Last Downfall Brasileira

Autor(a): VALHALLA


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 39: O Sábio Miserável e o Herói de Coração

Guilherme dormiu mal e quando resolveu desistir do sono,  já era dia. Não tinha ninguém no chiqueiro além dos porcos. Rolou na cama de palha por um bom tempo, esperou e ninguém apareceu.

Nessa hora, ou o Alonso, ou a Felipa já haviam trago algo para mim comer.

Bem… a Felipa não vai mais entrar aqui, ela disse. 

Mas é certo que o Crista de Galo já teria aparecido.

Beleza!

Me deixaram em paz.

É a oportunidade perfeita.

Ele se levantou. Cobriu o corpo nú com um lençol, dobrou e enrolou, de modo que conseguiu criar uma espécie de túnica parcialmente transparente, tanto que as beiradas do bumbum ficavam à mostra, mas não sabia disso.

Isso vai servir até achar minha roupas.

— Guilherme, o que vai fazer?

— Vou esticar as pernas!

— Não vá, eles foram claros que era para você descansar e não sair do chiqueiro.

— Nem adiantar azucrinar meus ouvidos. Já estou melhor. Não aguento mais ficar deitado nesse chiqueiro, já estou começando a grunhir feitos os porcos. Quero testar meu corpo, para saber se posso dar o fora, voltar para a nossa aventura. Também, ainda tenho que achar um mapa para você. Eles devem ter um em algum lugar.

— Você ainda quer encontrar o lago sem fundo?

— Quero não, a gente vai encontrar! Vou dar o fora desse inferno camuflado de isekai.

— Certo, mas cuidado, não saia andando sem um norte, acredito que há assuntos que não sabemos sobre essas pessoas.

Eu sei, pedra.

Por isso quero dar o fora o mais rápido possível!

Guilherme foi para a saída e por um momento sentiu tontura, mas conseguiu chegar até a porta do chiqueiro.

Os ossos quebrados e a maioria das feridas já estavam curados, apenas o corte no rosto e o olho esquerdo ainda estavam úmidos. Essas feridas eram profundas, mas já não doíam tanto.

Ele não veio trazer comida para mim hoje.

Será que aconteceu alguma coisa?

Será que fui duro demais ontem?

— Pedra, você acha que aconteceu alguma coisa, o Alonso não veio trazer o caldo?

— Não há como saber, talvez ele decidiu ouvir suas palavras e te deixar em paz.

Durante a noite, o Sábio refletiu sobre o interesse de Alonso a respeito de Last Downfall, mas não conseguia chegar em outra interpretação além de repetir para si mesmo: NÃO VOU SER A BUCHA DE CANHÃO DESSA HISTÓRIA!

Guilherme saiu do chiqueiro com o garoto de cabelo tom de fogo na mente, para ele, era um pensamento inusitado, irritante, porém curioso.

Ora bolas, por que um Sábio Miserável que não queria dar a menor importância a ninguém se preocupou em considerar, e até em pensar nas razões de uma pessoa estranha?

Guilherme era obrigado a aceitar que, apesar das suspeitas, Alonso havia o impressionado com uma aparência vigorosa, uma presença forte e um bom coração.

Pelo menos foi isso que aquele garoto demonstrou.

Ainda assim, ele foi um completo babaca insensível, por isso não conseguia entender por que uma pessoa como o Crista de Galo haveria de se preocupar com uma criatura indiferente e antipática como o próprio Sábio Miserável.

Não há pessoas boas nesse mundo…

Não há em mundo nenhum!

É uma loucura!

Incompreensível!

Não vou me preocupar com uma pessoa que pensa que a vida é simples.

É abobado demais.

Parece o Goku: uma mente simples que  acredita que tudo se resolve com socos e comida!

É mesmo, sabichão?

Simples?

Então por que tá tão confuso?

Sacudiu com força a cabeça na tentativa de sair da toca do coelho, e para afastar os pensamentos do estranho Crista de Galo, mordeu a ponta da língua.

O Sábio não tinha nada a ver com o jeito daquele garoto se relacionar com as pessoas, por isso achou mais sensato voltar a buscar uma forma de sair desse lugar, antes que começasse a se interessar demais por ele, de forma que não pudesse voltar atrás.

No lado de fora, viu que o lugar era uma espécie de sítio, uma choupana, muito rudimentar e precária. Ele havia chegado inconsciente, e como não havia janelas no chiqueiro, apenas buracos que não mostravam nada, não tinha ideia como era a casa deles.

Então viu o chiqueiro por completo, e um pouco afastada, havia uma casa pequena e velha, ainda menor que a própria casa dos porcos, feita de madeiras podres e teto de palha seca. Não muito distante, havia uma barraca, que decerto era o depósito de ferramentas.

O restante da área era bem grande, e toda circundada pelo bosque dos sussurros. Mato verde crescia por toda parte, uma espécie de capim, só que as hastes eram divididas em gomos e mais grossas. Lembrava pequenos dedinhos gorduchos.

Deve ser com isso que eles alimentam os porcos.

Mas… se não to enganado, no caldo, tinha uns pedaços de talos verdes.

Há… não, claro que não, o descaso deles comigo não chegaria nesse ponto.

Será?

Numa área, reservada e bem cuidada, havia um canteiro onde crescia abóboras e outras plantas que o Sábio não reconheceu.

Guilherme, apesar de ter vivido num bom sítio na antiga vida na Terra, também conheceu a pobreza, mas nunca tinha experimentado os dois conceitos unificados, pois aquele lugar estava numa condição deplorável.

Seu coração começou a bater forte.

Como não viu ninguém, continuou explorando, até que ouviu vozes alteradas vindas da casa, e ao se aproximar cauteloso, encontrou o Alonso junto de um homem e uma mulher que ainda não conhecia.

A mulher até era bonita, apesar da precariedade; cabelo escuro e pele branca, lembrava muito a Felipa. O homem, esse era feio que dói, e ainda mancava de uma perna, feito um jumento manco. 

Aquela mulher deve ser a dona Mia, a responsável pelo caldo aguado.

Mas quem é o homem?

Sujeito intragável, não gostei dele.

Deve ser o tal pai que a Felipa queria que me expulsasse do chiqueiro.

Ué, nenhum deles tem cabelo vermelho, ora, de onde veio a crista de galo do Alonso?

Vou escutar um pouco, quem sabe descubro alguma coisa.

— Espionar os anfitriões é vergonhoso — comentou a pedra.

Que se dane!

Se não quiser ouvir, é só tampar as orelhas.

Ah, não tem orelhas, então se vira, droga…

Não posso ignorar uma boa fofoca.

Guilherme se esgueirou até uma posição em que pudesse ouvir bem, porém, longe o suficiente para que pudesse fugir caso algo desse errado.

Eles estavam em volta de uma fogueira. Um caldeirão de ferro estava sobre o fogo.

Na água fervendo, a mulher jogava pedaços de abóbora, alguns temperos e muitos talos do capim que viu aos monte, crescendo no sítio, por fim, ela mexeu tudo com uma grande colher de madeira, e depois de provar, sorriu.

Sabiá!

Eles me davam aquele mato para comer.

Que nojo!

— Não entende mais o que eu falo, mulher? — O homem estava nervoso. — Já disse que não! Minha perna está ferrada, mas quem usa as calças nessa casa sou eu, e pronto!

O tom de voz do homem gelou o sangue de Guilherme, lançando-o de canto para ficar ainda mais escondido, porém, não deixou de reconhecer nos rostos deles a mesma expressão desesperada que ficou acostumado depois que viveu na cidade de Carrasco Bonito.

Ele lembrou da carroça dos desesperados e da pequena Luci.

Será que aquela menina ainda tá viva?

— Cresceu pelo no seu coração? É só um garoto, é mais novo que a sua filha, Aliam. Ele já está quase curado, logo poderá ir embora para a casa dele. É só uma criança perdida.

Estão falando de mim?

Hum… cheguei na hora certa.

— Criança, só pode está brincando — o homem zombou. — Sabe o que isso significa? Nada. Sou pior que os outros porque não quero um estranho na minha casa? Tudo isso é frescura. Eu, na idade dele, junto do meu pai e o Grande Urso, impedimos os avanços dos exércitos da Rainha Vermelha.

— Vocês não podem brigar. — Até então Alonso estava calado, mas resolveu falar ao perceber que os ânimos estavam agitados demais.

— Não se meta nisso, garoto! Toda essa merda é culpa sua.

— Agora não adianta descontar nele, Aliam.

— Ah, mulher, claro que vou. Esse moleque é mole demais. Miséria de vida, olha, não estou brigando. Só é verdade. Se não precisasse de uma muleta para ficar em pé, ainda poderia ser um soldado dos Pontas Brancas, e nossa situação não seria essa vergonha.

— Tudo era diferente, quando éramos jovens — a mulher argumentou, tímida e medrosa. — Os tempos mudaram, agora, não há mais guerras.

De repente, ouviu o som de uma tigela sendo jogada ao chão e Guilherme viu, em sua mente, a cena dele zangado atirando objetos e da mãe encolhendo-se e apertando os lábios para não chorar.

— Talvez na capital Vale-do-Aço e outras grandes cidades as coisas estejam mudando, mas nesse fim do mundo continua tudo na mesma — o homem berrou. — E a paz é tão frágil quanto membrana de ovo. Já estou cansado de ser sugado, por causa disso viver na pobreza.

Ouviu-se o som de um murro na mesa.

— Será que não entende, mulher? O Czar louco está arrancando o pão de nossas bocas, os impostos são absurdos, tudo para financiar suas desastradas incursões. Não temos comida suficiente para dividir com os outros.

— Mas é só uma criança...

— Já disse que não. A qualquer momento os Pontas Brancas podem aparecer para me levar junto com Alonso para suas guerras sem sentido. Você e Felipa vão ficar sozinhas, desprotegidas e famintas. Com essa perna, num campo de batalha eu vou morrer, e só o deus Krig sabe o que irá acontecer com Alonso.

— A gente vive no meio do nada para isso não acontecer, eles nunca vão achar vocês aqui.

— Se eles precisarem, eles vão cavar as covas dos mortos atrás de soldados.

Por um momento ficaram em silêncio, e Guilherme quis olhar, mas não teve coragem.

— Você, Alonso, é quem vai decidir — disse o homem. —  Afinal, trouxe aquele estranho para nossa casa, está dormindo num banco enquanto ele dorme na sua cama. Muito bem, de agora em diante aquele garoto vai ficar também com sua parte da comida, certo?

— Que isso, ficou maluco, Aliam? Não pode deixar Alonso sem comida por querer ajudar as pessoas.

— Fica quieta, mulher, o garoto que vai decidir. Ou ele chuta aquele estranho para longe ou vai ficar sem comida, o que vai ser?

A mulher até ameaçou falar alguma coisa.

— Eu quero que Guilherme continue se alimentando até ficar curado e possa voltar para casa dele. — A frase decidida do garoto escapou antes que ela pudesse evitar. — É isso que quero!

— Impressionante — disse a pedra. — Ele tem o coração de um herói!

— Você até já está chamando aquele miserável pelo nome…

De forma automática, com um suspiro involuntavel, o olho bom de Guilherme estremeceu, e não conseguiu respirar direito. Nem precisava pensar muito no que tudo aquilo significava.

E eu fui injusto com ele.

Pensei e tratei ele da pior forma possível.

Eu não passo de um infeliz miserável!

— Muito bem, garoto, a escolha é sua. Vai ficar responsável por ele até o final — continuou o homem. — Só não esqueça da dívida de gratidão que tem comigo. Você não pode fazer nada sem o meu consentimento.

— Vou honrar a dívida, pelo orgulho da minha mãe. Mas não posso virar as costas para quem precisa de ajuda. O que eu seria se o fizesse?

— Cauda de porco espinhoso, maldição,  Alonso. Eu prometi para sua mãe que iria cuidar de você. Tenho medo de não cumprir a minha palavra e me desgraçar diante dos mortos. Você é uma maldito coração mole.

— E eu, senhor Aliam, com tudo que enfrentei, como irei encarar minha mãe no vale dos mortos se virar as costas para os que sofrem. Não sou bom, e você sabe disso... é esse mundo que é injusto demais até para os condenados!

Guilherme tentou acalmar o coração e acalentá-lo, mas apenas conseguiu sentir mais raiva de si mesmo. Ele desejou um profundo buraco para se jogar dentro e desaparecer.

Eu não presto, eu não presto, eu não presto.

Com medo de ser descoberto, o Sábio Miserável se afastou. De repente, ficou pálido e olhou com a expressão horrorizada para Felipa que estava do seu lado.

— Não fique mal por isso. Afinal, Alonso é uma pessoa complicada e é capaz das maiores loucuras para ajudar os outros. E você é a pessoa mais miserável que já conheci, não miserável de prata, é miserável de espírito — cochichou a garota, com um olhar consolador.

— Eu sou  uma pessoa horrível  — o Sábio concordou. — Então, ele não tinha que me ajudar, por que se importou comigo?

Felipa passou a mão pelo cabelo cacheado, ajeitando uma franja que caía sobre a testa.

— Será que não ouviu nada? Ele é daqueles tipos de pessoas que têm o coração grande demais, não há espaço dentro do peito para sentimentos negativos — ela disse, só que parecia triste. — Para falar a verdade, acho que compadeceu com você. Aquele sorriso esconde lembranças terríveis. Alonso experimentou o pior do mundo.

— Eu vou dar um jeito — Guilherme declarou. — Hoje à noite, no chiqueiro, ele poderá mentir, falar o que quiser ou qualquer coisa assim. Posso até ir dormir do lado dos porcos. Eu não serei um babaca horrível.

O Sábio Miserável olhou para o bosque. Um pássaro voava preguiçoso por sobre as copas das árvores.

Não se sentia zangado, nem ao menos desapontado. Estava mais preocupado em não ser uma pessoa ruim, do que tentar entender o garoto de cabelo cor de fogo, suas razões, suas dores.

Os horrores da cidade de Carrasco Bonito significavam tanto assim, afinal de contas. 

Esse garoto idiota nunca entenderá que a dor só se combate com dor.

Não… não é minha culpa.

Me machucaram primeiro.

O pensamento lhe deu uma forte sensação de liberdade que dissipou o profundo arrependimento.

Sabia que precisava ser forte e rejeitar os sonhos e as necessidades dos outros para que essas inutilidades não atrapalhasse os seus próprios planos, porque diante da colher incandescente do açougueiro, não haverá perdão.

Não vou desviar minha aventura por ninguém.

Não!

◈◈◈◈◈◈

O Rastro da Matilha dos Lobos

Em algum lugar no Bosque dos Sussurros, um lobo cinzento se aproximou da margem do rio e farejou o lugar. O bicho levantou o focinho, fechou os olhos e inspirou profundamente, sentido os fracos odores da presa misturados na lama, nas plantas e pequenos animais que fugiam apavorados.

Então, ele baixou o focinho e começou a farejar o solo, seguindo um rastro que ali se encontrava. O cheiro de carne podre era forte, por isso teve a certeza que a presa da matilha havia sobrevivido à furiosa correnteza do rio.

Ele seguiu o rastro com cuidado, passando a cara pelo chão, mantendo–se concentrado e determinado. À medida que avançava, seu coração começou a bater mais rápido e sua respiração ficou ofegante.

A trilha seguia para dentro do rio, e o lobo percebeu que o rastro da presa continuava na outra margem. Só que parou por um momento, avaliando a força da água, as pedras, e calculou os riscos. Os lobos, como qualquer cachorro, possuíam grande pavor de água. Por isso o bicho quis dar meia volta e desistir da caçada; perguntava-se se essa perseguição valia o risco?

— Rooor, orooooor…

Um rosnado seco e assustador ecoou atrás dele. Todos seus pelos se arrepiaram.

Com um salto ágil, o lobo mergulhou na água fria e nadou com força, mantendo o focinho acima da superfície para não perder o rastro, enquanto lutava para não ser tragado pela forte correnteza. Ele nadou por alguns minutos, até alcançar a outra margem.

Ao sair da água, o lobo sacudiu o corpo para se livrar do frio, então, como uma farpada em seu focinho, sentiu o cheiro da presa, tão forte que parecia que estava olhando-a na sua frente. O rastro seguia para dentro do bosque, por uma trilha aberta em meio a vegetação, e sabia que era uma passagem usada por humanos.

Ele levantou a cabeça, e usando todo o ar dos pulmões, uivou alto. Com apenas alguns minutos, vários lobos começaram a sair da água, sacudiram os pelos e correram para dentro do bosque.

Por último, saiu da água a horrenda fera, e seu humor não era bom. Talvez a água gelada só aumentou seu ódio, não dava para saber, mas o rosto deformado se contorceu de um lado para outro, sua cicatriz ficou ainda mais evidente. O terrível ferrão de escorpião na ponta da cauda brilhou ao receber a luz do sol.

O líder olhou o lobo batedor e mostrou os dentes.

O animal, depois de abaixar a cabeça, correu para dentro do bosque seguindo os outros lobos da matilha.

A fera, sozinha naquela margem, abaixou a cabeça e farejou a lama imunda, então sentiu o cheiro do miserável, tão perfeito como se pudesse tocar na sua carne, e sua boca salivou. Em seguida correu para dentro do bosque e desapareceu.

...



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