Last Downfall Brasileira

Autor(a): VALHALLA


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 34.6: O Descabelado de Cabelo Curto Demais - parte 2

Atordoado com a revelação infernal da família refugiada, Clint forçou os braços e levantou ainda mais a carroça, arrepiado com as lembranças dos terríveis pesadelos da sua infância.

Ele reconheceu a voz apavorada e impaciente daquela gente. Alguma coisa os assustou de verdade, mas acreditar que a maldita raça de vampiros iria voltar a aterrorizar o mundo, seria o mesmo que acreditar que não houve futuro para si mesmo.

Se concentrou o máximo que conseguiu e assim pôde continuar escutando a conversa dos companheiros com a família sem criar alarde, já que não podia levantar mais suspeitas para si mesmo, ainda que todos seus extintos estivessem gritando por causa da agonia de sua mente.

— Você viu olhos da cor violeta, hum… — interpelou, intrigado, Ramsdale para o jovem filho da família. — É verdade que os olhos violetas são uma característica única do clã Varcolac, no entanto, do mesmo modo o cabelo da mesma cor é uma dessas características únicas, você também viu isso?

— Não… não queria morrer, corri mais que minhas pernas aguentaram, só isso! — O garoto continuava pertubado.

— É razoável fugir de um monstro, não é vergonha, eu entendo, só que não poderia ser uma Varcolac — concluiu o arqueiro. — Você se confundiu com alguma outra coisa, apenas isso. Essa raça de vampiros foi exterminada durante as guerras noturnas.

— Meu filho não é mentiroso. Nesse dia, ele estava mais branco que a cera de porco — disse o homem, batendo seu bastão contra o chão, e apertando os olhos enquanto olhava a carroça ceder ao próprio peso pouco a pouco.

— Desculpe, bom homem, não disse que seu filho é mentiroso, só… — Ramsdale riu de forma discreta. — Vejo que a confusão é um mal de família.

— A nossa terra foi amaldiçoada, e você faz piadas? — questionou a mulher, com os olhos tensos, encarando o rapaz de cabelo verde. — Eu não ligo para o que você diz, pessoas estão morrendo e isso é prova suficiente para mim!

Enquanto ouvia a conversa, Clint continuava suspendendo a carroça. Para não deixá-la tombar, ele estava usando toda a força dos braços, e havia chegado no limite, contudo, não se atreveu a pedir ajuda, porque queria evitar ao máximo o olhar dos companheiros.

O descabelado errou quando reagiu de forma descontrolada, tinha consciência disso, porém, não teve como evitar aquela reação descabida, porque a menção da maldita raça de vampiro Varcolac era capaz de mexer de forma profunda com ele.

Ainda que as guerras noturnas não tivessem ocorrido na sua geração, e quando nasceu essa praga já tinha sido extinta, a sede de sangue dos Varcolac marcou seu povo, e grande parte das tragédias em sua vida foram resultado disso. 

Sua mente viajou para quando era só uma criança ouvindo as histórias dos velhos anciões: a tribo Cabelo-Duro no passado foi poderosa, mas durante a noite sem fim, dividimos o mesmo destino de outras tribos. O nosso povo foi o sacrifício para acalmar a fome insaciável das criaturas infernais; o pacto dos homens com o mal.

Da glória de guerreiros destemidos da tribo Cabelo-Duro só restou os fragmentos nos ditados e cantigas. Só que não foi o pior. As bestas foram derrotadas e a paz chegou, com isso, um monstro pior se ergueu, a ganância humana.

Com a tribo fragilizada, seu povo se tornou alvo constante de nações poderosas que buscavam escravos para as atrações e espetáculos brutais. 

Num desses ataques, Clint viu a mãe e irmãos serem mortos e junto do pai, foram capturados e vendidos para aquele lugar de sangue e brutalidades sem fim, o Coliseu de Prata.

Clint tinha motivos para odiar muita coisa, mas não tinha nada que odiava mais que o significado desse nome: Varcolac. Ainda que o mundo acreditasse que os malditos vampiros foram varridos da face da terra, a sua ira resistirá até poder cuspir sobre suas ossadas esquecidas, essa maldita praga está morta, ele repetia para si mesmo, morta, morta, morta... 

— É uma maldição! — Conseguiu dizer a mulher, quando percebeu que a carroça parou de inclinar. — Não estou muito certa a respeito do deus furioso. Quem a enviou? Mas tenho certeza que é um castigo. Os homens estão virando as costas aos deuses antigos, os céus estão ardendo em ódio.

Ramsdale, deu um leve aceno com a cabeça, para não concordar de forma efetiva com as palavras da mulher, porém, não queria criar mais caso.

— Jovens aventureiros, sei que são boa gente, sei que possuem obrigações a cumprir, mas se duvidar da nossa palavra — disse o homem ao perceber que o relato de sua família não tinha crédito —, vão estar mortos antes da gente chegar ao nosso destino.

— Por VALHALLA... vamos deixar essa terra amaldiçoada — disse a mulher, com os olhos brilhando. — Ainda há muito chão até a muralha de rubi?

Liel, que até então estava em silêncio tentando entender a situação, teve um estalo que clareou toda a história. Aquelas pessoas conseguiram uma desculpa válida para fugirem, e não iriam desperdiçar por nada.

— O que querem naquela terra? — perguntou ele, com um olhar ameaçador.

— Foram os ventos da sorte, por favor, então... — respondeu a mulher, temendo a reação do jovem loiro — não nos julguem. Dizem que além da muralha é uma terra de fartura, onde mana leite das pedras e elfas dançam sob a luz do luar, lá as pessoas podem adorar os deuses antigos. Só quero a paz para meus filhos.

Ainda mais raivoso, Liel encarou a mulher. Para ele era impossível entender as pessoas que deixaram de lutar, largaram as armas e inclinaram as cabeças para o inimigo, no entanto, encontrou uma boa oportunidade de descontar a raiva e a frustração na desafortunada família.

— Podem fugir com os rabos entre as pernas, podem se ajoelhar para a maldita Rainha Vermelha, podem lamber leite de pedra, mas os deuses não têm misericórdia para traidores!

O homem deu um passo para o lado, ficando na frente da esposa. — Aventureiro, você só é um garoto — disse ele —, e eu sou apenas um camponês, não entendo nada dos deveres com o império, não entendo de aventuras, mas é do conhecimento de todos que o Czar deixa o Círculo Dourado controlar a nossa fé, e monstros dos pesadelos devoram as pessoas. — Apesar de tudo, não havia receio em seu olhar. — Entre ser um traidor ou um apóstata, escolho a traição. Os deuses irão me perdoar!

Liel tocou no cabo de sua espada, mas naquele momento, a carroça inclinou, quase tombando para o lado, Ramsdale, o homem e a mulher correram para ajudar o descabelado que estava quase sendo esmagado debaixo dela.

— Clint, seu maldito idiota, por que não pediu ajuda? — O arqueiro se posicionou atrás, e comandou os outros. — No três, todos empurrem para cima... 1... 2... 3... vai!

Liel permaneceu parado no lugar onde estava, cerrando os dentes.

◈◈◈◈◈◈

Após a confusão e um pouco de trabalho em conjunto de todos, as coisas estavam mais calmas.

Clint fez força para levantar um pouco mais a suspensão, para que a roda da carroça pudesse ser encaixada de forma perfeita, e finalizar o reparo.

Embora seu corpo estivesse envolvido naquela ação, sua mente estava distante. Durante todo aquele dia, ele não fez o menor esforço para manter as aparências. Não conseguiria, mesmo que sua vida dependesse disso.

Aconteceram tantas coisas num curto intervalo de tempo, que era difícil assimilar tudo. Dias atrás encontrou o Sapo, uma figura do seu passado, a quem tinha grande dívida e que acreditou que nunca voltaria a ver; os novos companheiros estão receosos por causa de seus segredos; e ouviu que a maligna raça de vampiros Varcolac ainda estaria a vagar pelo mundo.

Com um forte empurrão, ele conseguiu colocar a roda no lugar. O chefe da família pregou um espigão de metal no eixo prendendo-a no lugar, suas palavras eram certas, maldito Sapo, durante a ação, Clint lembrou das palavras que ouviu do campeão naquela viela de Carrasco Bonito, como eu queria que você estivesse aqui agora.

O chefe da família foi acudir a mulher e filhas que ainda estavam nervosas. Enquanto o descabelado dava o acabamento no eixo junto do filho da família, ele viu Ramsdale se afastar da carroça e ir até Liel, que estava no canto da estrada, arrancando hastes de capim dedo-de-anão e mastigando-as para aliviar a sua frustração.

— Então, de acordo com todas as leis do império, traidores merecem a morte. Você poderia decapitar cada um deles e talvez ganhasse duas moedas de bronze por cabeça — disse Ramsdale, se aproximando. — Mas você não pode culpá-los por querer uma vida melhor.

Liel bufou. — Sei disso, droga! — Ele jogou a haste de capim longe. — Eu não vou fazer nada, está muito quente para sujar minha espada com sangue. Cabeça de couve, o Círculo Dourado está destruindo o nosso país. 

—Não, meu amigo, estão destruindo o mundo. Podem falar o que quiser daquela velha assassina, mas a Rainha Vermelha conseguiu deixar as garras do círculo longe de seu país.

— Hum...até quando? — Com sarcasmo, o líder estreitou o olhar para o companheiro. — Ora, não me diga, também quer fugir pra lá e lamber as escarcelas de ferro da maldita? Vá, vá, não suporto mais tua ladainha, pode aproveitar a caravana dos covardes.

— Não as dela, mas das filhas, sem dúvida, dizem que são lindas. — O arqueiro riu. — Verdadeiras flores especiais.

— Falam também do filho afeminado, não se esqueça, o príncipe, esse sim, vai deixar você lavar as ceroulas dele.

Rindo, Ramsdale beirou no canto da estrada, ficando lado a lado com o amigo. Ele olhou para o homem que acariciava as filhas.

— Essa família não está nem um pouco preparada para uma viagem dessa, nossa, aquelas meninas me lembram a Nat. — Ele ficou sério, e um tanto triste. — Você não parou para pensar que a sorte deles pode ser a nossa sorte. Eles vão morrer se tentarem atravessar as fronteiras.

Deu para ver nítido uma veia pulsar de forma descomunal no pescoço do loiro.

— Você é esperançoso demais, não… eles vão morrer antes de chegarem na muralha de rubi! — Ele corrigiu a conclusão do companheiro. — Não posso condená-los por suas escolhas, então não vou me preocupar com os resultados, que arquem com as consequências.

Os dois ficaram por um tempo em silêncio.

— Varcolac... o que você acha? — Liel quebrou o silêncio.

— Se essa história for verdadeira… vamos morrer!

Liel riu. — Ora, cadê a tua esperança? Você deixou mesmo essa família te abalar. Veja bem, não há mal que não sucumba diante a coragem. Pense, meu amigo, o que vai acontecer quando retornamos para a guilda levando uma cabeça de um Varcolac? Eu digo que seremos heróis, vamos escalar para a classe A, se não chegar na S. Estaremos mais perto de encontrar o Grande Urso.

— Para isso, vamos ter que estar vivos. Além do mais, não acredito que seja um desses vampiros, já faz duzentos anos que o último deles virou carvão. Por isso, no relato do garoto vejo a verdade, ele  disse que viu os olhos violetas nos primeiros raios de sol.

— Só foi essa parte que prestou atenção?

— É a parte que importava. No sol, a carne dos vampiros torra mais que castanha na brasa.

— ahh... é verdade, tinha ficado tão empolgado que esqueci disso.

— O garoto viu alguma coisa, a família realmente está apavorada, mas não foi um Varcolac, tenho certeza.

— Seja o que for, vamos encontrar e matar! — Liel enrolou a mão numa touceira de capim e puxou tudo de uma vez. — Hum... — ele bufou.

— Mas não é isso que está te incomodando, não é? — Ramsdale prestou atenção no capim que crescia por toda parte. — Ora, isso aqui é o mato dedo-de-anão — Ele também arrancou uma haste verde, e depois voltou a encarar o companheiro. — Você está suspeitando do Clint!

Liel respirou fundo. — O que você acha?

— Também tenho minhas suspeitas. — O arqueiro enfiou a haste verde na boca. — Uma vez, li numa das enciclopédias do Barão que um homem pode sobreviver alguns dias só comendo essa coisa, sabia? Na verdade, tem muitas famílias no país sobrevivendo só com isso.

— Droga, cabeça de couve, não sou cavalo. Quais são suas suspeitas? O que devo fazer?

— Nada! — afirmou de forma calma o arqueiro, mastigando o capim. — Até que tem gosto bom.

— Nada?

— Sim! Suspeitas sem provas, só são suspeitas. Nem sempre a espada é a solução para tudo, eu vou cuidar desse assunto.

◈◈◈◈◈◈

Escondido atrás da carroça, Clint prestou atenção na conversa dos companheiros, porém, mesmo se concentrando, não conseguiu ouvir nada, apenas conseguiu identificar a palavra Varcolac num momento que os lábios de Ramsdale se moveram mais lentos, estão fazendo planos para a batalha? Perguntou-se, vão mesmo enfrentar essa coisa?

Seu coração se encheu de alegria, são mais corajosos do que imaginava! Ele nunca tinha entendido bem o sentido de companheirismo, o lugar onde cresceu lhe ensinou apenas o sentido da sobrevivência.

Da última vez que teve algo parecido com amigos, foi no salão de treinamento do Coliseu de Prata. Criaturas de várias raças, que  juntos, dividiram horas intermináveis de treino e o pão, só que dias depois, teve que matá-las para sobreviver.

Ele via os homens livres nas arquibancadas, só que nunca teve muito contato com eles, por isso, não odiava e não desgostava deles. Mas sempre imaginou como seria a liberdade.

Por isso escolheu vir para essa terra, mas até aqui seu passado veio junto. Para garantir sua paz, caso aquela maldita raça de vampiros ainda esteja viva, ele será o primeiro a querer arrancar sua cabeça.

Envolto pelos pensamentos, Clint não percebeu que seu cabelo estava crescendo, se enrolando nos eixos da carroça como uma cobra de músculos vibrantes, trincando a madeira.

— Ei... — Era a voz do filho da família. 

O descabelado não ouviu, e continuou encarando os companheiros, absorto nos pensamentos.

Depois de descobrir que os Varcolacs ainda podiam estar vivos, ele desejou matar os que ainda restavam, mas com tudo que ouviu das histórias, não podia negar que eram poderosos, talvez mais poderosos que qualquer coisa que enfrentou ou viu, mas não estava sozinho, desesperado e, com a ajuda dos novos companheiros, tudo era possível, tenho certeza que juntos vamos vencer!

— Ei, ei... cabeludo! — O garoto jogou uma pedra nele, porque estava assustado demais para se aproximar. — Você vai destruir a carroça.

Antes da pedra acertar o corpo de Clint, foi interceptada por uma mecha de cabelo e transformada em pó. Só que o movimento foi suficiente para despertá-lo do transe.

Quando viu o que estava fazendo, muito rápido desprendeu o cabelo das partes da carroça e as mechas voltaram ao normal, olhou ao redor, e viu que ninguém percebeu, exceto o garoto de olhos arregalados diante dele. 

— Não diga nada, não grite, não respire — ele disse, com o tom de uma fera, seus olhos tão penetrados, que criaram traços de cor vermelha —, ou vou matar você, vou matar seus pais, e matarei aquelas doces meninas.

— Tá-ta bom! — O pobre rapaz, branco como cera, fechou os olhos.

◈◈◈◈◈◈

Meia hora depois, a carroça já estava pronta para seguir sua viagem. A família compartilhou mais água com o trio de aventureiros e deu para eles algumas batatas como forma de agradecimento pela ajuda com a carroça.

— Então vamos recuperar o tempo de viagem — disse o chefe da família. — Desejo que deus Krig favoreça sua aventura, e VALHALLA sirva um bom futuro.

A mulher acenou com a cabeça, as duas meninas sorriram e o garoto olhou para Clint, mas não falou nada, e não sabendo o que fazer, apenas acenou com a mão.

— Que deus Krig limpe a estrada à sua frente de inimigos, e sua viagem seja segura — disse Liel. — Ouvi de outros viajantes que há grande atividade de goblins ao Sul, por isso, vá pela estrada União-de-Ferro, é mais segura, terá que pagar pedágio, mas acredite, vale cada moeda.

Curioso, Ramsdale olhou para o amigo, então sorriu, depois cumprimentou a família e se deu por satisfeito. Clint acenou, brincando com as duas meninas.

A carroça se virou no prumo da estrada, com a tração das vacas, e avançou devagar na direção Sul. O trio seguiu para Oeste, silenciosos, mas cada um divagando nos próprios pensamentos, preocupados com seus segredos e imaginando o que iriam encontrar.

Muitas informações, só que era apenas o começo da primeira missão do grupo de aventureiros Manoplas da Força.

...



Comentários