Volume 1 – Arco 2
Capítulo 39.3: A chegada do Aventureiro na Vila Gurupi - parte 3
Liel estava imerso na atmosfera inóspita da vila Gurupi. Porém, uma drástica mudança ocorreu na área ao redor do seu grupo.
Embora todos os aldeões continuassem distantes e antipáticos, a atenção geral voltou-se para eles. Então, uma garota, envolta até os pés numa aura pesada e sombria, se aproximou do grupo, quase correndo. Parou, porém, ao encontrar os olhares das pessoas fixos nela.
Liel a observou, curioso, enquanto ela tirava mechas rebeldes de cabelo da frente do rosto e lutava para recuperar o fôlego.
Toda a falação e olhares repreensivos dos aldeões se intensificaram, e ela, sentindo-se o centro das atenções, mostrou-se um pouco receosa, mas, recuperando-se, aproximou-se do Crint.
— Você é um aventureiro de verdade?
Por um momento, Liel foi pego pelo passado porque ela lembrava muito a sua irmã. Só que logo se recuperou e analisou melhor a situação.
A garota era nova, não mais que 15 anos. Dava para ver nela uma beleza silvestre, apesar do visível desmazelo com a vestimenta. Ela usava um longo vestido branco, com mangas curtas, em algumas partes estavam sujas e em outras rasgadas. O longo cabelo, um pouco além da altura dos ombros, penteado de forma forçada, tão escuro quanto a noite, lhe dava o ar de uma legítima camponesa.
Porém, ela tinha uma faixa verde amarrada no cabelo negro, que prendia as selvagens mechas num rabo de cavalo, é o símbolo da cura, Liel pensou, será que essa garota é uma sacerdotisa?
Até onde Liel sabia, as sacerdotisas de cura gostavam de usar uma faixa verde amarrada em alguma parte do corpo, para serem diferenciadas das feiticeiras e bruxas.
É um modo de reconhecimento estúpido, porém, as altruístas sacerdotisas de cura eram figuras de beleza exóticas, notáveis e respeitadas em qualquer vila, pois representavam a última esperança dos moribundos; um tipo de reconhecimento que as obcecadas feiticeiras e as malignas bruxas jamais teriam.
Aquela garota não tinha nada de altruísmo e parecia ser renegada por esse povo, será uma farsante? perguntou-se, mas o que ela quer?
— Eu e meus companheiros somos aventureiros! — Clint exclamou. Sua voz saiu tal como uma explosão de empolgação. — Não deixe meu cabelo enganar você, menina. Viemos da cidade de Carrasco Bonito, é uma cidade grande de se vê, e representamos a Guilda dos Heróis.
— Eu não ligo de onde vocês vieram, muito menos para o seu cabelo estúpido. Só me importa que sejam fortes. O chefe da tribo vai dispensá-los — disse a garota num tom agressivo, e depois tirou uma pequena algibeira de uma aba aberta no vestido, e despejou na mão tudo que continha nela, que era cinco moedas de bronze. — Veja, tenho bronze, quero o trabalho de vocês!
— Ora, veja só, você pensa que somos meros mercenários. Se quer aventureiros, precisará fazer um pedido formal para Guilda dos Heróis. — disse Ramsdale, depois olhou para a mão da garota. — Porém, é uma considerável quantia de bronze que você tem aí. — Ele foi irônico. — Será que com essas moedas vamos conseguir comprar comida suficiente para matar o verme que você tem na barriga, hein, Clint?
— Não sei. — O descabelado riu, lembrando dos espertinhos de lagarto língua-verde que comeu em Carrasco Bonito. — Mas seria um bom começo.
— Pois bem, meu companheiro ficou interessado. — Ramsdale encarou a garota. — Então, primeiro me diga o porquê quer contratar um grupo de aventureiros?
Fazendo um esforço para se manter distante, Liel observou Ramsdale lidar com a situação, tentando imaginar o que levou aquela garota a procurar os serviços de aventureiros. Procurou concentrar-se nos aldeões que continuavam a lançar maldizeres sobre a garota.
Mesmo depois de tudo o que o Regente havia falado, a presença dela naquela vila incomodava muito mais as pessoas que a própria presença do grupo Manoplas da Força.
A garota olhou de um para o outro e desmoronou-se chorando sob as vistas dos dois. Ramsdale e Clint entreolharam, sem saber o que fazer. Em segundos, a agressividade dela desapareceu e ela transformou-se numa criatura frágil, digna de lamúrias.
— Eu quero que vocês me ajudem a matar um monstro — disse entre soluços. — Quero matar a Varcolac!
Ao ouvir o nome da maldita raça de vampiro, o corpo de Clint estremeceu, porém, dessa vez conseguiu se controlar, pois Liel e Ramsdale estavam com os olhos arregalados sobre aquela garota.
— O que você sabe sobre isso, menina? — O loiro entrou na conversa, só que de uma forma descompassada, que fez a garota recuar um passo para trás.
Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, uma mulher se aproximou deles e disse: — Lisandra, não perturbe os forasteiros com suas fantasiosas aventuras.
A menina encarou a mulher, enxugando os olhos, reparando a aparência, e voltando para o ar de agressividade. — Eu vi os olhos violetas. A morte do meu pai não foi uma fantasia! — Ela disse, sem desviar o olhar.
Liel havia esquecido como as meninas são criaturas capazes de mudar os humores como a noite é capaz de mudar para o dia, e aquele olhar intenso da garota lhe fez lembrar da irmã. Suspirando, respirou fundo e começou a assistir o embate feminino, ela me olhava dessa forma quando estava com raiva, ele pensou.
Mas de forma inevitável, seu olhar acabou caindo sobre a mulher que tentava conter a garota, acabando com o foco de sua concentração naquele momento. Controlando os instintos masculinos, passou a mão pelo cabelo loiro e analisou a bela figura feminina.
A mulher vestia-se com harmonia e simplicidade, usando roupas que refletiam o estado espiritual e a conexão com a natureza, representando uma autêntica sacerdotisa da cura. Ela usava um longo vestido de linho branco, que caía em pregas suaves até os pés. O vestido tinha mangas compridas, que fluíam na leve brisa como as asas de uma borboleta.
Nas laterais do vestido tinha os bordados dos símbolos antigos, que representavam os elementos da natureza e a cura. Uma faixa verde dava voltas em sua cintura, se fechando num delicado laço, que lhe dava um toque de cor e contrastava com a brancura do linho. Em seus pés, ela usava sandálias de couro macio.
Além da modesta vestimenta, ela trazia na mão um cajado de madeira, que tinha gravados os símbolos de remissão e proteção da antiga linhagem da magia de cura.
— Basta, Lisandra! Venha comigo, você precisa de um banho. Os abutres já estão incomodados com seu cheiro. Esse não é o aspecto de uma noviça que irá se tornar uma sacerdotisa! — Ela viu as cinco moedas de bronze na mão da garota. — Eu lhe dei esse bronze para que não morresse de fome, não foi para financiar seus devaneios.
— Eu não quero nada seu! — Lisandra jogou as moedas na mulher, que precisou usar o cajado para proteger o rosto. — Eu prefiro morrer de fome do que ser como você!
Em seguida, ela saiu correndo entre as choupanas e desapareceu.
A mulher não esboçou reação, apenas olhou para Liel e disse: — Eu rogo que vocês possam ignorar essa vergonha.
— Não se preocupe com isso, nobre sacerdotisa — disse Ramsdale. — Mas a garota falou que viu olhos violetas, e em nome da Guilda dos Heróis, é algo que não podemos ignorar.
Clint se abaixou e começou a catar as cinco moedas de bronze no chão.
Liel observou que alguns Peregrinos Dourados estavam rodeando, como se estivessem vigiando a mulher, só que não queriam se aproximar demais, esses covardes não irão se atrever a nada por nossa causa; pensou, mas o que será dela quando formos embora? Pobre sacerdotisa.
Liel entendia bem o que significava para aquela mulher a presença do Círculo Dourado na sua vila.
As sacerdotisas são as representantes da fé de um povo ao deus de seus ancestrais. Por isso o ritual de libertação da carne, onde elas teriam que negar sua crença, era tão dolorido, levando muitas a optarem pela fogueira.
— São palavras tolas, aquela criança não sabe o que diz. Essa criatura das trevas, agora, só existe nos pesadelos das pessoas. Todos sabem disso. Os nobres Peregrinos, sob a proteção do Grande Pai, já cuidaram da verdadeira fera e livraram essa terra desse mal! — afirmou a sacerdotisa, sem nenhum sinal de dificuldade.
Ao ouvir aquela afirmação, Liel entendeu toda a situação, ah… também existem as sacerdotisas que são mais maleáveis que as mulheres dos prostíbulos, disse para si mesmo, essa gente já vendeu suas almas.
— Qual era a criatura? A menina disse que viu um Varcolac, foi isso — interveio Clint, se levantando do chão e estendendo as moedas que recolheu para a mulher. — O que aconteceu?
A sacerdotisa se negou a apanhar o bronze. — Esqueçam aquela criança, pois a vontade dela não faz diferença. Ela vai se tornar uma sacerdotisa da cura e tudo vai se resolver em sua vida.
Ela suspirou, e por um momento pareceu que suas pernas bambearam, mas ao se apoiar no cajado, conseguiu se manter firme para dizer:
— Faço das palavras do Regente, minhas palavras: vão-se embora, pois não possuem assunto nenhum aqui!
Ramsdale foi até a mulher e a sustentou pelo braço. — Para uma jovem se tornar uma sacerdotisa da cura, é necessárias duas condições, sangue ancestral e possuir a magia da cura. — Ele aproveitou da proximidade para olhar direto no rosto dela e perguntou: — Ela não parecia muito feliz com essa ideia. Quem é aquela menina? Não podemos ir embora antes de saber a verdade do que ela viu!
A sacerdotisa se livrou do arqueiro, empurrando-o. Ela pareceu um tanto arisca.
— Esse assunto pertence somente a nossa vila, mas vocês estão respondendo o pedido feito para a guilda, por isso vou contar o que aconteceu, para que possam relatar para quem seja o responsável por vocês. — Então, pela primeira vez, o semblante da sacerdotisa ficou triste. — O pai de Lisandra era um caçador, o melhor dessa vila, e um homem maravilhoso. Quando as mortes começaram, foi enviado junto de um grupo experiente de guerreiros para caçar a fera...
“Ela seguiu o grupo escondida; aquela menina sempre soube usar bem as trilhas do bosque, talvez por isso sobreviveu. Uma semana depois, encontraram os corpos desmembrados do pai e dos guerreiros. Mais uma semana se passou, e a encontraram escondida dentro de um tronco de árvore, faminta, machucada e perturbada, apenas repetindo as mesmas palavras: os olhos violetas mataram a todos! Depois disso, ela nunca mais foi a mesma”
— Hum... — Ramsdale passou a mão pelo cabelo.
— Hum é rabo de rato, cabeça de couve. — Liel pressionou a mulher. — Isso não é justificativa para vocês levantarem as bundas para os malditos Peregrinos Dourados.
— Chega... por favor, já contei tudo, chega, vão embora... — Depois de contar a história, a sacerdotisa caiu num estranho abalo físico, ficando fragilizada demais.
— Liel, você não pode tratar uma mulher dessa forma, assim, nunca terá uma esposa, e nada de filhos. Será o velho solitário e maluco da vila.
— Que se dane, eu não acredito em quem abaixou a cabeça para o círculo. — Liel pressionou ainda mais a mulher.
Ao espremer a laranja, o loiro estava pronto para beber todo o suco.
— O que está acontecendo aqui, diga?
— Eu não vou tolerar a desonra na minha vila! — Um velho se aproximou. — Será que os aventureiros de hoje perderam toda glória dos antigos heróis? Não conseguem mais respeitar uma sacerdotisa.
— Quem é você? — Liel o encarou.
— Sou o ancião chefe. — O velho mostrou um medalhão feito de prata, o qual era usado como autenticação dos chefes de vilas. — E digo para vocês irem embora, pois não são bem-vindos aqui. Eu vos liberto da obrigação da guilda, a missão está cancelada!
O chefe, um velho enrugado, de corpo inclinado, estava com as mãos trêmulas, mas se manteve firme. Olhou para a mulher e disse, aparando-a:
— Tudo vai ficar bem. Só vamos sair daqui, os olhos dos peregrinos estão pesados demais.
— Eu não posso aceitar isso! — Liel bateu no cabo da sua espada. — A nossa missão é mais importante que qualquer coisa!
— Não é, aventureiro, nunca foi… — O velho olhou para a pilha de cinzas, então abalado, continuou: — Agora, vocês são inúteis. Vão embora, nos deixem em paz. O Círculo Dourado já cuidou da criatura, eles protegem as pessoas.
Ele se virou e deu suporte para a sacerdotisa.
— Venha comigo, minha filha, você precisa descansar, o ritual de libertação será em dois dias, e precisará de todas as suas forças.
A sacerdotisa despencou nos braços do velho, que apesar da idade, se mostrou viril mantendo-a em pé. — Mas a Lisandra, não posso mais… — ela disse, chorando.
— Podemos lidar com aquela menina depois, agora, os peregrinos já estão falando, e isso não é bom para você, já que é a nossa sacerdotisa. Venha, venha…
— Espere — Liel interveio —, você não pode encerrar a missão dessa forma, queremos explicações.
— Eu posso! — Afirmou o velho, com prontidão. — A não ser que os aventureiros também irão desonrar a autoridade de um ancião chefe.
Ramsdale olhava o senhor enquanto ele discutia com o companheiro, passando o dedo pelas flechas na sua aljava, que foram afiadas recentemente.
— Sua autoridade é absoluta, distinto ancião — disse ele. — Peço desculpa pelo mal-entendido gerado por meu grupo, no entanto, só queremos ajudar sua vila.
— Vocês só querem o nosso bronze!
Nesse momento, Clint estava enfiando no bolso as moedas que a garota havia jogado fora, e também, a sacerdotisa havia recusado. Não havia uma lei no mundo que dizia que era errado um homem aproveitar as moedas que ninguém mais quer, mesmo assim, o descabelado arregalou os olhos e coçou a cabeça.
— Vão embora, aventureiros, se a guilda realmente quisesse ajudar nossa vila, teria enviado ajuda antes. — O ancião respirou. — Isso teria evitado o mal que caiu sobre nós — ele concluiu, lamentando-se ao mesmo tempo: — Os dois mares!
Ramsdale travou a língua e não conseguiu dizer mais nada.
O chefe levou a sacerdotisa embora.
Liel refletiu por uma fração de minuto. Depois arrumou a espada na cintura com decisão.
— Não temos mais obrigações com essa vila. — Ele foi direto com as palavras. — Que se dane todos, vamos voltar para Carrasco Bonito!
Clint quis intervir, pois não queria ir embora antes de ter a certeza se a criatura que atacou essa terra era uma da maldita raça de vampiros. Caso fosse, precisava saber se ainda restavam mais dessas terríveis criaturas espalhadas pelo mundo. Mas não sabia o que dizer para justificar seu interesse.
Por sua sorte, Ramsdale também não estava contente com a decisão do líder do grupo.
— Você tem certeza? — perguntou o arqueiro, enquanto o loiro observava os Peregrinos Dourados rodearem o ancião e a sacerdotisa, acompanhando-os na caminhada. — Eu não fiquei satisfeito com esse desfecho para a nossa primeira missão.
— Pois se dê por satisfeito, cabeça de couve, esse é o desfecho que terá!
— Talvez... — considerou o arqueiro. — Mas não temos informações suficientes... quer dizer, o que iremos contar para a medonha Assistente da guilda? Como iremos explicar que fomos tapeados pelos peregrinos? Sem contar o boato de um Varcolac ainda vivo. Hu, a fama do nosso grupo já não é boa, com mais isso, irá declinar de vez.
Liel gostaria de poder ignorar as ardilosas provocações daquele arqueiro mais escorregadio que cobra. Mas que desculpa poderia dar?
Ele lembrou do salão da guilda cheia de aventureiros gordos, com a barriga cheia de vinho, enquanto o cartaz de ajuda dessa vila juntava poeira pendurado no quadro de avisos, se aqueles malditos tivessem respondido antes essa missão, disse para si mesmo, o avanço do Círculo Dourado pelo o mundo também é culpa da Guilda dos Heróis!
Não restava mais nada para fazer ali, já que o chefe da vila já havia os dispensados, os peregrinos já liquidaram a criatura e a própria sacerdotisa já tinha se entregado às promessas vazias do Grande Pai, no entanto, o líder olhou para seus companheiros e disse:
— É tarde para enfrentar a estrada. Vamos achar algum lugar para passar a noite, e partiremos amanhã, junto dos primeiros raios de sol!
— Ho... — comentou o arqueiro, satisfeito — essa vila é pequena, mas deve haver alguma hospedagem em algum lugar. Eu estou mais encardido que aquela esquentadinha, preciso de um banho.
— Com quais moedas vamos pagar, cabeça de couve? Esqueceu que você deixou o restante dos nossos fundos na banca de jogos?
— Ora, Clint conseguiu algumas moedas, não foi? — Ramsdale deu um tapa no ombro do cabeludo. — Bom trabalho, companheiro, dessa forma você vai resolver o problema das nossas reservas de moedas. Passe para cá esse bronze, antes que você também o devore.
— Não vamos gastar essas moedas agora — disse Clint, um pouco tímido.
— Veja só, quando é para comer os espetinhos você não se preocupa em gastar nossas moedas.
Clint segurou no bolso onde estavam as moedas. — Não vamos gastar as moedas! — Dessa vez, ele falou com convicção.
Ramsdale fez uma cara de frustração, enquanto Liel começou a vagar pela vila, olhando as pessoas e contando o número de Peregrinos Dourados que tinham naquele lugar.
De alguma forma, a primeira missão do grupo Manoplas da Força não poderia acabar daquele jeito, no entanto, se tivessem que descobrir algo, o tempo limite seria até o dia amanhecer, e independente dos planos do arqueiro sobre um banho quente, aquela noite não seria para descanso.
…