Last Downfall Brasileira

Autor(a): VALHALLA


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 38: O Sábio Miserável Que Não Tinha Amigos

O que começou como uma invasão de privacidade para vigiar o rapaz durante as noites, transformou-se numa pegajosa agonia, e Guilherme não pôde limitar-se a aceitar essa situação vexaminosa.

Não o Sábio Miserável.

Para ele, ver Alonso sentado entre os porcos, o vigiando, trazia a torna todo o seu ódio desse mundo de pessoas malignas.

A pedra foi gentil demais quando contou sobre a história desse lugar.

Os Deuses não transformaram esse mundo no tabuleiro pessoal deles, mas os malditos criaram o inferno perfeito para suas brincadeiras.

Esse cara vai passar a noite toda me olhando?

Droga!

— Parece que ouvi a palavra FODA-SE — Guilherme adiantou-se, perdido nos devaneios dentro da toca do coelho e não percebeu o linguajar desconecto com aquela realidade. — Você vai mesmo passar a noite toda aí?

— Traa… ãh? Foder o que? Já vou avisando que é melhor tirar as porcas do pensamento? A testuda te deixou afiado mesmo.

— Ei, não seja idiota, não tou falando disso. Quero saber se vai ficar aí plantado a noite toda?

— Sim! vou passar a noite toda aqui, é melhor se acostumar com a minha cara linda!

Com Alonso entre os porcos, o longo cabelo na altura dos ombros, junto da cor vermelha viva, isso fazia a sua imagem se destacar com a luz da tímida vela, e  as peles rosadas dos animais criavam um contraste com a pele morena.

Na verdade, para o Sábio, era enfadonho aturar aquele cara metido, já que não importava o momento, ou mesmo o frio, o Crista de Galo só vivia sem a camisa, exibindo os músculos. A visão era de ferir o seu único olho bom, ou alegrar os sentidos, não dava para saber.

— Lamento ter que incomodá-lo tanto, garoto — falou num tom arrogante —, mas acontece que se temem tanto os ladrões, por que me salvaram? Eu não vou roubar seus amados porcos.

— Não é nada disso. Eu que peço desculpas, tenho que ficar, não há outro jeito. 

Guilherme sentiu um aperto no coração. A tristeza e o ódio afloraram por completo, e ele, apesar de feliz por estar com o corpo quase curado, procurou agir da pior forma possível, como se rastejasse sobre a lama imunda daquele chiqueiro.

Não importa o tanto de tempo que eu fique aqui.

Essa gente não pode me devolver o olho que pedir.

O que tô pensando?

Depois de tudo, ainda quero mais deles?

Sou um miserável!

— Traa… que calor, um momento, vou beber um pouco de água — disse Alonso, ouvindo o Sábio se contorcer na cama de palha, e se levantou, indo apanhar água num jarro de barro. — Você pode falar o que quiser, eu não ligo, não vou sair desse lugar!

— Você é tapado? Calor? Como? Tá um frio de meda e diz que tá com calor; o que há de errado com essa gente?

Alonso começou a rir.

— Droga, não há necessidade de ficar aqui, vá se esquentar dentro da casa junto daquela sua irmã bocuda!

As risadas do Crista de Galo cessaram e ele falou seco: — Não fale assim dela!

Na escuridão, com apenas um olho, Guilherme não conseguiu enxergar direito.  No entanto sentiu uma pressão o envolver capaz de esquentar o ar do chiqueiro, não era nada muito forte, ainda assim, foi suficiente para saber que o garoto estava o encarando, então disse:

— Bem, não é isso, desculpa… digo, você não precisa ficar aqui.

— Eu tenho que ficar, vou ficar… chega de falar disso, parece um porco que bateu a cabeça! Respire e seja grato por isso!

Por um momento, Guilherme se surpreendeu ao ouvir a pesada resposta na escuridão, e a presença do corpo logo à sua frente.

Eu preciso me controlar, se esse cara pirar aqui, ele acaba comigo.

É praticamente certo que não vou conseguir enfrentar esse musculoso.

Droga!

E para piorar, não consigo enxergar direito.

Mas aceitei, ele realmente estava me encarando.

Mas como?

Eu senti?

Eu senti a mesma coisa quando encontrei Dick e  Menma.

Pera, Dick e Menma, será que consigo dizer qual é qual só por essa sensação estranha?

Estou despertando algo parecido com o instinto superior?

Preciso de privacidade para analisar o fichário do jogador.

Será que algo mudou?

Bosta nenhuma, sou o miserável desse mundo, isso não acontece comigo.

Só foi sorte!

— Só quero ficar sozinho — disse ressabiado, ignorando a estranha sensação, e focando na seriedade da voz do Crista de Galo. — Não sou ladrão!

— Acredite, se a gente pensasse que você fosse um ladrão, seu tratamento seria outro. As coisas seriam muito diferentes.

Guilherme passou a mão no corte no rosto, quase cicatrizado.

É…

Eu sei!

 — Também não é bom ficar sozinho — disse Alonso,  voltando a ser amistoso. — Podemos conversar, acredito que a gente pode se dar bem. Quando disse que queria ser seu amigo, era verdade. Quer água?

— Água? Amigos? — O Sábio perguntou incrédulo, diante a drástica mudança de clima, e sentiu a cabeça girar. — Claro que não!

— Traa, que pena, essa água está fresca e gostosa.

— Não foi da água que falei, seu tapado, amante de bunda de porcos.

Droga!

Tô falando besteira outra vez.

Alonso começou a rir de forma aberta e depois de matar a sede, voltou para seu banquinho entre os porcos, se sentou e disse: — você pode me ofender o quanto quiser, não ligo, traa… é até engraçado, mas não vou sair desse chiqueiro! Terá que gostar de mim!

De todos os tipos de características das pessoas, nenhum irritava tanto Guilherme quanto o tipo daquele garoto.

Não apenas por ser um rapaz bonito, alegre e cativante, nem tampouco por achá-lo a pessoa mais gentil que já conheceu, mas principalmente porque ele era o exemplo de homem que o Sábio sempre sonhou em ser.

Aquele garoto era feliz com a vida que tinha.

Respire e seja grato por isso…

Esse cara me causou enjoo.

Qual é a dele?

O que planeja?

Tenho que ficar esperto, sem dúvida todo esse sorriso amarelado vai me custar caro, sempre é assim.

Amanhã, vou tentar andar, e como for, vou dar o fora desse chiqueiro.

Não suporto ficar aqui mais um dia!

Perdido na toca do coelho, demorou um pouco para Guilherme se refazer dos péssimos sentimentos, enquanto passava o dedo sobre a bandagem do olho esquerdo.

— Guilherme — chamou a pedra. — Pergunte o que ele sabe sobre Last Downfall.

— Droga! Já disse que não quero falar sobre isso!

— Não quer falar sobre o que? — Alonso não entendeu.

— Se trata de um problema meu, não é nada da sua conta, porcaria, além de irritante, também é intrometido — antecipou-se o Sábio, nervoso e impaciente, coçando a cabeça. — A questão é que esse chiqueiro é lugar mais fedorento do mundo.

Ele disfarçou.

Eu preciso ter uma conversa com essa pedra, sério mesmo.

Esses comentários fora de hora não podem continuar.

Parece que faz de propósito…

Pera… pedregulho desgraçado!

Alonso não compreendeu o jogo de palavras.

— Você é engraçado, Guilherme, posso jurar que estava respondendo essa pedra do seu colar. Traa, traa! — O Crista de Galo começou a rir e ficou empolgado. — Você tem razão, esse chiqueiro é fedido demais, mas logo vai se acostumar. Pensei que ainda tava com raiva de mim porque perguntei sobre Last Downfall.

Ao ouvir as palavras malditas, Guilherme caiu em si.

Sabia, sabia.

Só queria uma brecha para buscar o que quer.

Maldito!

Apesar da desconfiança, ele chegou na beira de um colapso, tentando evitar a ideia que sua realidade era uma teia grudenta, e uma vez preso, imóvel, seria impossível fugir.

O Alonso era a aranha faminta pronta para o bote.

Incrível como o Sábio Miserável, sendo um sobrevivente e desperto para a malícia desse mundo, não percebeu isso antes. Na verdade percebeu, mas no fundo não queria aceitar.

Só havia uma explicação para essa situação: seus instintos de sobreviventes, afetados pela gentileza dessas pessoas, ocultaram os sinais que a cidade de Carrasco Bonito ensinou a reconhecer.

Essa gente só quer me usar.

Vão me usar e jogar no lixo.

Vão me machucar.

Dessa vez não, dessa vez não!

— Pro inferno! — Ele disse seco. — Essa porcaria é uma mentira.

— Não... eu sei que sabe de alguma coisa, porque quando estava delirando de febre, tirando as palavras mãe, pedra, Skog; Last Downfall foram as que você mais repetiu. Vai, pode me contar.

— Já falei, que inferno, isso tudo é uma mentira, seu idiota, cabeça de fósforo.

— Guilherme, pedra dura, cabeça oca, tanto bate até que fura — interrompeu a pedra. — Perder a oportunidades para conhecer mais sobre o que não sabemos é um erro.

Não!

Além de cabeça oca, maldita, sou bom em ignorar as coisas.

Nem fudendo vou voltar a me envolver com esse pesadelo.

Não vou!

— Fósforo, o que é isso? Traa, não quis ser chato. — Tinha tristeza nas palavras de Alonso. — Não vou falar mais nisso e deixar você descansar para poder se recuperar.

— Ótimo! É tudo que quero. Ficar bom e dar o fora desse chiqueiro fedorento.

— Felipa falou que mais dois dias, já vai estar bom para partir.

Eu não aguento esse cara mais um dia.

Nem meio dia.

Nem uma hora.

Droga, ele vai passar a noite me olhando, inferno!

— Guilherme — disse a pedra. — Eu sei por tudo que passou, mas esse jovem tem um bom coração. Não desconte nele sua dor.

Dor?

Você sabe?

Não!

Você estava lá!

Melhor que ninguém era para entender que não quero cometer os mesmos erros.

— Chega, pedra — sussurrou o mais baixo que conseguiu. — Só quero ficar em paz, descansar, merda, nem consigo dormir porque tenho medo de sonhar.

Correu de olho bom pela escuridão do teto, e para não adormecer, se entregou para a pressão que sufocava seu peito. Conhecia esse sentimento bem e acreditava que poderia ignorar, como era acostumado a fazer. 

Não havia mais espaço na vida do Sábio Miserável para o arrependimento.

— Vem cá Wiubor. — Alonso agarrou o animado leitão. — Vou me recostar em você um pouquinho.

Do outro lado do chiqueiro, depois de encontrar a melhor posição entre as bundas dos porcos e a parede gelada, de forma simples e despreocupada, o Crista de Galo adormeceu sentado no banquinho de madeira.

...



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