Volume 1 – Arco 2
Capítulo 40: A Mágoa do Sábio Miserável
Apesar da horrível experiência nesse mundo de monstros, Guilherme custou a vencer a vertigem ao encarar a verdade.
A cavidade vazia do olho esquerdo era a prova que não existia bondade nessa terra.
No entanto, foi um choque descobrir que ele era o motivo da discussão entre Alonso e a família dele, e pior ainda foi constatar que não havia mais nada a fazer, a não ser ir embora da casa dos porcos.
Eu continuo sendo um peso para as pessoas.
O que há de errado comigo?
Na Terra, quando percebeu que era um fardo para a família, não suportou mais sorrir para as pessoas à sua volta, e com as piores desculpas do mundo, saiu da casa dos pais.
Por que seria diferente agora?
Assim que refletiu, sozinho, deixou-se cair, acabado, na cama de palha, abalado demais para conseguir dormir. Na verdade, tinha medo demais de fechar os olhos e encontrar Skog.
Não queria dormir de forma alguma.
Não posso ficar aqui.
Não posso dormir.
Não posso ir embora ainda.
Eu nunca fui livre.
O que vou fazer?
Droga!
Não conseguiu encontrar uma resposta para a sua situação e isso, para ele, era a pior coisa que poderia acontecer.
— Pedra, não sei o que fazer, tô tão perdido.
— Para encontrar um novo caminho, primeiro precisa se perder. Não é uma coisa ruim.
— Essas ladainhas, pedregulho idiota, não funcionam comigo. Você também ouviu a discussão, o que você diz sobre isso? Não podemos ficar mais nesse lugar.
— Você não é obrigado a ficar em lugar nenhum, mas ainda não está recuperado. Não é fraqueza aceitar a bondade das outras pessoas.
— Eu sei como isso termina. Não quero dever nada a ninguém. Vou embora!
— Sua dívida já é enorme. Em todo caso, se tem que ir, vá!
— Sim. Digo... não vou ficar, mas… — A garganta do Sábio Miserável estava seca e ele precisou limpá-la com saliva, antes de continuar a falar: — Podemos decidir isso amanhã.
Guilherme não queria aceitar, mas seu corpo ainda tinha dores e muitos tremores, e enfrentar a estrada nessa condição seria arriscado demais.
Amanhã vou encontrar uma solução…
Tenho que encontrar!
Já era tarde da noite, e ao se ajeitar melhor na cama de palha, Guilherme usou o olho bom para visualizar todo o chiqueiro, então encontrou Alonso parado na porta.
Ao vê-lo triste e abatido, trazendo nas mãos uma tigela de barro e um olhar distante, não foi difícil adivinhar que aquela discussão se estendeu um pouco mais, e para poder trazer a comida lhe custou caro.
— É bom te vê de olho aberto.
— Eu não sou de dormir, Crista de Galo!
— É, eu sei, também tenho o sono fraco. Peço desculpas, hoje sua comida demorou um pouco mais. Pode comer agora, está muito saborosa, enquanto eu vou me sentar junto dos meus amiguinhos.
Os porcos se reuniram em volta do garoto de cabelo cor de fogo, enquanto ele caminhava para entregar a tigela para o Sábio.
Guilherme estava deitado, mas começou a mover o corpo para poder se levantar, e muito rápido conseguiu se posicionar sentado. Ele continuava relutante, não querendo caridade, ainda mais uma caridade forçada.
No entanto, pegou a tigela de barro. Alonso ia para seu banquinho.
— Espere… — disse Guilherme, dividindo o caldo nas duas tigelas menores. — Tem comida demais, vamos dividir, quero que coma comigo.
— Traa? Vai dividir comigo? — Alonso ficou surpreso, mas logo espantou a tristeza do rosto e sorriu. — Isso, vamos comer juntos. — Ele pegou a tigela. — Eu sabia que você não é tão miserável como a Felipa tava falando.
Guilherme lembrou das palavras da garota, lembrou da discussão, e um nó surgiu em sua garganta.
— Acho que não — ele disse, olhando os pedaços de vegetais boiando no caldo —, porque essa cama e a comida são suas.
— O que? Não. Que conversa é essa? Minha cama é dentro da casa, e já comi, só vou comer agora para fazer companhia, traa, assim a comida fica mais gostosa.
— Ora, por favor! — Guilherme explodiu. — Eu escutei a sua discussão com o senhor da casa. Você é um escravo?
Guilherme não podia ver, mas a expressão triste voltou para a face do Crista de Galo, que ficou mudo por um segundo, então bebeu um pouco do caldo, e depois de engolir, respondeu:
— Não! Sou um homem livre!
— Não acredito! — Guilherme elevou a parte esquerda do rosto e a cavidade escura deixou o clima pesado. — As pessoas que não podem seguir as próprias vontades, de uma forma ou outra, são escravas. A dívida de gratidão é a forma que escravizaram você?
— Não sabe o que está falando. É por causa da minha gratidão que sou livre. Devo tudo a eles. O senhor Aliam e a senhora Mia me criaram como filho, e junto de Felipa, somos uma família.
— Famílias não colocam os filhos para dormirem junto dos porcos.
— Tá errado, quando há amor, não quer dizer que haja espaço.
As palavras família e amor, juntas, para o Sábio Miserável foram indigestas, já que na Terra ignorou muito menos por causa de suas deduções egoístas.
Só que ao lembrar do dinheiro que a mãe colocou em sua mochila, mesmo depois de ter sido um grande miserável quando abandonou a casa dos pais, fez seu coração doer como se fosse alfinetado.
Os filhos nunca serão melhores que os pais.
Doeu muito, mas ele ignorou, forçando-se a olhar para frente na sua nova vida.
Quando eu voltar para a Terra, vou poder agradecer tudo que eles fizeram por mim.
Sim, eu vou!
No entanto, por mais que tentasse se convencer que o único sentimento importante era a gratidão, não conseguiu ficar satisfeito.
Ele insistiu na ideia que todas as pessoas tinham o direito de serem livres das amarras da família, e que apenas os filhos poderiam saber o que era melhor para suas vidas.
Dessa forma se tornava justificado as pessoas fazerem o que fosse preciso para alcançar seus sonhos, ainda assim, uma voz no seu interior sussurrava-lhe:
Você é um miserável!
— Se é verdade o que diz, e essa gente é sua família, então não deve nada para eles, digo… — Guilherme precisou se esforçar para terminar a frase — pode fazer o que quiser.
Alonso sorriu, e todo aquele peso que demonstrou por um momento havia desaparecido, então bebeu mais do caldo, em seguida disse:
— Quando não há gratidão, não há coração e não haverá esperança. Que tipo de filho irá virar as costas para a família?
— Coração puro e determinado, o coração de um herói — comentou a pedra. — Fabuloso! Você tinha que ser assim, Guilherme.
Pedregulho desgraçado!
Fica me comparando com esses idiotas.
Primeiro foi o otário do Liel, o sujeito que odeia escravos.
Agora é com esse cara molenga.
Será que ela ainda acredita que vou virar um herói?
Mas...
Meus pais? Meu irmão? Minha família?
Que tipo de filho dá as costas à sua família?
Um filho miserável!
Eu nunca serei um herói.
Guilherme olhou o caldo dentro da tigela, era o mesmo ralo, sem cor e com pedaços de legumes boiando à deriva, mas o gosto era fabuloso como sempre.
O toque de amor?
Perdido na curva do que é e não é, ele lembrou da sua vida na Terra com os pais e irmão.
Lembrou das tardes de domingo, quando o pai levava-o junto do irmão na velha bicicleta para a lagoa, e ficavam pescando até anoitecer.
“Escutem, meninos, não é difícil, é só amarrar a minhoca perto do gancho e lançar na água”, o pai dizia.
Por mais que Guilherme tentasse se lembrar de todas as falas, ele não podia, porque nessa horas estava distante, jogando pedras nos patos, por causa de alguma birra casual.
Naquela vida, ignorar o sentido de família também não era fácil, nem divertido.
Houve momentos em que cogitou até em abandonar os sonhos dos jogos e desistir de escrever uma grande novel; a história de um mundo mágico que imaginou com tanto empenho junto do velho amigo.
Embora nunca tivesse força ou motivação suficientes para concretizar esses sonhos, a ambição de criar uma forma de escapar daquela realidade nunca deixou o seu coração.
Entretanto, desistir cedendo aos apelos da família era doloroso demais: “você precisava desistir dos sonhos idiotas”, “você precisaria de um emprego de verdade pra poder comer”, “você tem que ser uma pessoa como todas as outras”.
Mesmo a melhor casa não é capaz de abrigar todos os seus moradores.
Por isso fez de tudo para se manter distante, tornando-se ainda mais revoltado e assim, foi tragado pelos desejos egoístas.
No entanto, a situação se tornou insustentável depois de outro fracasso pessoal, no qual ofendeu e fez acusações terríveis aos pais, então ele decidiu sair de casa para viver a própria vida.
Mesmo com o dinheiro da minha mãe…
Eu não durei dois meses!
Guilherme nunca parou para pensar a respeito disso, além de sentir arrependimento, mas vendo a determinação de Alonso, vislumbrou o orgulho de um bom filho.
— O problema com as fam… — Guilherme interrompeu a própria frase. — Não é isso. Uma vida grata é uma vida sem arrependimentos. Você é uma boa pessoa Alonso. Sabe… — Olhou para o rapaz de cabelo cor de fogo e voltou a encarar o caldo. — Você é uma pessoa melhor do que eu, anda, vamos comer antes que esse caldo congele.
— Não é verdade, você não é menos que ninguém. Posso dizer isso porque sei reconhecer as pessoas, e nunca erro!
Guilherme ficou em silêncio.
Dessa vez, você errou!
— Dona Mia é tão atenciosa, ela colocou uma quantidade maior de propósito. Certo, vamos nessa. — Alonso engoliu uma grande quantidade de caldo. — Traa, que delicia.
— Claro, muito gostoso. — Guilherme riu. — Qual é a sua dívida de gratidão com essas pessoas?
Guilherme voltou a tomar o caldo, ficou animado porque estava ainda mais delicioso que os anteriores.
— Eu falei que sou uma pessoa livre, não é verdade... quero dizer, não era para ser. Se não fosse a bondade do senhor Aliam e a senhora Mia, eu seria um escravo.
— O que aconteceu?
— Ah… — Alonso ficou sério, mas respondeu: — Minha vila foi atacada por uma tribo de orcs, eu e minha mãe, e muitos outros fomos capturados.
Orcs?
Isso existe nesse mundo?
É… se existem elfos, orcs não seria surpresa.
O que mais deve existir?
Dragões… ah, não, os deuses mataram todos eles.
Bem.. se os orcs são organizados a ponto de viverem em tribos, são muito perigosos.
Quando recuperar meu pergaminho preciso anotar essas informações.
Isso!
— Os orcs nos venderam para mercadores de escravos. Na época, eu tinha sete anos. Fomos trazidos para uma terra estranha, e nela fomos oprimidos. Depois de uma rebelião, o senhor Aliam me salvou, me trouxe para sua casa, e junto da senhora Mia e da Filipa, me criaram como filho.
— O que aconteceu com sua mãe?
Agora, Alonso não estava sério, estava triste.
O sábio não conseguiu enxergar os trejeitos que variaram na face do Crista de Galo, mas sabia reconhecer muito bem os sinais de quando as palavras encontraram uma barreira criada pela tristeza.
— Não precisa falar, se não quiser.
— Ah não, é bom falar dela, para nunca esquecer do seu sacrifício.
Sacrifício?
Ele também?
Outra vez não.
Será que devo perguntar sobre isso para ele?
Se ele realmente for um dos heróis…
Faz sentido um grande trauma.
Me tomaram os sonhos e um olho, mas o que esse mundo maligno tomou dele?
— Ela não conseguiu — Alonso continuou. — Foi morta por aventureiros. O Senhor Aliam prometeu a ela que iria cuidar de mim. Essa é minha dívida de gratidão. Tenho vontade de explorar o mundo, encontrar LAST DOWNFALL, voltar para minha terra. Mas não posso partir antes de pagar minha dívida, se não minha mãe irá chorar no vale dos mortos. Sabia que são as lágrimas dos mortos que criam as tempestades, minha mãe me contou quando era criança.
— Os mortos poderão descansar em paz enquanto houver amor no coração dos vivos. A honra é seu valor, nobre alma — comentou a pedra — magnífico! Guilherme, pergunta a ele o que sabe sobre Last Downfall?
— Onde é sua terra natal? — O Sábio ignorou o pedido da pedra, terminou de comer e colocou a tigela de canto.
A gente tem histórias tão parecidas.
Como podemos ser tão diferentes?
Naquele momento, dentro da sua mente soou um apito. Eram as lembranças, avisando-o que estava indo longe demais. Só que não podia parar porque dessa vez precisava continuar até o fim. Ele não ignorou os avisos da pedra, apenas precisava abordar o assunto com cuidado para não cometer erros.
Guilherme respirou fundo e encarou o garoto. Alonso, ainda com a tigela de caldo na mão, foi até a cama de palha, ao lado do Sábio, que parecia prestes a ter um troço.
Será que ele não gostou?
Fui longe demais?
O que ele vai fazer?
…