DEIXE EM PAZ!
Ao pegar outra vez o bilhete, e com as palavras de Alonso em sua mente, foi impossível ignorar o horror que Last Downfall significava, e foi como cair dentro de um poço escuro e frio.
Amargura e sofrimento invadiram seu coração.
Alonso falou mais alguma coisa, continuando sem entender aquela reação, mas o som das suas palavras começaram a entrar num vácuo, assim desaparecendo, e não alcançaram os ouvidos do Sábio Miserável.
Enquanto o Crista de Galo tentava romper a muralha que se ergueu entre eles, Guilherme buscou a fonte de sua agonia, passando a mão sobre a cavidade vazia do olho esquerdo. Foi como se o seu corpo fosse tragado para as trevas.
— Hhe… hhe… vvenha ppara mmim…
— Guilherme — chamou a pedra —, não olhe para as trevas.
O Sábio não ouviu sua besta, a escuridão era densa demais, então sentiu uma mão forte e quente agarrar o seu braço, em seguida veio as palavras: — Ei, Guilherme, você tá bem?
Foi Alonso que agarrou o braço dele.
Ele viu que o Sábio estava agindo estranho e pensou que estivesse se engasgando por causa do caldo, que de fato, o desta noite, dona Mia errou a mão e tinha pedaços de verduras grandes demais.
— Sim — respondeu, confuso, e passando a mão pelo cabelo. — O que você falou sobre Last Downfall?
— Traa, você é estranho, pensei que tava morrendo. Eu falei que Last Downfall não é só uma lenda. Eu vou provar quando o encontrar!
Guilherme apertou o bilhete do açougueiro entre os dedos, e então lembrou quando reencarnou nesse mundo e tinha a mesma esperança perigosa, a mesma ilusão idiota, que poderia ser o grande herói desse mundo.
Para logo depois descobrir a verdade, sofrer, e ter o olho arrancado a ferro quente.
— O mundo é grande, só que não é grande o suficiente para mim, eu vou conseguir encontrar! — Alonso largou o braço do Sábio afastando-se, ainda assim, transmitia uma onda de esperança capaz de irradiar todo o chiqueiro.
Guilherme enfiou o bilhete entre as palhas da cama, e focou no que o Crista de galo estava falando, sendo que a revolta embrulhou o seu estômago,.
Para ele foi horrível, por isso de forma alguma iria deixar que sua tragédia se repetisse outra vez; muito menos podia deixar acontecer com uma pessoa boa, a mais boa que conheceu em toda vida, as duas vidas.
— Eu sei que se a gente se unir, poderemos...
— Basta! — Guilherme interrompeu o deslumbrado garoto de cabelo cor de fogo, que ficou surpreso. — Se pudesse ver tudo o que vi, você aceitaria mais fácil o que vou falar.
— Guilherme, o que está fazendo? — perguntou a pedra. — Ele ia contar tudo.
O Sábio se manteve firme, com o olho bom penetrante e a cavidade do olho esquerdo latejando, ainda mais entregue às trevas.
Pedra, eu sei que não sou de ouvir seus avisos.
Mas dessa vez é diferente, não vou deixar esse garoto bocó ser arrastado para esse inferno atrás de uma maldita lenda.
Ele tem uma vida, tem uma família, pode ser feliz.
Desculpe, garoto, eu já tenho informação suficiente de você…
Por isso minhas palavras vão doer bastante!
Guilherme saiu da toca do coelho com um aura sinistra.
— Last Downfall é uma mentira. É uma lenda falsa que os mercadores de escravos usam para afastar as pessoas de suas famílias, para matar suas mães, para depois capturá-las, e assim transformá-las em escravas. Existem muitos idiotas como você, sonhadores que desperdiçam a vida atrás de sonhos mentirosos. Vocês são os culpados pela morte das pessoas que amam.
Guilherme passou a mão pela áspera cicatriz no rosto e depois terminou o movimento enfiando o dedo dentro da cavidade do olho esquerdo, fez tudo isso numa angustiante lentidão, então abriu as pálpebras para que Alonso pudesse ver a completa escuridão.
— Se insistir nesse sonho absurdo, se for perseguir essa mentira, terá tudo arrancado de você, como tive meu olho arrancado de mim!
Perdido nas palavras horríveis do sábio, Alonso ficou arrepiado ao se lembrar da morte da mãe, e do desejo que a consumiu até o último suspiro. Ela foi escravizada, foi tirada de sua terra, foi tratada pior que um animal, mesmo assim nunca deixou de sorrir, dizendo que os sonhos poderiam salvar as pessoas.
Ele tinha consciência dos perigos do mundo, porém não conseguia esquecer a dor que invadiu o coração quando fez a promessa junto da despedida final, deixando a mãe para trás dentro de uma poça de sangue.
— Last Downfall só será uma mentira quando cruzar o mundo de uma ponta a outra, e não encontrar nada. — Alonso não tremeu a voz, e mesmo com tudo que o Sábio havia dito, ele não se permitiu desanimar. — Se você não quer contar, se não acredita, não ligo… eu não vou desistir de fazer desse mundo um lugar melhor para as pessoas!
Maldito Crista de Galo
Garoto idiota.
Eles vão te machucar também.
Naquele instante, vendo Alonso assim, tão determinado, Guilherme concluiu que precisava inventar outra história para distrair sua atenção, fazer ele pensar em outra coisa, porque percebeu que aquele idiota era do tipo de pessoa que quando colocava algo na cabeça, não iria desistir até conseguir.
Você é do tipo de gente que mais odeio!
...