Last Downfall Brasileira

Autor(a): VALHALLA


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 37: O Sábio Miserável Mais Tolo do Mundo

Enquanto Guilherme se encontrava absorto em seus pensamentos voluptuosos, Alonso entrou no chiqueiro, assustando-o tal qual um ratinho com a boca no queijo. No entanto, embora seus desejos estivessem à flor da pele, esses sentimentos não eram nada de se envergonhar, porque Guilherme jamais consideraria agir contra a vontade de Felipa; ele não era uma dessas pessoas imundas.

Contudo, seu coração gelou diante da cena, que era suscetível a variadas interpretações. Nos últimos dias, o Sábio experimentou o calor abrasador das caldeiras do inferno, deixando-o arisco e sempre à espera do pior.

A respeito disso, quando sentiu a presença jovial do garoto do cabelo cor de fogo, a cavidade vazia do olho esquerdo começou a latejar, o deixando confuso e assustado ao mesmo tempo.

— Traa, quando eu entro de supetão em um lugar — disse Alonso, vendo a cara de tacho do Guilherme. — Minha presença é como um amanhecer quente!

Droga!

O que ele quer?

Esse cara não é só um idiota.

Não posso abaixar a guarda aqui.

Não sou maluco, ele perguntou sobre Last Downfall.

Mas o que ele sabe? Como sabe? O que vai fazer com o que sabe?

Porcaria…

Eu preciso dar o fora rápido desse chiqueiro.

Na toca do coelho, Guilherme se contorcia tentando compreender o tamanho da ameaça que aquele garoto sorridente representava, Afinal, dentre tudo que viu na casa dos porcos, o Crista de Galo era o que mais despertava o seu interesse. A conversa que tiveram na noite anterior foi amistosa e amigável, apesar da menção do seu maior pesadelo: Last Downfall.

Com os lábios úmidos, incapaz de pronunciar qualquer palavra, Felipa estava pronta para a tragédia. Parecia que a raiva, refreada há muito tempo, queria explodir naquele instante.

Um gemido peculiar do Sábio fez a garota voltar a cabeça e só então notar que estava pressionando uma das feridas dele com força demasiada. 

Ignorando toda a situação, Alonso avançou pelo chiqueiro, trazendo a tigela de barro.

— Guilherme, vejo que tá corado, é um bom sinal! Graças ao deus Sjel, você parece melhor. Não quero saber o que tá fazendo agora, nem mesmo com essa testuda aí do seu lado, digo, mas cuidado, ele sempre traz uma tesoura de cortar talo de planta escondida no vestido, isso é, se consegue entender o que eu digo… — Ele arregalou os olhos.

— Estúpido — disse Felipa.

— Esquece isso, eu trouxe comida para vocês!

Guilherme, ainda suportando a raiva da Felipa que estava descontando nele a frustração cutucando umas das suas feridas, cumprimentou com a cabeça o garoto que se aproximava, exibindo um sorriso de canto de boca.

— Eu falei que você tem que evitar esse sujeito, Alonso, ele é má companhia. Posso sentir isso só pelo o cheiro de botão fechado que ele tem. Por causa dele, você mal dormiu a noite toda, assim vai ficar doente. Eu disse que cuidaria dele e você poderia descansar durante o dia na minha cama.

— Eu não fico doente, traa, traa, sou forte demais para ter umas febrinhas!

— Metido, cabeça dura, se continua dormindo torto e com a cara enfiada na bunda dos porcos vai ver só, além do mais, essa sua vontade descabida de ficar perto desse garoto, só vai estragar tudo, não?

— É verdade, eu sei, desculpa. Mas é empolgante. Eu quero que a gente vire amigos logo, e fazer as refeições juntos vai ajudar nisso. E você, testuda amante de plantas, não pode falar nada de mim, não comeu nada de manhã  para poder vir cuidar dele. Isso é pior que dormir torto, sabia? Traa… porque vai criar um buraco do tamanho do mundo na sua barriga e acabar com o apetite. Aqui, eu trouxe comida suficiente para nós três. 

— Eu só fiz isso porque prometi que o faria e quero que ele melhore rápido e suma de uma vez, e deixe a gente em paz!

Guilherme ouviu toda a conversa dos irmãos sacudindo a cabeça, mostrando indignação, e esperou que o Alonso abordasse o assunto principal. Ele tinha a certeza que cedo ou tarde aquele garoto voltaria a sondar sobre Last Downfall. Toda essa encenação de cuidados e preocupação só era pretexto para os objetivos sórdidos.

Eu não vou ser tapeado por essa dupla de caipiras!

Porém, para o engasgo do Sábio, Alonso não falou nada, e se concentrou para dividir o caldo em três tigelas menores, empenhado para não desperdiçar uma gota sequer.

Então Guilherme ignorou todo o resto e engoliu em seco os receios: além dessa gente tratar as feridas dele entre animais imundos, também não escondiam que sua presença era insuportável, considerando a sua existência tão enfadonha como o saco de fezes dos porcos.

Isso mesmo, grande tolo insuportável… outra vez o Sábio Miserável só ouviu o que quis, se importando apenas com as últimas palavras da Felipa, focado no que justificaria suas atitudes narcisistas.

O vitimismo é a arma mais perigosa dos egoístas.

— Eu estou mesmo com sorte. — A garota deu de ombros. — É bom que esteja bem-humorado, pois vou precisar que você me ajude com esse aqui. — Ela apontou para Guilherme, que ainda estava com a cara fechada. — Não aguento mais tanta birra acumulada num garoto só.

Os dois ajudaram Guilherme a ficar sentado na cama. Alonso entregou uma das tigelas com caldo para o Sábio, dizendo:

— Está quente e fresco. Quando entrei na cozinha, a lenha do caldeirão ainda tava acesa e dona Mia tinha acabado de finalizar a salga.

Aquele caldo era ainda mais ralo que os anteriores, e sem perceber, Guilherme fez uma breve careta de desprezo, antes, pelo menos os caldos tinham uns pedaços de abóbora boiando perdidos, nesse só havia uns fragmentos pálidos de cebola e outros temperos.

Ao entender os trejeitos do Sábio, Felipa fechou o rosto com contornos tempestuosos, já prevendo a total falta de contentamento daquele miserável.

— Espere um pouco, essa droga já é demais!

Guilherme disse com firmeza, parando de comer e fazendo com que Alonso ficasse espantado. Já a Felipa contorceu o corpo por frustração já que não poderia quebrar a tigela de barro na cabeça daquele garoto idiota.

 — Antes de continuar qualquer coisa, que tal começarem a falar?  O que vocês querem comigo? — O sábio continuou. — Eu, na verdade, não tenho muito tempo para perder com vocês, entendem? Não me leve a mal, só quero  me recuperar rápido e ir embora desse chiqueiro, mas se eu continuar comendo essa porcaria aguada, não vou melhorar nunca! E vocês nunca vão se livrar de mim, não tem comida de verdade aqui?

— Eu estava justamente tentando explicar isso para você, garoto, quando fui interrompida. — Todo o corpo de Felipa tremeu, seu olhar tinha ódio. — Quero que se afogue nessa tigela de caldo e suma da nossa vida!

Ela se levantou e foi embora.

— Espere, Felipa, não fique brava por causa disso! — gritou Alonso, alarmado.

— Por mim, papai chutaria esse garoto para fora daqui, mas você não deixaria. Você não é forte, é um grande babão idiota!

— Eu entendo, verdade, não gosto disso também, se fosse em outras circunstância eu mesmo já o teria transformado em comida de porco, mas tente entender, ele só tá quebrado de corpo e alma.

— Aff, se você quiser continuar aqui, se ainda quer ser amigo desse paspalho, o problema é seu. Eu não toco mais numa folha para fazer unguento para esse ingrato miserável! — Ela encarou o irmão. — Você, Alonso… AAAH… esquece!

Felipa saiu do chiqueiro furiosa.

— Ela não falou sério, é uma boa menina. — Alonso disse para o Sábio, que estava com o olho bom arregalado, e depois foi atrás da garota. — Se quer ficar bom e ir embora, é melhor comer todo o caldo, apesar da aparência, tá muito gostoso!

Esfregando o cabelo vermelho no topo da cabeça, o Crista de Galo também saiu do chiqueiro.

Ah, sim, claro, como é esperado das mulheres.

Primeiro, eles me tratam como bicho, depois a garota se faz de coitadinha e eu sou o miserável malvadão.

Esse cara só tá me defendendo porque quer tirar de mim informações.

Mas… será que ele falou sério que iria me transformar em comida de porco?

Ah, pro inferno todos vocês!

Logo vou dá o fora desse chiqueiro.

Diante da sensação de reprovação que preenchia seu coração e já prevendo o que isso poderia lhe custar, Guilherme armou-se de coragem e, readquirindo o controle, começou a beber o caldo aguado.

Uma coisa ele tem razão.

Eu tenho que comer essa coisa se quiser ficar bom.

O sabor forte da cebola e a essência quente encantaram o seu paladar, sendo suficiente para preencher a barriga vazia. Para ele, foi incrível perceber como essa gente conseguia colocar tanto sabor em apenas água e algumas especiarias.

Esse caldo estava ainda mais gostoso que o caldo anterior.

— Ei, pedra, o que você acha desse pessoal?

— Parecem boas pessoas.

— Como? O que? Não está vendo o que estão fazendo comigo?

Guilherme bebeu mais do caldo.

— Sim, eu vi! Da mesma forma que estou vendo você devorar  o alimento que desdenhou segundos atrás. Vi essas pessoas cuidarem de suas feridas e lhe dá comida.

— Eita, o que foi, tá nervosinho, é? Você nunca tá do meu lado.

— Você insiste em ser um tolo cego. As pessoas têm seus motivos para fazerem o que fazem, é sempre assim.

Esse pedregulho tá falando do Crista de Galo, ou dele mesma?

Hum…

Não… todo mundo tem algo no passado que não quer revelar para ninguém.

Só isso.

— Que nada, as pessoas desse mundo são malignas. Isso sim.

— Irá se surpreender!

— Dúvido, não sou o mesmo idiota, e sabe disso. Não vou cometer mais erros.

— Não consegue ver a verdade. Tenho tanto medo do que irá perder agora, porque mesmo pagando com um olho, não aprendeu nada com a lição do açougueiro.

Guilherme estremeceu e pensou no bilhete de despedida daquele maldito.

Ele foi levado pelo rio.

Ainda bem que perdi aquele pedaço de papel dos infernos.

— Você não precisa falar essas coisas — disse ele, mordiscando os lábios e passando a mão na cavidade vazia do olho esquerdo. — Por que não me diz o que não estou vendo?

— Eu estou dizendo desde a primeira vez que nos encontramos. O que não vou fazer é viver sua aventura por você, é a sua jornada. No fim, seja qual for, não poderá culpar ninguém!

— Ahh — Guilherme pegou a tigela que Felipa deixou sobre a cama, e começou a beber o caldo morno.

É melhor eu comer que deixar esfriar.

Isso!

Preciso sarar logo.

— Mas… — continuou a pedra — independente do que pensa  dessas pessoas, era para averiguar com o jovem Alonso se ele poderia ser um dos heróis. O que ele sabe sobre Last Downfall?

— Tô fora. A gente não combinou de não se preocupar com toda essa merda.

— Verdade... mas vamos, Guilherme, sei como você se sente, só que isso é uma emergência e eu acredito que você pode dar um jeito. Além disso, já conhece essa história de cor e está tão afundada nela que nem imagina. A gente poderá ignorar, mas os outros heróis não vão nos ignorar!

— Por que eles não vão me deixar em paz? Eu não quero mais buscar Last Downfall, que eles façam bom proveito.

— Você é importante nesse jogo. Eles não vão te ignorar.

— Meu, você não fala, droga, porque os babacas dos deuses vão vir atrás de mim?

— Eu não vou falar. Você de certo daria um jeito de estragar tudo. Faz mil anos, nada mais importa. Tudo que precisa saber é que Last Downfall poderá consertar todos os erros. Essa é sua única salvação!

Minha, ou a sua…

Não sou idiota pedregulho.

Você tá pior que a mulher do homem formiga.

Mas tudo bem, você não é o único que tem segredos.

O que irá acontecer?

Quem será o primeiro a abrir o bico?

Guilherme parou de comer de repente e respirou fundo como se tivesse tendo péssimas recordações. Deixou a tigela de lado.

— Droga! — murmurou o Sábio, percebendo que caiu em uma armadilha.

Durante o primeiro momento nesse mundo, e até o fim de sua jornada, é certo que vários inimigos irão cobrar sua vida, e ainda que quisesse de forma desesperada evitar o banho de sangue, não poderia ignorar para sempre.

 — O tal deus Sjel, que Alonso vive comentando — disse ele, deitando-se na cama —, pode ser o padrinho dele?

— Se esse jovem for um herói, é possível.

— Eu preciso me preocupar?

— Sjel é o deus responsável pelas almas dos mortos! É tão perverso quanto Skog.

Maldição!

E agora isso.

Não vou ter um momento de paz?

— Skog, aquele querubim deformado está atormentando meus sonhos.

— hum! — suspirou a pedra. — Eu já esperava por isso.

— Hum, sei, você tá me saindo pior que a encomenda. Droga, por que não me avisou?

— Foi você que desafiou um deus. Foi você que escolheu seu caminho? Foi você que viveu como quis. Se eu falasse, me diga, iria adiantar alguma coisa?

— Não!

— Eu sou apenas uma pedra, não posso ajudar nas batalhas, muito menos evitar que qualquer coisa lhe aconteça. Você precisa aprender a resolver seus problemas sozinho, porque seus inimigos vão explorar sua fraqueza, todas elas. Seu corpo está fraco, frágil, é importante fortalecer tanto a mente, quanto a alma.

— Quais são minhas fraquezas? Quero apagar todas elas!

— Hum… não pode apagar suas fraquezas, são parte de você como as virtudes também são, são elas que lhe tornam humano, caso contrário, seria uma casca vazia como o Skog. Mas pode controlá-las para que haja equilíbrio, e nesse momento, o egoísmo está controlando seu coração, impedindo que veja com clareza.

— Egoísmo… — Guilherme lembrou da sua antiga família na Terra. — Aquele maldito ameaçou minha antiga familia, ele pode feri-los? — indagou, contorcendo-se na cama. 

— Pode. Para começar, ele é um deus e é capaz de atravessar livremente as realidades, e com seu poder, seria simples ferir quantos humanos quisesse, das piores formas possíveis.

— Inferno! O que ele quer que eu faça? Que vá até lá? Há alguma forma de eu voltar para a Terra?

— Sim. Conquistando Last Downfall, poderá pedir qualquer coisa.

Guilherme ficou em silêncio.

Depois de tudo que viveu, não tinha ideia se poderia sobreviver nesse mundo, ou mesmo tinha esperança de encontrar Last Downfall.

Para ele, era muito mais fácil deixar tudo de lado para seguir a vida da melhor forma possível, mas poderia ignorar a antiga vida, ignorar a dor da mãe? Seu egoísmo será tão forte assim?

Eu errei ao escolher trazer para esse mundo as minhas memórias?

Ele encolheu o corpo esfregando o cabelo com as pontas dos dedos, não coçando, mas ferindo o couro cabeludo, então disse: — Minha mãe tá sofrendo por minha culpa!

— H… há outra forma.

— Qual? — Se agitando na cama, ele lembrou uma minhoca numa frigideira quente.

— O lago sem fundo!

— E onde isso fica, merda?

— Não sei, não tenho ideia o quanto esse mundo mudou no tempo que estive fora dele, preciso de uma mapa desse continente para me  localizar.

— Eu vou conseguir um mapa — disse ele, mais animado. — pedra, vou voltar para Terra!

— Hum! — suspirou a pedra, de forma pesada e longa. — Antes de poder fazer qualquer coisa, precisa resolver seus problemas. Por isso tem que descobrir se o jovem Alonso é um herói. Trazer ele para o nosso lado como um aliado, ou, destruir sua existência como um inimigo.

Empolgado com a possibilidade de voltar para a Terra, Guilherme não percebeu que tinha muito mais que alento no suspiro da sua besta.

— Pera um momento ae!— Deslumbrado, ele interveio convicto: — Já disse que não quero saber disso. A culpa é sua por não ter nenhum tipo de sensor, ou magia capaz de identificar heróis. Ainda fica escondendo informações. Tifuder, tô fora!

— Mas Guilherme...

— Pode parar. Tenho outras preocupações. Quero que você me conte tudo que a Felipa fez comigo quando estava desacordado. Ela tirou minhas roupas, bosta, só me deixou com um lençol que parecia um papel toalha. Anda, pedra, o que ela fez comigo?

— Não acredito, depois de tudo que contei, essa é a sua preocupação nesse momento?

— Ora, é claro! Vou voltar para a Terra com esse tal lago sem fundo, tudo vai se resolver, agora, só falta resolver minha situação com essa garota, sabe, não quero deixar má impressão.

Resignado, Guilherme virou-se de lado. Envolvido em seus próprios interesses, ele esticou o corpo na cama de palha, e mantendo um sorriso alegre no rosto, lançou um olhar rápido nos porcos que apenas olhavam para o rapaz sem entenderem nada.

Tudo parecia estar correndo bem. Logo estaria curado para dar o fora daquele lugar, e tinha uma oportunidade de voltar para a antiga vida na Terra.

Pedra idiota, já foi um humano, mil anos como um pedregulho fez ele esquecer do nosso orgulho.

Como pode isso?

Nada é mais importante que saber o que uma garota pensa da gente.

Será que ela viu?

O que ela achou da minha ferramenta?

 Putiz!

É tão pequena.

Mas esse corpo é jovem, talvez vai crescer mais.

Tanto faz!

Logo vou largar essa carcaça fedorenta e ter o meu velho corpo de volta.

Ainda assim…

O que ela achou?

Bosta!

Quase fechando o olho bom, deu um tapa no próprio rosto para não adormecer. Ele queria deixar toda aquela situação de lado, mas na verdade estava lutando para não dormir, porque tinha medo de encontrar Skog nos seus sonhos.

...



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