Last Downfall Brasileira

Autor(a): VALHALLA


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 34.5: O Descabelado de Cabelo Curto Demais - parte 1

Clint andava de um lado para outro na estrada de barro solado, tão vermelho quanto sangue, dividindo o olhar entre os dois companheiros. Liel estava um pouco mais adiantado, e Ramsdale, do seu lado, testando a sua paciência.

A enxurrada de perguntas não cessou por um momento desde que deixaram a cidade de Carrasco Bonito.

Ele não conseguia mais inventar histórias para saciar a sede curiosa do arqueiro. Já estava a ponto de cometer uma loucura, ele falou que não importa o que fizesse, eu nunca seria como eles, pressionado, sua mente buscou as palavras do sapo, a verdade pode me libertar?

Até onde Clint sabia, com a pouca convivência, Ramsdale era pior que os espinhos do cacto das terras secas, que depois de começar a penetrar a carne, vai fundo até causar uma dor terrível, eu não quero isso, as dúvidas embaçaram a sua mente, o dois nunca vão me aceitar se eu contar a verdade!

— Essa terra irá massacrar todos que reagem para sobreviver. — Ele decidiu estreitar ainda mais a fantasiosa história de sua vida. — Eu só queria uma vida boa. Comer carne todos os dias. Quem sabe, uma mulher para ter filhos. Não sou uma pessoa ruim. Por isso vim para esse país, e menti para evitar que as pessoas tivessem medo de mim. Acredite Ramsdale, só quero sobreviver.

Ramsdale o encarou e depois alongou a face para frente, arregalando o olho direito. As leis do império Tusso do Norte eram rigorosas com imigrantes ilegais, por isso a situação era complicada.

Mas, para seu crédito, não quis mais pressionar o pobre descabelado, no fundo, reconhecia que a vida dos humildes não era fácil, e também, ele não era do tipo de pessoa que saia procurando um agrupamento dos pontas vermelhas para fazer uma denúncia.

Sua única preocupação era o líder do grupo. O amigo permanecia calado, mas sabia que essa quietude era como a preparação de um feiticeiro, reunindo mana para um terrível ataque. A questão seria quando iria liberar tudo que acumulou?

— Não foi fácil para você, hein? Sua vila foi atacada quando era só uma criança e sua mãe foi assassinada, depois se tornou um caixeiro viajante junto do pai, e o homem é morto por bandidos, hum, juro que só não choro porque o cabeça dura ali, iria ficar me torrando a paciência. — Ele apontou para Liel, que naquele momento, se fez de distraído, mexendo nos capins dedo-de-anão na beira da estrada.

— Sim, por isso pouco lembro da minha vila natal. Pode acreditar em mim, nunca fui escravo. Apesar de tudo, sou um homem livre. Eu e meu pai fugimos logo depois do ataque. E depois de sua morte, vaguei sem rumo, cansado e sozinho.

Clint se preparou para uma pergunta longa e dolorosa na melhor das hipóteses, e um inquérito frio e desumano na pior, eu ainda sinto o frio do aço das algemas, pensou, isso faz de mim uma pessoa má? 

No entanto, para sua surpresa, as dúvidas na face do arqueiro desapareceram tão bruscamente quanto surgiram.

Ele saciou sua fome? Tentou refletir sobre a sua situação.

Não tinha tido tempo para bolar uma boa história, por muito sua a culpa, já que uma pessoa na sua situação já deveria ter uma boa história de vida na ponta da língua. Na verdade, a tribo do Cabelo-Duro nunca foi conhecida pelo bom intelecto de seu povo, por isso sempre foram boas escolhas para as arenas de combate.

No entanto, Clint sempre soube escutar muito bem, dessa forma conseguiu emendar e usar muito das história que ouviu dos irmão de arena, eles estão mortos, tentou alinhar a mente para não transparecer seus pesares, não vão importar se eu usar suas lágrimas!

Só que a lógica nunca foi o foco daquele descabelado, caso contrário, não estaria numa situação dessa, porém, sentimentos verdadeiros sempre serão uma arma melhor que a lógica numa história inventada.

A terrível capacidade dos hipócritas de chorar com as próprias palavras mentirosas.

Clint e Ramsdale entreolharam-se por um instante, então o arqueiro disse esfregando o cabelo verde:

— Eu compadeço com sua história, meu amigo. Por isso, não entendo uma coisa, se deixou a vila dos Cabelos-Duros ainda criança, por que não aparou toda essa cabeleira? Sei que está bem mais baixa do que o normal, ainda assim, se tivesse raspado tudo, muito dos problemas teriam sido evitados.

— Hum… — Clint travou buscando algo para justificar a sua cabeleira. A representação de sua raça.

— Eu sei, tudo que eu disse são meras suposições, pois nunca vi um Cabelo-Duro nato, e todo o meu conhecimento veio dos livros, só... essa tua reação só prova a verdade das minhas deduções. Vem cá, me conta uma coisa, dizem que a magia capilar de sua tribo é uma grande vantagem no campo de batalha, é verdade?

O arqueiro queria encontrar um ponto capaz de contornar todos os dilemas. Ele não era diferente de Liel nos princípios, só que entendia que um grupo de aventureiro forte não se faz com razão, e sim, com aliados poderosos.

— Eh… sinto muito, eu não herdei essa magia, nunca vi…. — Clint não conseguiu inventar mais nada, seus olhos rodopiaram nas órbitas, e por não ter o que dizer, disse a pior mentira possível, daquelas que cedo ou tarde iria se voltar contra ele.

Sobressaltou-se aliviado logo em seguida quando uma série contínua de ruídos secos rompeu o clima pesado da resposta mentirosa.

Uma carroça, puxada por vacas amarelas e cheia de bugigangas despontou na estrada, avançando de forma lenta e tranquila.

Foi repentino, mas aquela carroça já estava bem próxima deles. Era uma cena bem comum numa estrada, no entanto, ameaçadora para os companheiros, e de uma forma bizarra, bem animadora para o descabelado, já que salvou sua pele.

Não importaria se fossem bandidos ou coisa pior.

A luz do sol brilhava no horizonte por trás da carroça que vinha e impedia de ver com clareza os contornos dos viajantes.

Liel tomou a frente, sacou a espada e olhou angustiado ao redor, contando as silhuetas radiantes. Contou cinco pessoas e pediu ao deus Krig que não fossem uma trupe de bandidos, embora a situação e o estado da carroça mostrassem uma provável armadilha. 

Ramsdale armou o arco, puxou uma flecha da aljava e se apressou para se posicionar num ângulo vantajoso. Clint já não tinha a mesma pressa, não era o caso de temer uma batalha, mas por entender de imediato a situação daquelas pessoas viajando em silêncio numa estrada deserta.

Quando a caravana se aproximou mais, revelou-se uma família de nômades, um rapaz magro vinha caminhando na frente, guiando os animais, uma mulher caminhava no meio, junto da lateral, um homem atrás guarnecendo a retaguarda e duas lindas meninas empoleiradas sobre os móveis em cima da carroça, segurando em caixas, com os olhos grandes e brilhantes.

A mulher e o rapaz recuaram um pouco para trás ao se depararem com o grupo armado, as meninas se esconderam mais entre as caixas e o homem assumiu a frente. A expressão dele era ameaçadora, ainda assim, retraída. Ele tinha um bastão que exibiu como se fosse uma arma.

Ramsdale, vendo que se tratava de uma família, relaxou. Ele desarmou o arco e fez sinal para o líder do grupo.

Liel olhou bem, analisou e só então devolveu a espada para dentro da bainha, depois ele levantou o braço direito e encostou a ponta do dedo polegar na palma, então disse:

— Paz, boa gente; sua família, bom homem, não corre perigo!

Clint olhou aquilo, e não entendeu. Era evidente que aquelas pessoas eram fugitivas, mas de quê: escravidão? Criminosos? Guerra? Ele não tinha certeza, mas reconhecia aqueles olhares perdidos e apavorados, e sabia que essa família não iria relaxar somente com um aviso amistoso.

Só que o clima mudou de imediato. A mulher e o rapaz vieram para frente da carroça, as meninas começaram a rir e o homem também levantou o braço, só que o esquerdo, e também encostou um dedo na palma da mão, só que ele usou o dedo mindinho. Então disse, ainda desconfiado e atento:

— Glória; não temos posses, e só queremos um lugar para viver. O mal afligiu a nossa terra.

Liel continuava com o braço levantado na mesma posição. — Os deuses são a luz do mundo — ele disse, é só depois abaixou a mão. — Fique tranquilo, não somos ladrões e nada vamos tirar de sua família. 

O homem também abaixou o braço, e mais disposto falou:

— Os jovens são temente dos deuses, muito alegra minha família. Qual deus?

— O deus mais poderoso, senhor dos exércitos, guardião dessa terra e patrono do herói, Grande Urso. Só há uma divindade, bom homem, deus Krig!

— Bênçãos aos céus — disse a mulher, feliz. — Os jovens estão sob a luz do senhor das guerras.

— A luz dele, humilde senhora, e para todos que tenham sangue nas veias, por isso não há o que temer. — Ramsdale se aproximou da carroça. — Vocês têm água fresca?

Clint observou tudo em silêncio, ajeitando as laterais de sua camisa, pois não queria parecer um selvagem, para isso, já bastava a cabeleira e sua maça lisa.

— Não faz nem um braço de chão que passamos por um rio. — O homem olhou para uma das crianças, a maior. — Cintia, não fique parada, menina, dê água ao moço.

— Ah, papai, você só fala comigo... — Ela se levantou e se enfiou no meio das caixas.

Ramsdale deu batidinhas nas laterais da carroça com as pontas dos dedos, esse movimento criou um som agradável, quase melodioso.

A menina que ficou a encarar o arqueiro, a menor, enfiou um dos dedos na boca e começou a rir, vermelha de vergonha. A irmã voltou trazendo um jarro de barro, ela ainda estava chateada. O bico que ela fez era maior que a própria boca.

Ramsdale fez umas caretas engraçadas para consolá-la quando lhe entregou o jarro com água fresca, e depois se voltou para o homem.

— Obrigado, bom homem, já faz dois dias que eu e meus companheiros passamos por  um rio. Nossa botas de água estão secas. — O arqueiro bebeu um bom gole, em seguida passou o jarro para Clint. — Vamos, beba, está tão fresca que parece água das geleiras.

O descabelado bebeu a água, hu... delícia, pensou, então bebeu mais, e depois passou o jarro para Liel. 

Liel fez sinal de que não queria e encarou o chefe da família. — O que aconteceu? — perguntou, com a voz firme. — De onde estão vindo?

— Oeste, das terras das velhas macieiras, além da cidade de Boca dos Famintos. Tínhamos uma pequena choupana, com meia dúzia de porcos e algumas macieiras, não era muito, mas dava para enfrentar os invernos, um bom lar, mas o mal nos expulsou de nossa casa.

— É a região da vila Gurupi — disse Ramsdale, para Liel, de forma discreta.

Clint devolveu o jarro para o arqueiro, que interrompeu o aviso e voltou a beber mais água.

O descabelado então, olhou a cara assustada do chefe da família, mas não se importou com aquela história sobre males, males? Ele quase sorriu ao lembrar das feras do Coliseu de Prata.

O que importava era a informação sobre o trabalho, só que isso os companheiros poderiam resolver, já que uma missão era uma missão, e seu bando só teria que eliminar o que fosse que assustou a família daquele pobre homem.

Seus olhos procuraram uma vista melhor, e avistaram a filha caçula, essa, por sua vez, mesmo tímida, sorriu para o rapaz de vasta cabeleira. Ele se sentiu feliz, que lindinha, pensou, parece um botão de rosa.

Depois de uma conferida rápida pela carroça, porque queria agradecer de alguma forma a água que bebeu, ele percebeu que uma das rodas estava curvada, quase se partindo. — Veja... — disse para o rapaz, o filho da família — aquela roda tem muito peso, vai arrebentar. Venha, vou ajudar a arrumar!

Os dois rapazes foram mexer na roda.

— Qual é o interesse dos meninos nisso? — perguntou, desconfiada, a mulher para o arqueiro.

— Não pense errado da gente, humilde senhora, pois somos um grupo de aventureiros, e estamos respondendo ao pedido de missão da vila Gurupi em nome da Guilda dos Heróis.

— Qual foi o mal que expulsaram vocês de suas terras? — Liel não tinha a mesma delicadeza do amigo, por isso foi direto ao ponto.

— Tão jovens… eh, eu não faço ideia — respondeu ela. — Já vivo naquela região desde garota. Nunca apareceu nada tão assustador.

O homem balançou a cabeça, pensativo.

— Espero que não fique ofendida — avaliou Liel —, mas penso que está mentindo. Você acha que talvez...

Um irreverente suspiro de indignação que só podia vir da garganta de um homem no seu limite o interrompeu. Liel virou-se depressa e viu o chefe da família com olhos distantes. Estava pálido, mas não era por causa das palavras do loiro, e sim de medo.

— Você vai contar? — A mulher com olhos cheios de dúvidas para o marido, completou: — Lhe peço, meu marido, não faça isso, aquela coisa virá atrás da gente! — Mas suas palavras e a expressão receosa não foram suficientes para mudar a situação.

Os olhos escuros do homem se dilataram ainda mais, e por causa das da falta de brilho nas retinas, lembraram um lago negro.

— Jovens aventureiros, minha mulher não mentiu por mal, só evitamos falar daquilo, não queremos que siga nosso rastro. O mal não gosta de ser mencionado!

— Não se preocupe, bom homem, sua esposa não fez nada de errado. — Ramsdale sorriu e ajeitou o cabelo verde, queria transmitir confiança. — Mas imploro, vamos arriscar nossas vidas, por isso nos diga a verdade. O que há nas suas terras?

— As trevas do abismo! — Vendo o estado abalado do marido, a mulher criou coragem para falar. — A escuridão que habita nossos pesadelos durante o sono, o medo que espreita as crianças arteiras, a fome sem fim.

As duas meninas, apavoradas com as palavras da mãe, se abaixaram e desapareceram entre as caixas.

Clint estava agachado, usando o corpo para apoiar o peso da carroça. Com essa operação, o filho da família poderia aplumar o eixo da roda. O peso era grande, e estava difícil de suportar. Só que nada aconteceu, e o descabelado procurou raivoso saber o porquê da demora para consertar a roda e encontrou o garoto parado, pálido, suando e olhando para o chão, perdido nas sombras da lembrança; as palavras da mãe tiveram um efeito drástico nele.

— Ei, magricela maldito — Clint disse, com a testa vermelha e as veias quase estourando por causa do esforço —, arruma a porra dessa roda de uma vez. O que foi, um grilo entrou em seu ouvido?

— Qual mal? — Na conversa entre Liel e Ramsdale com o casal, o loiro perguntou para a mulher.

Como a mulher só suspirou porque estava perturbada demais, o marido respondeu com uma única palavra: — Varcolac!

Ao ouvir esse perturbador nome, Clint arregalou os olhos, se esqueceu de tudo, largou a carroça e se levantou. — É mentira! — afirmou exaltado. — Essas malditas criaturas não existem mais.

Dessa vez, foi o garoto, que ao ouvir que a palavra de seu pai foi refutada, se levantou ainda mais exaltado. — Não é mentira, não é… juro! — O seu corpo tremia todo. — Eu vi os olhos violetas sobre os primeiros raios de sol, tão roxos quanto carne de gente morta. Eles me caçam nos sonhos, me caçam acordado. Foi horrível! 

A reação do garoto abalou os pais. No entanto, Liel e Ramsdale ficaram encarando Clint, e ele entendeu que havia ido longe demais, só que ao deixar a carroça sem apoio, todo o peso desceu sobre a roda que cedeu, com isso, precisou apoiá-la outra vez, assim, escapou daquela situação.

Enfiado debaixo da carroça, o descabelado repetia para si mesmos: — É mentira, é mentira, é mentira… essa raça de vampiros foi eliminada.

...



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