Volume 1 – Arco 2
Capítulo 34: O Sábio Miserável Volta Para a Vida
— Mamãe…
O ar estava gelado e Guilherme imaginou que talvez fosse melhor ficar deitado até que o sol da manhã entrasse no quarto e o aquecesse. Sua mãe entraria também avisando sobre o ônibus do colégio.
Só vou precisar esperar os minutos passarem.
Não, não mesmo, me suicidei e fui condenado ao inferno?
Pera, eu salvei aquele garoto.
Ah… minha cabeça tá girando.
Foi um caminhão ou um rio?
Os dois!
Esfregou-se na palha seca e agarrou um punhado com as mãos, tentando dormir um pouco mais. Impossível, não conseguiu conciliar o sono com a sua situação. Já estava completamente acordado e tinha que encarar a realidade.
Notou que estava pelado, então passou a mão pelo corpo atrás do bilhete do açougueiro, mas não o encontrou.
O rio encarregou de se livrar daquilo.
Melhor assim, era agourento.
Mas…
Fora da toca do coelho, ele abriu o olho bom, virou-se na cama de palha e viu uma cabeça enorme querendo lamber sua cara.
— AAAHHN!!! — O grito lembrou o berro de uma garotinha assustada.
O ruído estridente do grito assustou o porco que correu aos tropeços para junto dos outros animais afastados num canto.
— Guilherme, que maravilha, você acordou — se alegrou a pedra. — Pode ouvir minha voz?
— Sim pedra, consigo ouvir sua voz rachada. Aqui não é o fundo do rio?
— O humor pelo menos continua o mesmo — finalizou a pedra.
— Eu não sou peixe e você não é camarão, mesmo que pareça um — disse uma voz feminina, com um leve tom de contrariedade. — Quem é a pedra? Está falando com esse colar preso no seu pescoço? Você é um maluco?
Guilherme levantou um pouco a cabeça. Seu olho bom demorou para se adaptar à falta de claridade do lugar, mas conseguiu fixar o foco numa silhueta.
Uma jovem, envolta até os pés numa aura dourada formada pelos poucos raios de luz do sol que conseguiam atravessar as paredes de madeira escura daquele estranho casebre.
Quase fazendo uma careta, ela encarou o Sábio. Parou, porém, ao encontrar o olhar emocionado dele fixo nela.
Guilherme a observou, maravilhado, encantado, feliz, enquanto ela tirava as mechas de cabelo cor de carvão que teimavam em cair no seu rosto corado e cheio de sardas, que mais parecia um morango maduro.
— É sério, sério, É SÉRIO ISSO? Não é um bicho com cara de cachorro, ou um carniceiro, ou uma maluca raivosa com um punhal. — O olho dele se encheu de lágrimas. — É uma menina, e não está com uma faca, ou coisa parecida.
— Claro! Vou ter que lidar com isso. É um maluco depravado.
— Mas por quê, quem é você? O que aconteceu comigo?
— Meu nome é Felipa, e está na minha casa, por isso exijo respeito, sem gracinhas, ouviu, esquisitão?
— Sim!
— Presta atenção. Não faço ideia do que aconteceu com você. Só te achei no rio. Você dormiu um mês inteiro, estava com muita febre, mas ela foi embora e os seus ferimentos já estão quase curados.
Guilherme passou a mão pelo rosto e sentiu bandagens úmidas.
— O que é isso na minha cara?
— É o que tô dizendo. Além de maluco é surdo? Cuidei das suas feridas com um unguento de ervas de cura. Mais alguns dias já vai estar bom o suficiente para dar o fora, seja lá pra onde vai.
— Por acaso planeja me expulsar? — perguntaram as trevas em seu coração.
Felipa ignorou a ironia na pergunta do Sábio. Sentiu raiva, mas foi conferir as bandagens no rosto dele.
Guilherme por um momento se alegrou, mas toda a emoção inicial foi perdida num piscar de olho.
Eu não posso me enganar mais.
É claro que vai me expulsar.
Esse mundo é podre.
Feito para pessoas podres.
Ele queria apenas um pouco de ar fresco e solidão, e não os cuidados de uma jovem com má vontade. Além disso, era verdade que não poderia ficar ali por muito tempo.
O fedor e ruídos dos porcos já estavam incomodando demais.
Que bosta de lugar é esse?
O Sábio analisou o casebre. Havia muita sujeira, lama, bebedouros imundos, palha seca e claro, os porcos por toda parte.
Estou num chiqueiro.
É isso!
Estão cuidando de mim junto dos porcos.
Valho tão pouco?
Todo esse mundo é como aquela cidade infernal.
Já tiraram tanto de mim, ainda querem mais.
Querem me humilhar.
Todo esse mundo merece queimar!
Um triste destino, uma terrível constatação.
Guilherme já viveu tantas dores querendo desempenhar o papel de herói, absorvendo todas as ideias e hábitos dos seus amados isekais e jogos, que se esqueceu da própria vida, momentos e sonhos, jogando tudo na lata de lixo.
O pesadelo que havia tido com Skog o lembrou bem disso.
O conceito de AVENTURA era arraigado nas páginas daquelas imundices e qualquer deslize se tornaria imperdoável.
Eu já paguei o preço!
Não é o bastante.
Droga, não é o bastante?
Você não vai ferir minha família, Skog!
Num dos extremos do chiqueiro havia uma porta que atraía o Sábio. Quis levantar e andar até lá, desejando sossego e ar puro. Só queria ir embora, incerto sobre onde iria parar.
— Você ainda não pode se levantar, idiota, vai abrir as feridas. — Felipa o impediu.
— Não importa, vai me expulsar. Não sou um dos seus porcos. As pessoas são miseráveis por natureza. — O Sábio deu uma risadinha maliciosa.
— Só estou cuidando de você, garoto. — Ela disse rangendo os dentes. — Como pode dizer algo assim?
Guilherme chegou a abrir a boca para responder, mas desistiu.
De que adiantaria tentar explicar para uma jovem desse mundo perverso, já que em nenhum lugar alguém se importou com seus sentimentos, sofrimento e desejos.
Ele entendeu que procurar conviver com essas pessoas mesquinhas, era a mesma coisa que dividir a cama com uma família de ouriços raivosos.
Essa gente não é para criar amizade.
Essa gente é para ser conquistada, com dor e sangue.
Nunca esqueça disso, Sábio Miserável!
Não vou voltar a ser aquele idiota ingênuo!
A bucha de canhão.
Ouviu-se o ruído da porta abrindo e fechando novamente. Guilherme ergueu a cabeça e olhou preocupado, querendo ver quem chegava para lhe fazer sofrer mais, pisar em seu coração amargurado.
Com apenas um olho e a Felipa lhe forçando para ficar deitado, quase não viu o sujeito.
A roupa simples misturava-se com os feixes de luz do sol, e ele andava com decisão, como se estivesse preocupado com alguma coisa. Os músculos brilhavam à luz tênue do lugar. O cabelo vermelho tinha o tom do fogo, que acentuava os olhos que pareciam favos de mel.
Tinha uma barba rala, que curioso, a cor dos pelo da cara eram diferentes da cor do cabelo, esses eram negros.
O jovem entrou no chiqueiro, com o tilintar alegre do choque de uma colher de madeira na tigela de barro que trazia na mão. Era bem jovem, cerca de 16 anos. Rosto simpático e sorriso cínico. O longo cabelo vermelho estava solto e caia sobre os ombros, dando-lhe um ar de selvagem.
— Que bom que voltou, crista de galo. — Felipa se alegrou. — Não tava mais aguentando esse garoto, tava quase mandando ele de volta para o rio voando com um chute bem dado no traseiro.
Quem é esse bicho?
É o namorado da menina irritadinha?
Que cara bonitão…
E agora isso, um Brad Pitt medieval.
Eu mereço, Droga!
O que digo para esse sujeito?
Se dissesse algo que o provocasse sem querer?
Ele acabaria comigo num piscar de olhos.
Minha situação já é ruim.
Pelo menos ele é bonitão.
Bosta!
— Ele acordou, que bom! — O Brad Pitt com crista de galo disse animado, olhando para Guilherme. — Quero muito falar com você!
A voz do sujeito chegou imperiosa aos ouvidos do Sábio Miserável. Prestou atenção naquela bela figura masculina e, para seu espanto, percebeu que a tigela de barro que ele trazia na mão tinha comida, uma espécie de caldo aguado.
Felipa, cautelosa e precavida, previa alguma situação ameaçadora. Ela disse algumas palavras em voz baixa que Guilherme não escutou bem, e o garoto riu de forma sarcástica.
— Traa, nem imagino. Ele não é perigoso — disse o crista de galo. — Só está cansado. Aposto que matou monstros terríveis e viveu grandes aventuras.
— Não é isso, Alonso, ele falou um monte de coisas estranhas. Estava falando com a pedra presa no pescoço, eu vi. Esse garoto não é normal.
— Tem fome? — O crista deu de ombros e estendeu a tigela de barro para Guilherme.
— Sim, muita! Quero comer boa comida, um magnífico assado, bolo de chocolate, frutas maduras, e…
O garoto bateu na própria coxa e começou a rir.
Ao perceber que suas palavras eram loucuras, o Sábio Miserável interrompeu de forma brusca o devaneio sem sentido. Perdido nas próprias ilusões. Depois de uma breve vacilação, pegou a tigela e viu o que tinha dentro, então indagou com ar de soberba: — Que porcaria é essa?
Felipa cerrou os dentes, e esse movimento fez um som distinto e alto.
— É ensopado de abóbora, não tem boa cara, eu sei, mas é muito gostoso e está quente. Garanto que é uma das melhores coisas do mundo! — O crista de galo lançou um sorriso ingênuo. — Vai, pode comer, vai deixar você forte.
Guilherme estava faminto, era inegável. Mas vendo aquela água sem cor, com alguns pedaços pálidos de abóbora flutuando, e junto disso o lugar onde estava, fez o seu orgulho gritar muito mais alto que a fome.
Ensopado de abóbora?
Essa gente não se cansa de brincar comigo.
Querem me rebaixar ainda mais.
Maldição, inferno!
Relembrando o sofrimento que passou na cidade de Carrasco Bonito, das pessoas esfomeadas na caravana, do sorriso da pequena Luci e do velho eremita ardendo na fogueira. Os seus sentimentos negativos afloraram num tormento angustiante, a cavidade escura no seu rosto, que uma vez foi um olho, ardeu insanamente.
— Hhe… Hhe… qquerem qque ccoma iisso…
— Guilherme, seu coração está sangrando — disse a pedra —, mas essas pessoas não querem seu mal. Se tem alguma dúvida, se pensa em veneno, use a sua habilidade para analisar.
Durante alguns segundos, O Sábio Miserável apenas olhou para aquele caldo ralo e sem cor.
A pedra não entende, é desrespeito demais.
Na Terra, tinha fartura, comida e guloseimas.
Esse mundo quer me transformar num animal.
Você sempre foi um animal!
Droga!
Não me importo com veneno.
Seria até libertador.
Mas esses olhares gentis, mas que nas mentes bolam formas para me humilhar, para me transformar em lixo.
Não!
— O que está pensando, que sou como essas bolas de banha rosadas? — Guilherme lançou a tigela aos animais. — Isso é comida de porcos!
Os porcos começaram a lamber o caldo que se espalhou.
Felipa apertou o braço do sábio, bem onde havia uma ferida mal fechada. Os olhos dela estavam distantes e vazios.
— Ai! Já não basta a comida ruim, agora vai querer me matar, é isso?
A jovem soltou o braço dele, suas mãos estavam tremendo.
O garoto de cabelo vermelho que não havia feito nenhum movimento até então, encarou Guilherme, que sentiu um profundo arrepio, por um momento pensou que havia passado do limite.
Que foi, é isso mesmo, otário.
Droga!
Vai lá, pega o machado, vem arrancar mais alguma coisa de mim.
Não me importo com mais nada.
— Tudo bem, por ter feito isso, só prova que ainda não está recuperado. — O crista de galo, com doçura, apenas sorriu, e após os porcos terminarem de comer pegou a tigela e saiu do chiqueiro. — Vou ver se consigo arrumar mais um pouco do caldeirão da dona Mia!
Felipa não falou nada, seguiu o garoto de cabelo vermelho e o Sábio Miserável ficou sozinho naquele chiqueiro, rodeado por porcos curiosos.
— Durante o tempo que ficou desacordado, vi esses garotos cuidarem de você. É na estupidez que escolheu viver, Guilherme — disse a pedra. — Por qual razão?
O rosto do Sábio transfigurou-se, fazendo transparecer suas feições quase infantis. Deitou na cama de palha, passou a mão sobre a cavidade vazia do olho e mordeu com força os lábios.
Sou o melhor e devo provar isso.
Acabarei com toda essa gente maldita.
Você quer que tudo queime, não é, Skog?
Que toda essa merda vá se fuder!
...