Volume 1 – Arco 2
Capítulo 39.1: A chegada do Aventureiro na Vila Gurupi - parte 1
— Eu já consigo ver algumas choupanas — disse Clint, do alto de uma colina. — Vou comer comida de verdade. Já estou urinando verde de tanto capim dedo-de-anão que mastiguei.
Ramsdale deu uma gargalhada.
— Excelente, quero água fresca — comemorou. — Realmente é um presente. Não iria aguentar mais um dia de viagem. Os calos dos meus pés tão com calos; alguém consegue mensurar uma coisa dessa?
O líder do grupo desdenhou a folia dos companheiros e foi andando na frente.
— Você fortaleceu apenas a sua cabeça de couve, meu amigo. Deixou os músculos de lado. É mole demais. Não vá arriar as pernas logo agora que chegou a nossa chance de mostrar ao deus Krig o quanto somos merecedores de sua glória.
Liel poderia ignorar as dores do próprio corpo, mas a exaltação dos companheiros foi justa, já que um mês e meio de viagem era capaz de desgastar o mais preparado soldado. Tanto, que os três alongaram os corpos de forma imediata, ansiosos por verem alguma coisa diferente, qualquer coisa que não fosse a estrada ou os capins dedo-de-anão.
Como um bom líder, ele compreendeu o desejo e a necessidade dos companheiros, mas naquele momento, as suas preocupações estavam muito além do que iriam comer ou beber.
Essa missão poderia fracassar caso suas suspeitas estivessem corretas sobre Clint não ser de confiança, essa missão não vai ser uma tragédia, pensou, disfarçando os olhares de canto direcionados para o empolgado descabelado, que havia tomado a frente da caminhada, ansioso para chegar num lugar com pessoas.
Próximos dos limites da vila, os três aventureiros andaram devagar, de olhos levantados, prestando atenção em cada detalhe, ou moita que se mexia de forma estranha.
Ao se aproximarem do portal de entrada, Liel conseguiu enxergar a situação com mais clareza e seu coração se apertou.
Havia uma estátua destruída, jogada de canto e esquecida. Por causa de alguns detalhes, sabia que era de algum deus, e por um momento ficou aliviado por reconhecer que não era a representação do deus Krig. O desrespeito chegou até nas vilas de homens simples, refletiu por um momento.
— Ramsdale, você consegue reconhecer o deus representado nela?
— Não! — Afirmou o arqueiro, olhando Clint mexer nos cacos, e quando ele pegou um pedaço do nariz, logo virou pó entre os seus dedos. — Focaram o ódio no rosto e nos detalhes, sabe o que isso significa?
— Círculo Dourado, maldição!
— Essa é a vila Gurupi? — Clint perguntou, levantando-se e batendo as mãos para tirar o pó. — Pode ser outra, como as tantas que cruzamos pelo caminho, não é?
— Espero que não — disse Ramsdale. — Caso contrário, erramos o caminho e vamos terminar chegando no grande lago salgado. — Ele olhou além do portal. — Que recepção terrível, cadê as donzelas com os jarros de água para os viajantes cansados?
— Sim... — suspirou o descabelado —, isso seria muito bom.
— Chega, vamos, só há uma forma de descobrir onde estamos. — Liel atravessou o portal, e os companheiros foram juntos.
O lugar estava vazio e as choupanas fechadas, parecia que não tinha ninguém vivendo ali, mas Liel conseguiu avistar, hora ou outra, vultos de crianças correndo pelos fundos, brincando com alguma coisa. Ele não deu nenhum sinal de que os notou, não queria parecer ameaçador, não antes de encontrar o ancião chefe da vila.
Assim que os três aventureiros adentraram o suficiente, chegaram numa espécie de praça central. O lugar servia como ponto de reunião, e lá, descobriram o motivo da relapsa recepção na entrada da vila.
Todos os moradores estavam reunidos, assistindo um grupo de Peregrinos Dourados discursarem seus ritos e objetivos.
— Bons homens, boas mulheres, os deuses não existem! O Círculo Dourado é a única luz nesse mundo capaz de aplacar as trevas, fechar a boca dos monstros famintos e guiar a humanidade para a glória. O Grande Pai sentiu suas dores e veio ajudar. O mal já não mais habita essa terra!
Liel torceu o rosto, raivoso. Segundo as atuais leis do império, aquele homem tinha o direito de blasfemar o quanto quisesse, mas sob o seu ponto de vista, aquelas palavras eram erradas. Tão erradas que temia a vingança dos deuses sobre essa gente, sobre seu grupo, e até sobre ele próprio por permitir que o desrespeito ficasse impune, se o preço não fosse a honra do meu grupo, iríamos embora, pensou, essa vila já está condenada!
— Agora que tenho a atenção das pessoas boas de coração, vou passar a palavra para a mão esquerda do Grande Pai, o Regente.
Quem discursava fez sinal, e um homem atravessou o cinturão de peregrinos que cercavam os contornos da praça. A vestimenta de todos era negra, mas a dele era diferente porque tinha detalhes em branco nas laterais. A sua pose também era diferente, mais ereta e confiante.
Havia dois pontos em comum entre o Regente e os peregrinos. Um era uma corda dourada que usavam sobre a túnica, amarrada na cintura. O outro era um pingente dourado, pesado, e com um cristal azulado no centro; esse pingente ficava sustentado com uma corrente de aço em volta do pescoço. Esses dois itens eram os símbolos da dedicação de um membro com a obra do círculo.
O regente não carregava armas, como nenhum dos outros peregrinos, só que era do conhecimento popular que debaixo daquelas grossas túnicas, poderiam sair qualquer tipo de coisa. O líder do bando Manoplas da Força só ouviu boatos, ele mesmo nunca viu o que aqueles homens escondiam por baixo das suas vestimentas pesadas.
Um Regente, pensou Liel, maldição, o que está acontecendo com esse lugar? Ele olhou para Ramsdale, que também o olhou de volta, ainda mais supresso.
A organização do Círculo Dourado era controlada por quatro forças. O Grande Pai, que era o centro de tudo, a voz absoluta do conceito humanista no mundo. Os Pilares, que representavam a ordem e a força humana. Os Peregrinos Dourados, que eram responsáveis por espalhar a luz sagrada da libertação. Por fim, os Regentes, esses responsáveis por garantir os preceitos da crença da superioridade humana sobre todas as raças.
Diferente do Grande Pai, que nunca foi visto e muitos acreditam que servia apenas de fachada; dos Pilares que eram considerados verdadeiros monstros em poder, mas que raramente se moviam; e os Peregrinos Dourados sendo meros peões; os Regentes eram temidos, porque muita vezes atuavam como juízes, por isso tinham o poder sobre a vida das pessoa nas terras onde o Círculo Dourado abriu suas asas.
Liel refletiu sobre tudo isso, e mesmo sem chegar numa conclusão, de repente, o boato da existência de um sobrevivente da maldita raça de vampiros, Varcolac, começou a se tornar possível, eliminar uma criatura horrenda seria um boa razão para trazer um Regente para essa vila distante, pensou, não, esses canalhas não se preocupam com as pessoas, eles só querem servos. Será que pode haver outra razão?
— Bom dia, bons homens, boas mulheres, apesar de que compreendo que para muitos de vocês, não há motivos para acreditar que o dia será bom. — O Regente começou a discursar. — Mas não se preocupem, o Grande Pai ouviu o apelo de seus corações amedrontados. O Círculo Dourado é a luz que combate as trevas do mundo. Não há mal que não pereça diante a glória humana. Meu nome é Sebastião, como o Regente responsável por essa vila de pessoas boas, prometo que a luz do círculo será para todos. O mal de seus pesadelos já não existe mais!
Um dos peregrinos foi até ele e lhe entregou um pergaminho, que depois de ler, continuou:
— No entanto, há tristeza no meu coração. Entendam, para todo mal, há uma razão. A vila Gurupi não passou pelo ritual de libertação da carne. Isso é um desrespeito para com a humanidade. O sangue que correm em suas veias não é vermelho?
Liel estremeceu todo o corpo. Clint, vendo a reação do líder do grupo, perguntou: — O que é esse ritual da libertação da carne?
Liel olhou o companheiro e despejou toda a agonia que estava sentindo sobre ele, o que há de errado com esse cara? perguntou-se.
— É uma festa pagã, na qual as pessoas negam os seus deuses, e são abençoadas pela luz do Grande Pai — apressou-se a responder, Ramsdale, prevendo a explosão do amigo.
No entanto, o real motivo do arqueiro tentar contornar a situação, foi que reconheceu a verdade na expressão confusa do descabelado, isso significava que de fato não sabia de nada. Isso trouxe várias possibilidades para sua mente, mas precisava de mais informações, então completou:
— Uma vez aceita a luz do círculo, se tornará renegado aos deuses para sempre. Se pensar bem, isso não faz diferença, já que eles pregam que os deuses não existem. Ainda assim, há um contraponto perverso, as pessoas que negarem o ritual de libertação serão purificadas.
Para Clint, aquilo tudo não fazia muita diferença. Quando vivia na vila dos cabelos-duros, a representação de divindades era difundida pelos velhos anciões de seu povo; quando teve que sobreviver no Coliseu de Prata, aprendeu que o único deus verdadeiro era a espada.
— Purificar? Ora, isso é uma coisa boa, esses peregrinos vão ajudar as pessoas. — O ingênuo descabelado estava caindo na armadilha preparada pelo arqueiro ardiloso. — É que tipo de purificação, com água ou óleo?
— Do tipo que usa espada e fogo. — Liel respondeu indignado com a ignorância dele.
— Eles podem fazer isso?
— Clint! — O líder do grupo não aguentou segurar, e muito menos esperar a conclusão do arqueiro, por isso lançou sem rodeios a pergunta que tinha entalada na garganta: — Quem é você?
O Descabelado arregalou os olhos, e sua vasta cabeleira se moveu um pouco, mas por sorte, uma bufada de vento na hora certa evitou problemas maiores.
— Se acalme, Liel, quer chamar a atenção dos peregrinos. Ora, Clint é o Clint, o rapaz está na estrada desde criança, não é obrigado a saber das coisas. Além do mais, a nossa missão tomou um rumo inesperado, não vamos brigar entre nós.
À essa altura, com tudo que ouviu sobre o companheiro, Ramsdale já havia criado um mapa mental com todas as direções sobre a vida de Clint. Porém, ainda faltavam pontos para traçar a história verdadeira do descabelado, por isso não podia agir, muito menos deixar Liel estourar, não ali, não entre os lobos bondosos.
— Clint, uma vez que o círculo consegue alcançar a sala real de um país, praticamente tomam controle de tudo.
Ele contornou a situação, enquanto Liel respirava para se acalmar e Clint ajeitava a vasta cabeleira, colocando-a no lugar. Por um instante, Ramsdale se perguntou como o cabelo dele ficou bagunçado tão rápido, mas não podia se preocupar com isso agora, e foi outro ponto que marcou em seu mapa mental, então continuou:
— Para piorar, o império foi dominado pelo círculo. Quero dizer, o barão da minha vila é um homem temente aos deuses, e toda vez que o ele voltava da capital, queixava-se que o império estava entregue às baratas, e o Czar estava cada vez mais fascinado com as ideias humanistas. Frequentei por muitos anos a casa do barão, e esse hábito era recorrente. Ou seja, os peregrinos podem fazer o que bem entenderem.
— Estamos entrando na quinta lua cheia do solstício da lua azul. — O regente falou entusiasmado, isso chamou a atenção dos aventureiros, colocando fim no impasse em que estavam. — O ritual de libertação da carne dessa vila será em dois dias! Estejam gratos!
Uma mulher que estava perto deles, segurando um vaso, reagiu de forma negativa ao anúncio do Regente. A pobre mulher teve um forte tremor no corpo e deixou o vaso cair, quebrando-se e criando um forte estalo.
O alto ruído chamou a atenção do Regente, que olhou na direção dela, e então viu os três aventureiros.
— Vocês não são dessa vila! — Ele apontou o dedo indicador direto para Liel. — O que desejam, forasteiros?
— E agora, o que vamos fazer? — perguntou Ramsdale para o líder.
Liel não respondeu de início, apenas encarou o Regente com o olhar destemido.
— Hoje vai ser um dia longo… — O arqueiro resmungou baixo. — Eu só queria descansar os pés.
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