Volume 1 – Arco 2
Capítulo 36: O Sábio Miserável Que Não Queria Ficar Pelado
Guilherme se contorcia na cama de palha tentando entender tudo o que estava acontecendo.
A cama tremeu depois de levar uma cabeçada na sua base e de baixo dela saiu um leitão desorientado. O rosto, quase sem expressão, deixava claro que Alonso não fazia a menor ideia do que estava acontecendo com o Sábio Miserável.
Guilherme sentiu o seu nervosismo aumentar, enquanto o Crista de Galo examinava a cabeça do leitão que tinha uma mancha vermelha enorme na testa. Além do Sábio, havia no chiqueiro o Alonso e os porcos. E como aquela garota que cuidou dele não voltou mais, não conseguia imaginar quem mais poderia aparecer.
O leitão correu empolgado, por causa disso esbarrou a bunda rosada na perna da cama, o Alonso falou, com um sorriso amigável:
— Wiubor, você é estabanado, sossega o facho…
A tensão de Guilherme aumentou ainda mais ao analisar o garoto que lidava com a situação como se não fosse nada. Aparentava não se importar com os perigos que cercam esse pesadelo e tinha o ar seguro dos grandes aventureiros. Para o Sábio, ele agir assim depois de falar sobre aquele inferno era inadmissível.
Ele não podia se enganar mais, a situação não permitia. Segurou um suspiro e passou a mão sobre as bandagens do rosto.
Esse maldito garoto perguntou sobre Last Downfall.
Quem é ele?
Ah… isso não importa!
Até quando esse pesadelo vai me perseguir?
Fui tão idiota por me deixar levar por esses olhos simpáticos.
A pedra avisou que viriam atrás de mim.
Mas por quê?
sou o herói mas fraco, isso é claro.
Só quero ficar em paz!
Não!
Não haverá paz…
— Hhe.. hhe.. ttodos vvão mmorrer…
— O que você falou? — Alonso ficou confuso.
— Não se faça de idiota. Responda, maldito, como você sabe sobre esse infernol? — O olho bom do sábio parecia que iria saltar da órbita. — Você é uma das bestas do Skog? É a maldita besta da ilusão?
— Traa… às vezes sou um bestão mesmo, a testuda que o diga. — Ele riu. — Só que não sei de besta nenhuma, tá bom, calma, calma, dessa forma sua cabeça vai explodir em mil pedaços.
— Você não vai me enganar, maldito, só responda, o que você tem a ver com Last Downfall?
— Traa, certo, calma… não pode ficar nervoso por causa das suas feridas, elas poderão abrir. Tô vendo que sua mente está pra lá do horizonte. Vamos falar disso outra hora, tá bem? Agora se acalme.
A cabeça de Guilherme estava confusa, mas ele sabia que se pressionar mais poderia se dar muito mal. Por isso resolveu ficar quieto enquanto buscava uma forma de resolver esse problema.
Eu preciso dar o fora desse lugar!
Na verdade, não importava suas suspeitas, tudo que conseguia enxergar naquele garoto era uma parcial inocência. Isso o deixava desconcertado. De modo, que chegou a pensar que ele poderia ser outro condenado preso à mesma violência que vinha sendo sua constante companheira desde que reencarnou nesse mundo.
Ele precisava se agarrar em qualquer coisa que pudesse dar-lhe suporte para continuar. Quis então explanar sobre os perigos dessa busca lendária, porém, por experiência própria, não podia negar que quando se vive assim, nenhum bom conselho será considerado útil.
— Escute, Alonso, esqueça esse assunto e viva sua vida independente do que seja. Esqueça essa merda, porque só vai encontrar morte e dor!
— Guilherme, o que está fazendo? Essa é a nossa chance — disse a pedra. — Esse jovem pode ser outro herói, mas sem as memórias.
E essa agora?
Não acredito que essa pedra não tem nenhum sensor, ou magia para detectar outros heróis e criaturas dos deuses.
É o básico dos enredos furados.
Não tem nada nesse maldito Isekai para facilitar minha vida.
Putaquemeparolas!
Que se foda!
Ele pode ser o filho da Madre Teresa de Calcutá.
Não tou nem aí.
Já mandei tudo para o inferno!
Guilherme ignorou o aviso da sua besta, e só queria desaparecer. Pôs um fim na conversa se virando de lado e encarando a parede encardida do chiqueiro.
Alonso entendeu que o Sábio não queria mais conversar e ficou em silêncio para que ele pudesse dormir e descansar o corpo.
No entanto, a última coisa que Guilherme queria era dormir, e enquanto mordia a ponta da língua para afastar o sono pesado, ele imaginava o que iria encontrar no mundo dos sonhos.
Não posso dormir!
Não posso dormir!
Não posso dormir!
Embora tivesse muito medo de encontrar o deus Skog em seus sonhos, não podia resistir já que o caldo ao bater no seu estômago vazio teve o efeito de um potente sossega leão, sonolento, ele adormeceu.
◈◈◈◈◈◈
Guilherme baixou os olhos e considerou a inutilidade da sua existência. Ele estava se esforçando para ser simpático com a garota depois de ter passado uma péssima noite. O deus Skog não veio perturbar seus sonhos, mas muito disso foi porque não conseguiu dormir por meia hora de sono contínuo. A casa ruído ou roncos dos porcos, ele despertava assustado, e dessa forma foi até o amanhecer.
Por isso não importava se ela estivesse ali para cuidar de suas feridas, era certo que não poderia cuidar das feridas de sua alma. E como Guilherme não sabia lidar com garotas, tudo só ficou mais intragável.
— Entendeu, garoto estupido… — disse Felipa, mexendo no corte no rosto do Sábio. — Escute o que estou dizendo! Se continuar mexendo como minhoca na chuva, essas feridas não vão cicatrizar!
Ao ouvir a bronca na voz áspera da garota, Guilherme estremeceu de leve, remexendo-se irritado na cama de palha, o flagelado corpo despido por uma toalha fina.
A malvada criatura lhe havia tomado a coberta dizendo que pele de animais precisavam tomar sol para não ficarem fedidas. Depois disso, ela apenas sorria com a cara mais lavada do mundo.
Com o corpo praticamente nu, o Sábio Miserável ficou desprotegido… bem, digamos que foi o seu orgulho que ficou desprotegido.
Felipa conferia cada corte e cada hematoma.
Fugindo da situação constrangedora, o Sábio se isolou na sua toca do coelho, evitando ficar corado por causa dos pensamentos voluptuosos que rodam em sua mente como um alegre carrossel.
O que há de errado com essa garota?
Meninas não podem ficar assim medindo o corpo de um garoto.
Não mesmo!
Vixe…
Saporra!
No que ele mexeu quando eu estava desacordado?
O que ela viu?
Foi ela que arrancou minhas roupas?
A garota que parecia uma pintura dentro do seu vestido florido deus uns resmungos mortificados de repreensão, enquanto o Sábio endureceu, ainda mais, o olhar e a postura. As varia sardas no rosto dela a deixavam fofa e sedutora. O cabelo cacheado tinha um cheiro maravilhoso.
Um teimoso sorriso permaneceu em seus lábios, enquanto Guilherme tentava se acostumar com a proximidade daquela menina, comparando-a com as mulheres dos animes e mangás que fazem brincadeiras sádicas. Ela lhe pareceu tremendamente consciente de cada movimento, como se tudo tivesse sido calculado para provocar impacto no despreparado garoto.
Guilherme sempre fantasiou ter uma garota medindo o seu corpo palmo a palmo, tocando lá, ali, tudo. No entanto, naquele momento, estava sendo torturado pelo constrangimento.
Era como ter a pele tocada por carvão em brasa.
A sua maior preocupação era com a possibilidade de suas intimidades terem sido reveladas para as predadoras do sexo oposto.
Se foi ela que tirou minhas roupas.
Claro que ela viu.
O que ela achou?
Droga!
Ele tinha receio das imaginações dela, já que o seu corpo não tinha nenhuma ferramenta natural para se orgulhar, meio pequeno, muito torto, quase infantil, e buscava alguma forma de explicar a situação, talvez uma justificativa usando a friagem, quando a voz dela alcançou sua mente.
— Ei, você está aí? Você entendeu que tem que ficar quieto?
— É O FRIO… não é pequeno por minha culpa.
— O que?
Guilherme sacudiu a cabeça. Era o sinal para disfarçar a sua vergonha. Ele precisa mostrar que era viril, e decidiu fazer isso na forma de uma resposta firme, porém sem sentido nenhum, mas que poderia mostrar uma presença máscula e intimidadora.
— Ah, garotinha, não é nada! — Ele até engrossou a voz. — Não quero confusão romântica essa semana, mas eu nunca tratei ninguém como trato você…
Isso…
Funcionou com Edward Lewis no filme Uma Linda Mulher.
Acho que foi bem assim.
Bem… ainda bem que esse filme vivia se repetindo na sessão da tarde.
— Eu mereço… — Felipa deu um tapa de leve no ombro do Sábio. — O que foi, está sentindo alguma coisa? Você está vermelho demais.
O coração de Guilherme bateu acelerado pela emoção. Se preparou durante toda a vida para isso, para o momento que estaria tão perto de uma garota, ainda mais pelado, no entanto, foi um vexame ao conseguir ficar apenas envergonhado.
— Nada, por favor, é que você está muito perto de mim!
— Ora, seu idiota, como vou olhar as feridas e passar o unguento de cura?
Então, Felipa arregalou os olhos, sobressaltada, ao reconhecer a timidez no tom de voz daquele rapaz, revelada apenas quando os garotos não tinham o costume de lidar com mulheres, deixando claro que eles não sabiam o que fazer.
— Que os céus despejem sobre mim uma chuva de paciência, não me diga, você é um desses afeminados que tem medo de garotas?
Ainda atordoado, Guilherme levantou-se, apressado, ao perceber um sinal de sarcasmo na expressão da Felipa: na certa, ele não queria parecer tão deprimente assim.
Não iria aceitar esses ultrajes de forma alguma.
Com esse movimento, escorregou um pouco a toalha que cobria as partes íntimas e desceu muito além dos temores, e quando percebeu que o periquito estava tomando vento, livre, leve e encolhido, o Sábio tratou de esquecer de tudo e voltou a deitar, puxando a toalha para o lugar.
Sua cara estava mais vermelha que um morango maduro.
— É verdade! — Felipa rachou de rir. — Você não tem costume com garotas.
Um arrepio de excitação lhe percorreu a espinha, ao se deparar com a figura de cabelos negros e feições lindas sobre ele.
Felipa se aproveitou da situação para espremer ainda mais o pobre rapaz com o corpo dela.
Guilherme sentiu a pele macia e delicada, a criatura manhosa tinha porte de modelo e parecia que tinha nascido neste mundo para ser provocante.
Poderiam ser impressões drásticas demais, só que naquele instante, eram todas verdadeiras.
Eu preciso fazer algo rápido, se não vou explodir.
Ou pior.
Ela vai pensar que sou bicha.
Cabaço idiota.
Droga!
— Então você é a encarregada de tapar os buracos das feridas das pessoas. — O Sábio disse sem pensar.
Buraco?
BURRRRRO!
Não acredito que foi isso que eu falei.
— Guilherme — chamou a pedra. — Mulheres são como flores, só precisa escorregar a mão por suas pétalas que irá sentir o aroma doce.
Hã…
O que esse pedregulho tapado tá dizendo?
— Aqui todos cuidam de todos. Aí vai um pequeno conselho: se quer curar as suas feridas, é melhor ficar quieto, e controlar seu amiguinho, caso contrário, seu coração irá explodir, idiota. — Felipa riu de forma discreta. — Apesar que ele parece inofensivo…
— Isso é muito engraçado, né? Gosta disso, não é? Tratar as pessoas como os seus malditos porcos. Foi só eu que agi como um idiota?
De repente a face de Guilherme voltou a ficar sombria. O seu olho bom se perdeu na tristeza, fazendo com que a Felipa se afastasse, também ficando séria e preocupada.
— O que você quis dizer com isso? — A garota usou um tom de desgosto nas palavras.
Guilherme ponderou por alguns segundos e então, após um soco na cama, que lançou alguns fiapos de palha para o alto, ele fechou a boca e não disse nada.
— O que é isso, afinal? — Felipa se levantou da cama e se afastou. — Será que você é algum tipo de animal que cresceu perdido na floresta?
Guilherme ajeitou a cabeça e olhou com o olho bom aquela garota. Ela parecia não entender nada o que estava acontecendo.
— Não — disse o Sábio, irritado e com uma má vontade terrível. — Mas crescer numa floresta sem dúvida é melhor que dormir com porcos. E aquele otário, o Alonso, precisava mesmo ficar me vigiando a noite toda? O que vocês pensaram, que eu iria agarrar um desses bichos e fugir na calada da noite?
— Miserável, você não sabe de nada.
— Prazer! Sou o cara que nunca sabe de nada. Melhor ainda, me conta o que está acontecendo. — O Sábio Miserável fazia questão em não ser gentil. — Por que aquele galo da crista vermelha cheirou a bunda dos porcos a noite toda só para me vigiar?
— Ele tem as razões dele. Uma pessoa como você nunca entenderia.
— Uma pessoa como eu… droga, o que você tá insinuando? Que ele, que todos vocês são melhores que eu?
Antes que a Felipa pudesse responder qualquer coisa, a porta do chiqueiro se abriu e Alonso entrou trazendo uma tigela de barro.
A garota, com fogo no olhar, encarou o Sábio.
Contudo, apesar da aparente enrascada, Guilherme notou o sorriso na face do Crista de Galo, que de forma discreta lançou um sinal amigável. Seu olho bom passou a vista na porta aberta atrás do garoto, revelando uma possibilidade de fuga, e voltou a analisar a cara raivosa da Felipa.
Ele aprendeu que nesse mundo, independente das caras e bocas bondosas, todos só queriam arrancar um pedaço dele. Mas dessa vez estava preparado porque não é mais o idiota ingênuo que reencarno nesse isekai… inferno.
É agora que esses malditos vão arrancar o meu couro.
Tudo bem.
Finalmente vão mostrar o que são de verdade.
...