Volume 1 – Arco 2
Capítulo 33: O Sábio Miserável e a Casa dos Porcos
Guilherme estava dentro de um quarto desarrumado, que em muito lembrava o próprio quarto na Terra, mas tinha certeza que não era o dele.
Havia um garoto concentrado na tela de um computador, era bem jovem e o Sábio Miserável não o reconheceu.
Um homem trazendo uma bola de futebol entrou no quarto animado. Ele estava com a aparência diferente, responsável, só que Guilherme o reconheceu de imediato; era seu irmão mais velho, o Paulo.
— Lucas, meu filho, o dia está tão bonito, vamos no campinho bater uma pelada. Na volta a gente pode tomar sorvete — Paulo convidou o garoto.
Lucas? Então aquele garoto é filho dele. É meu sobrinho. Quanto tempo se passou na Terra?
— Não quero pai, não tou afim, é uma fase importante.
— Que isso, não acredito que vai recusar sorvete. Vamos, pode pausar o jogo para terminar depois.
Então Guilherme viu uma sombra diabólica ganhar forma e se aproximar do garoto, e no ouvido dele, cochichar palavras malditas.
― Que saco, pai, droga, não quero jogar bola com você, quero terminar o jogo ― disse Lucas. — Vai sozinho, e traz sorvete para mim!
A sombra diabólica olhou diretamente para Guilherme e sorriu. O sorriso daquela criatura era uma pintura vinda das profundezas do inferno.
No mesmo instante, Paulo lamentou-se baixo, e sua expressão mudou. A alegria de antes não estava mais lá. Então apenas saiu do quarto de cabeça baixa.
— Não, Paulo, irmão, arranque aquele garoto daquela cadeira! — gritou Guilherme. No entanto, suas palavras não podiam ser ouvidas. ― Não deixe ele cometer o mesmo erro que eu. É assim que começa.
O Sábio compreendendo que sua voz não alcançaria sua família, e dominado pela fúria, avançou contra a sombra diabólica. Só que um tufão de sombras e gritos o varreu para a escuridão.
Quando tudo parou de rodar, ele estava em outro lugar, um tipo de sala de estar, só que entregue a penumbra. A atmosfera do luto preenchia cada canto vazio com dor.
Numa poltrona, sentada e chorando, viu uma mulher.
― Mamãe! ― A voz do Sábio foi tão angustiante, que ao sair da sua boca, pareceu cortar-lhe a garganta.
Sua mãe não ouviu. Ela estava entregue a dor, abraçada com uma roupinha de bebê antiga.
Guilherme, dessa vez, nada podia fazer, pois, se encontrava acorrentado por tenebrosas e pesadas correntes negras.
O seu pai entrou na sala e passou através dele como se estivesse passando por uma neblina esquecida.
O homem foi até a mulher.
― Você precisa comer alguma coisa, minha querida, a vida continua.
― Eu não vou aceitar esse absurdo. A polícia estava errada. Meu menino não se matou!
― Foi a conclusão dos peritos. Tinha testemunhas.
― Eu não entendo. Se matar, pular na frente de um caminhão, por quê? A vida dele era tão ruim assim? Se ele não tivesse saído de casa, foi nossa culpa!
― Não, não, mãe, eu não me matei… salvei um garoto, salvei, eu… salvei!
Droga… maldito Skog!
― Não minha vida, não… fizemos o nosso melhor. Ele tinha o espírito de artista, não servia para esse mundo sujo. Já são três dias que você não come, vem, precisa comer para recuperar as forças e não ficar doente. O Paulo precisa da gente. Sua nora tá grávida, lembra, nosso neto.
― Não quero comer nada, já disse! Quero meu filho, quero meu pequeno coelhinho. A gente disse coisas terríveis para ele quando saiu de casa. Quanta dor, quanto sofrimento suportou sozinho?
― Não mamãe, papai… foi minha culpa ― Guilherme gritava, mas sua voz não chegava até os pais. ― Papai, mamãe!
Uma leve brisa passou pelo cabelo da mãe, foi um afago de mãos desesperadas. Ela olhou para trás: ― Guilherme!
Então, num canto escuro, o Sábio viu uma figura sinistra mudar a sua silhueta e assumir a forma de Guilherme, aquela criatura era a besta da ilusão.
— Mamãe — disse a besta, com o mesmo timbre da voz de Guilherme. ― Socorro mamãe!
A mulher angustiada, olhou para a direção da besta, mas só viu sombras.
— O que foi? — perguntou o marido.
— Eu fico ouvindo o nosso filho pedindo socorro. Estou enlouquecendo. — A mulher ignorou tudo e olhou na direção que Guilherme estava. Seus olhos estavam inundados de lágrimas.
Skog saiu da penumbra, atravessou a sala passando através de tudo, como se pessoas e móveis fossem apenas fumaça, e parou próximo de Guilherme. O deus chutou o estômago dele com violência.
O Sábio rolou pelo chão. Sentiu uma dor horrível.
— O amor dos pais pelos filhos é impressionante. Mesmo você sendo só um fragmento de razão. Ela ainda consegue te sentir. Quer que algum deles tenha o mesmo destino que o seu? Posso fazer isso!
Num canto escuro, surgiu dois olhos brilhantes e uma face medonha feita de ferro, era a besta do aço.
— Certo. Qual deles? — Skog perguntou com expressão maligna. — Que tal o seu sobrinho? Não se sente orgulhoso pelo garoto estar seguindo os seus passos?
— É você, você transforma as pessoas em seres malignos, deus infernal!
— Ainda nega a si a verdade, mortal estúpido? Os deuses não podem alterar nada, os deuses apenas influenciam o que já existe dentro de vocês. Quer vê-los sofrer?
— Skog! — Guilherme gritou. — Você já tirou tudo de mim. Chega! Deixe minha família em paz!
— Os caminhões precisam andar. Você não disse que os céus iriam desabar? Você é fraco demais, é miserável demais, é covarde demais! Quero ver o mundo dos homens queimar! Seu tempo está acabando, o inferno espera por você!
― Filho? ― A mãe olhava por todos os lados, mas não via nada. Mas o coração dela batia descontrolado. ― Guilherme, você está aí?
― Droga, droga… não quero mais ver, não! ― Ele continuou gritando no vazio.
(…)
Guilherme debatia-se, procurando sair do pesadelo. Ele estava deitado sobre uma cama de palha seca, havia sujeira por toda a parte e meia dúzia de porcos cheirando seu corpo e batendo as cabeças uns nos outros.
Os ferimentos estavam com bandagens limpas e uma rústica jovem estava cuidando dele, colocando panos molhados sobre a sua testa ardendo em febre.
Um rapaz forte e muito bonito se aproximou devagar.
Os porcos se afastaram da cama e foram chafurdar na lama. Aquele lugar desolador era dominado pelos suínos porque se tratava de um chiqueiro, sendo um péssimo ambiente para um enfermo.
O rapaz beirou a cama, usou uma toalha verde que tinha amarrada na cintura para secar as grossas gotas de suor que escorriam pelo rosto do Sábio. Ele jogou o longo cabelo vermelho para trás do corpo e começou a ajudar a garota. Com os olhos semicerrados, ele observou o infermo se contorcer na cama, delirando e batendo as mãos contra fantasmas invisíveis.
— Já falei para você raspar essa pelagem da cara, tá igual os porcos — disse a jovem numa forma amistosa. — Seu rosto feioso vai assustar o acamado.
— Não, irmãzinha, a barba de um homem é seu tesouro. São fios de ouro. É por causa da barba e cabelo que sou bonitão. E vai ser bom quando ele acordar e ver um rosto forte e seguro.
— Mamãe, mamãe, não, mamãe… — Guilherme delirava e gemia. — Chega, por favor, chega!
— Foi assim a noite toda — disse a garota, encarando o irmão.
— Traa, força, você é homem! Por quais terras terríveis sua mente está vagando? A aparência dele não melhorou nada, vai sobreviver?
— Com essa febre alta, esses machucados profundos, não sei! O olho dele foi arrancado pela raiz. Fiz tudo o que podia, usei os remédios de cura e limpei as feridas — disse a jovem , demonstrando incertezas. — Foi imprudência demais para com um moribundo, repousar num chiqueiro.
— Seu pai só permitiu que ele ficasse se fosse aqui. Não tive escolha. Aqui ainda é melhor que a boca faminta do rio. Sei que você fez tudo que era possível. É o ponto de chegada dele, não é mesmo?
A jovem concordou com um aceno de cabeça e uma expressão triste.
— Também não é o seu? — Ela perguntou em seguida. — Você pensa que não sei que quer usá-lo. Vai pagar o preço? Diga a verdade, o que você pensa fazer?
— O preço a pagar não é nada para mim. Eu vou me aventurar pelo mundo quanto antes pagar minha dívida de gratidão. É puro ouro, talvez a chegada dele fosse o sinal. É a hora de partir.
— Você não desistiu mesmo disso?
— Traa, traa, eu vou encontrar Last Downfall! Esse mundo será uma terra de abundância para todos.
— Você é um maldito crista de galo que só fala besteira. Last Downfall não existe da mesma forma que não há comida para todos. A única coisa que irá encontrar é uma cama para deitar em condições piores que esse miserável, se não for pior, uma cova rasa.
— Nada pode se opor diante o sonho de um homem. Mas por hora, só quero que ele sobreviva. Quero ouvir sobre suas aventuras. — O rapaz olhou para Guilherme. — Vamos, seja forte, não vou deixar você morrer, pelo deus Sjel, você não vai morrer, mesmo que eu tenha que agarrar sua alma e amarrá-la em seus pés.
— A pocaria de um idiota sonhador, bosta, é isso que você é. Você terá que pagar o preço sozinho, será o único prejudicado com ele aqui.
— Sou forte demais, irmãzinha, não precisa se preocupar comigo, seja o que for, eu aguento!
— Só você mesmo para se preocupar com um estranho, nem sabe que tipo de gente esse sujeito é. Uma pessoa boa não acaba dessa forma, com esses ferimentos; isso tenho certeza.
O que faz uma pessoa ser boa? O rapaz ficou pensativo. A pouca luz do lugar ocultou o brilho castanho de seus olhos, porém, ressaltou o tom vermelho do cabelo, transformando-o numa pintura vivaz.
Que tipo de gente ele será? O garoto não havia pensado nisso antes, boa ou ruim, que tipo será?
Aquele garoto poderia ser qualquer tipo de pessoa, isso era a única certeza, contudo, para ele as possibilidades não significavam nada, só não queria ver outra vida perecer diante de seus olhos.
Queria apenas esquecer. Esquecer todo seu passado de mortes e as crueldades que viu durante a infância. Apagar de sua mente a morte da mãe, e ainda que tenha se passado anos, ele podia sentir a textura pegajosa e quente do sangue dela sobre o seu corpo.
Ver o moribundo delirar com pesadelos horríveis e chamar pela mãe, o fez lembrar de seus próprios pesadelos, por isso foi capaz de simpatizar de imediato com suas dores.
— Não importa o tipo de pessoa. As suas feridas são a prova que já sofreu o suficiente para pagar os pecados.
— Você é inocente demais, um cabeça dura. Ao diabo! Não sabe nada desse sujeito e mesmo assim vai se sacrificar por ele. Meu avô morreu na luta que dividiu o império. Papai foi soldado da guarda branca, viajou por terras distantes, além das fronteiras, ele me contou histórias terríveis sobre os monstros que vagam famintos. A morte está em todo lugar. A vingança é o combustível que queima nas fogueiras do mundo.
— Não precisa falar isso para mim, traa, também ouvi as histórias.
— Tenho sim, porque a razão não consegue penetrar nessa carapaça vermelha que você chama de cabeça.
— Você não entende, nasceu livre, não tem ideia como são pesadas as correntes de ferro. Mas você é a melhor irmã de todo o mundo, por isso diga que vai continuar cuidando dele, que não vai deixar ele morrer.
A jovem soltou um suspiro baixo e preocupado.
— Existem horrores mais perigosos do que a morte, isso é verdade. Ahh… tanto faz, provavelmente você é capaz de arrancar a cabeça de cada um deles, ahh… eu vou fazer o melhor que puder, só por causa de você, irmão!
...
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