Last Downfall Brasileira

Autor(a): VALHALLA


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 35: O Sábio Miserável e O Garoto do Cabelo Cor de Fogo

Guilherme acordou. Era noite, o fedor insuportável e os porcos ruidosos demais. O ar gelado entrava pelas frestas e buracos na madeira do chiqueiro.

Procurou algo para se esquentar além da toalha que cobria o corpo, mas tudo que encontrou foi palha seca.

Não basta me alimentar com a gororoba dos porcos.

Eles querem que eu congele até a morte.

Apesar do descaso daquela gente, o Sábio Miserável não podia negar que estava melhor, por isso acreditava que poderia deixar aquele lugar imundo o mais rápido possível.

A barriga roncou alto.

— Esse ronco feroz diz que está acordado, Guilherme — disse a pedra. — O rugido da fera é sinal que ainda está viva.

— Vivo e com fome.

A chama tímida de uma vela não deixava o lugar no total escuro. Ele localizou no lado da cama, uma tigela de barro e nela tinha mais do ensopado de abóbora que havia rejeitado mais cedo.

O Sábio Miserável esboçou um sorriso amargo. Compreendia a sua situação, mas o orgulho esboçava bem a sua aparência: um idiota ingênuo, desorientado, que considerava seu sofrimento o maior do mundo.

— Não há grande dor e nem dor pequena, só há dor — comentou a pedra. — Não faça disso a sua melhor desculpa.

— Ah, pedra, dane-se!

Aquele sábio era o candidato perfeito a uma sepultura no Bosque dos Sussurros, abandonada e esquecida.

Mais que nunca, ele sentiu saudades da Terra. Naquela existência tinha uma vida solitária, mas lá, pelo menos, seu trabalho e suas preocupações ainda poderiam fazer alguma diferença.

Recostou-se na cama fria e desconfortável que era igual a uma calçada de pedras. Ele fechou o olho procurando esquecer a tigela de ensopado. Passou outra vez a mão pela cama atrás de uma coberta, mas só havia a palha seca.

— Oh, Guilherme, sinto muito, mas se não comer nada, vai morrer — avisou a pedra. — É isso que você quer? Não ia viver sua aventura?

Me deixa em paz, pedregulho…

Droga!

Com extrema rudeza, mas usando movimentos rápidos e precisos, o Sábio pegou e ergueu a tigela, envolvendo-a com suas mãos. Levou o pequeno utensílio de barro até os lábios, e com um meio sorriso, encheu a boca com a comida.

No mesmo instante, Guilherme foi transferido para o sítio dos avós, e lembrou das sopas com legumes que a mãe preparava aos domingos frios da Terra. Lembrou do irmão Paulo descascando as batatas. Lembrou do pai na frente da televisão vibrando com a vitória de  Ayrton Senna na Fórmula 1.

Nessa época, seu coelho vivia escondido debaixo da cama e isso deixava o garotinho pistola.

Ele comparou a forma que aqueles dias eram intragáveis para ele, da mesma forma que ignorou esse ensopado oferecido de bom coração.

Uma alma miserável.

Haveria mais alguma coisa a acrescentar, além da cara de satisfação que se seguiu e o sentimento de vergonha que roubou a alegria das doces recordações daquele Sábio tolo.

No entanto, o ensopado, mesmo frio, era maravilhoso e reconfortante.

— QUE CALDO DELICIOSO!!! — Seu paladar reagiu por conta própria.

Nossa, mesmo gelado é gostoso.

Como deveria ser quentinho?

A surpresa do sabor da comida criou um vendaval de bons sentimentos que abriu as janelas do seu coração.

— Pedra, eu fui um idiota com aquelas pessoas.

— Estou ao seu lado, mas devo concordar; você foi o pior idiota de todos! Eu sou testemunha de como eles se esforçaram para salvar sua vida.

— Pedregulho maldito, você não sabe mesmo motivar as pessoas.

— Não vou acobertar os seus erros. Não encontrará conforto para o arrependimento em mim. Aceite e encare sua fraqueza, seu egoísmo; você foi cruel. Não é a atitude de um herói.

— Não sou herói, já falei isso mil vezes. Sou um miserável. Os heróis neste mundo são espancados e perdem seus membros.

— Heróis não roubam e não são ingratos!

Que saco!

Maldita…

Custa falar: você fez bem, meu garoto.

A pedra não para de me refutar.

Só…

Outra vez ela está certa.

Sou horrível!

— É o solstício da lua azul, as noites são bem geladas. — Uma forte voz masculina. — Eu não sinto frio, desculpe, acabei esquecendo que a carne da maioria das pessoas é mais sensível que banha de porco.

— Quem está aí? — Com apenas um olho, Guilherme não conseguiu identificar nada.

— Traa, não fique assim, não é sua culpa… quando os deuses me fizeram eles estavam inspirados. Minha mãe disse que o próprio sol piscou duas vezes.

— É o garoto da crista de galo?

— Chamar meu cabelão de crista, isso, não deixe a testuda lhe influenciar, traa… — Ouviu-se o som de risos. — Pelo deus Sjel, você tá melhor e tem bom humor.

O sábio olhou por todo chiqueiro, assustado. Ele havia escutado pouco, mas tinha a certeza que era a voz do garoto de cabelo vermelho que havia trago a comida mais cedo.

Há quanto tempo esse mané estava aqui dentro?

Ele me ouviu falar com a pedra?

Ele vai pensar que sou maluco.

O olho bom demorou a se acostumar com a penumbra, então ele viu os contornos do corpo forte, e mesmo na pouca luz, o cabelo vermelho solto, sobre os ombros, criava uma figura intimidadora. Ele caminhava devagar entre os porcos, e foi até um baú, tão carcomido como aquele lugar.

De dentro do baú, o crista de galo tirou uma coberta e jogou para o Sábio.

— Pode usar essa manta, é bem quente. Não vai mais sentir frio durante a noite.

— Be-bem… obrigado!

Guilherme sentiu a maciez daquela coberta. Não conseguia ver direito, mas tinha a certeza que era a pele de alguma criatura, ainda assim, tinha um cheiro tão gostoso. Não queria parecer fraco, só que não resistiu e tratou de se cobrir com a manta imitando uma lagarta dentro de seu casulo. Se sentiu quente e seguro.

O crista de galo voltou para onde os porcos estavam reunidos imitando um clube de auto-ajuda. Era a forma dos animais se esquentarem e passarem a noite. Entre os bichos havia um banquinho onde o garoto se sentou, e lá passou a observar o Sábio Miserável.

— Não vai pegar uma manta para você também? — Guilherme queria desconversar para afastar o foco da sua conversa com a pedra.

— Não liga para isso, traa, só tem uma. Já disse, eu não preciso, tô bem. É muito difícil o frio me incomodar. Além do mais, quando os porcos começarem a sacudir as bundas, vai esquentar mais que fogueira.

Esse cara tava aí o tempo todo?

Vai ficar até de manhã?

Não acredito que ele vai ficar cheirando bunda de porco a noite toda só para me vigiar.

Tudo tem um limite.

— Você fala sozinho? — Com a fraca iluminação da vela, só dava para ver o par de olhos brilhando em meio aos porcos. — É comum isso? A testuda da Felipa falou que estava falando com a pedra, então era verdade. Bem, tanto faz, isso não me incomoda. Às vezes eu também falo com o Wiubor.

Quem é esse tal de Wiubor?

Outro enxerido?

O garoto sorriu, e através da pouca luz, os dentes brancos se iluminaram como um farol. Em seguida, ele fez um sinal positivo, batendo no bumbum de um dos porcos para se afastar um pouco. Ao melhorar o campo de visão, ele se ajeitou melhor no pequeno banquinho, encarou Guilherme e disse:

— Eu sabia que iria gostar da comida da dona Mia, é a melhor que tem, verdade que não provei muitas comidas. Traa… em um dia eu vou comer todas as comidas do mundo! Mesmo assim, a da Mia será a melhor!

Idioata!

Como vai comer toda a comida do mundo num dia?

Pensa antes de falar, caipira.

Os olhos cor de mel olhavam para ele transmitindo forte entusiasmo. Guilherme se lembrou de ter lido numa revista de videogame que os personagens de olhos de cor caramelo tinham a tendência a serem mais frios e calculistas do que os outros.

Eles eram ideais para aprofundar a narrativa e transformar a vida dos protagonistas em verdadeiras montanhas-russas.

Talvez fosse por isso que a maioria dos antagonistas e ajudantes do boss final tinham os olhos claros.

Que merda é essa?

Olhos cor de mel?

Por que tô pensando nessa bosta agora?

Não gosto disso!

Depois da autocrítica mental, o Sábio foi atingido pelo receio do caso que havia criado mais cedo.

— Ei, quero me desculpar pelo que fiz de manhã, não estou numa boa fase. — Ele concluiu que precisava colocar uma pedra sobre esse assunto se quisesse ter uma chance de sair desse lugar inteiro.

— Tudo bem, comeu e gostou. Eu estava certo…

— Certo em que?

— Gritou que o caldo estava delicioso, ouvi bem com o ouvido esquerdo e direito. Eu disse que a comida da dona Mia era gostosa demais.

— É né, estava mesmo. Aquela garota que cuidou de mim, ela deve me odiar.

— Felipa, a testuda, não… ela odeia todo mundo. Naquele coração peludo só tem espaço para as plantas.

O crista de galo gargalhou e perguntou animado:

— Quantos anos você tem? Você é da mesma idade que eu! Vou acertar essa também, tenho certeza.

— Bem… — Guilherme não sabia o que responder porque não tinha plena convicção sobre a idade do corpo que reencarnou, e muito menos a idade do boboca sorridente, então não podia usar um meio-termo, por isso respondeu com o que presumia: — 15!

— Hum... bastante jovem para morrer, né? Sou mais velho, tenho 17. Errei a sua idade, traa!

Traa, traa, traa.

Olha o que esse mané tá falando.

Que cacoete ridículo!

Não tem noção de nada.

Esse mundo é uma merda.

Morrer seria tão ruim assim?

— Você não me conhece. Errou outra… — Guilherme confuso entrou numa espécie de competição contraditória. — Não vou morrer tão cedo!

O garoto riu ainda mais, sem pregas ou temores.

— Qual é seu nome, garoto que não quer morrer.

Guilherme cuspiu no chão, com desprezo.

— Não é para rir de mim. Porém, nos últimos dias não tive boa sorte. Eu vou apagar essa experiência ruim a partir de agora o meu nome é Guilherme, o Sábio Miserável. É melhor não esquecer.

— Opa, tá bom, mas não me apague também, traa… que apelido horrível!

— Isso não é brincadeira de criança, não é um apelido. É meu desejo, a infâmia que irá trazer terror para esse mundo.

— Já tô assustado, traa… — Alonso reagiu como se as palavras do Sábio fossem normais. — Não conheci muitos tipos iguais a você, Sábio Miserável.

— Sou o único, isso você pode apostar. Seu nome é Alonso, isso? Ouvi a Felipa dizer.

O rapaz não pôde evitar o riso diante do fanfarrão.

— Muito bem, isso mesmo, Sábio, eu simpatizei com você. Já resolvi, a gente vai ser amigos!

— Sério? — Guilherme arregalou o olho bom. 

— Claro! Prometo realizar um belo funeral para você quando morrer. — Alonso riu. — Vou falar para alguém escrever na sua lápide: o meu amigo tinha o sonho de aterrorizar o mundo!

— Sai de ré, tá doido, Crista de galo? Isso não é uma forma de incentivar ninguém.

Os dois começaram a rir.

Guilherme relaxou, até se sentiu mais leve e conseguiu falar sem precisar ficar medindo as palavras. Por um momento, esqueceu das profundas feridas e das dores, e também esqueceu que aquele garoto estava ali o vigiando por algum motivo.

— Guilherme… eu também tenho um desejo. É um sonho que vou realizar custe o que custar. Era sobre isso o que queria falar com você, entende? Nós dois somos iguais. Traa… obrigado, deus Sjel, agora vou ter uma pista de verdade. — Ele fez uma pausa longa e depois de respirar fundo perguntou de uma vez só: — Você já viu Last Downfall?

— O que foi que você falou, maldito?

Guilherme não sabia ao certo o que havia animado seu espírito naqueles minutos de conversa com um completo estranho, talvez tivesse se deixado comover pelas palavras da pedra, porém, foi arrastado de volta para as trevas ao ouvir o nome desse pesadelo: Last Downfall.

Outra vez não.

Isso não!

Ficou alguns segundos remoendo tantas experiências ruins na memória e, de repente, levou um susto.

Alonso estava de pé, olhando-o com um olhar determinado. Parecia uma pessoa incrível, além de sua imaginação.

O Sábio agarrou as palhas da cama, tentou cobrir todo o corpo com a coberta e recompor o pensamento, para não se deixar cair outra vez na armadilha.

Todos virão atrás de mim.

Todos são meus inimigos!

...



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