Volume 1 – Arco 1
Capítulo 9: O Protagonista Mentiroso
Por falta de uma opção para escapar daquela enrascada, Guilherme observava, as duas figuras imponentes atravessarem o salão, e como os outros aventureiros abriam caminho, de forma a evitar qualquer contratempo, respeitosos e obedientes, ignoradas como meros figurantes.
Alguns tinham bons equipamentos, indicando que os donos pertenciam a grandes grupos, outros eram apenas bêbados, mas todos baixaram as cabeças. O único que aguentou esperar aquele desfile e levantou caneca pedindo mais cerveja, foi o homem de cabelo azul.
Os dois homens pararam diante Guilherme, Cristã, Liel e os companheiros e analisaram a situação. Eles eram membros do grupo Gaviões Prateados.
— Guilve, Leon, desculpa, mas é tão bom ver vocês — disse Cristã, entusiasmado.
Classe A
✫ GUILVER ✫
Grupo: Gaviões Prateados.
Posição no bando: Líder.
Função: Combatente.
Glória: O sensível.
Um homem com um longo cabelo loiro, que de vista se podia afirmar quase um metro de comprimento. Ele usava um ornamento de pluma na cabeça que ajudava a prender o cabelo. 28 anos. 1,80 de altura. Pele branca. Magro, porém, os músculos eram fortes. Olhos claros, bem traçados.
Usava uma túnica vermelha e repartida nas laterais, com a pintura do gavião na frente. Calças e avambraços de couro. Ombreiras e peitoral de aço polido, e também luvas feitas do mesmo metal que as outras peças. Um laço vermelho prendia o cabelo num ondulado rabo de cavalo. Sua arma era um sabre de esgrima: A Fina Pétala.
A voz soava calma, mas por dentro ele estava louco da vida. Havia lutado muito para chegar ao ponto onde estava e não ia se sentir envergonhado por seus antecedentes. Usava equipamentos de boa qualidade, havia conseguido juntar prestígio o suficiente para que seu grupo despontasse entre os melhores. Tinha orgulho de tudo isso, e esses novatos arrogantes não iriam conseguir sobrepor as antigas leis.
◈◈◈
✫ Leon ✫
Grupo: Gaviões Prateados.
Posição no bando: Tank.
Função: Combatente.
Glória: Nunca mais.
Um homem com cabelo longo e preto, na parte de cima o cabelo era trançado, nas laterais raspadas. 30 anos. 1,86 de altura. Pele clara, mas rigorosamente bronzeada. Musculoso e com muitas cicatrizes ao longo do peito e das costelas nuas. Olhos pretos. Usava um saiote de pano grosso, na frente era decorado com um metal estranho, parecia escamas vermelhas. Botas e um cinto de metal tingido de amarelo. No braço esquerdo um avambraço longo e no braço direito uma munhequeira, ambos feitos com as mesmas escamas vermelhas. Sua arma era um robusto martelo de guerra, a cabeça de aço era maior que uma melancia, e tinha uma pedra azul em cada um dos lados: A Bigorna.
Leon, apesar de o trabalho de aventureiro ser bastante movimentado, ele se divertia com todas as aventuras. Suas tarefas não se restringiam apenas à retaguarda do grupo. Por muitas vezes acompanhou o líder em aventuras nada violentas, assuntos restritos. Em todas essas ocasiões, ele foi obrigado a tomar a dianteira de tudo o que precisasse ser resolvido, para garantir o bem-estar do amigo depois de ser ofendido por ter um coração mole. No fim, tudo acabava em ossos quebrados.
A sorte era que, depois desses compromissos oriundos, não precisava se dedicar tanto. Mas normalmente passava as ocasiões de folga fazendo as descrições dos erros, para que o grupo Gaviões Prateados pudesse evoluir cada vez mais.
Na verdade, Leon era um homem orgulhoso e sabia que, com as suas qualificações de batalha, poderia conseguir levar seu grupo para as classes superiores. O que ele não havia considerado era que seus constantes acessos de raiva algumas vezes levavam os amigos a se enfiarem em grandes problemas.
◈◈◈
— Desculpa, Guilve, eu criei confusão outra vez — disse o Cristã.
Guilherme se espantou como o escudeiro havia parado de tremer.
O que aconteceu com o franguinho assustado?
Ele parece outra pessoa.
Ele confia nesses caras tanto assim?
— Os aventureiros novatos são líderes para arranjar confusões. — Guilve cumprimentou o homem de cabelo azul, indicando que ele cuidaria desse assunto a partir de agora. — Os hormônios devem estar à flor da pele.
— Você é um chorão idiota, sempre arranjando problemas. — Leon deu um baita cascudo na cabeça de Cristã.
— Ai… isso doeu, Leon, você só sabe machucar as pessoas.
— Você está bem? — perguntou Guilve, e depois fez um carinho sobre a cabeça do escudeiro. Sua luva de metal criou um som agudo.
— Sim! — disse o Cristã com os olhos cheios d'água e esfregando a cabeça.
— Muito bem… — Guilve encarou Liel. — Você estava ameaçando o nosso escudeiro? Você é um aventureiro, não é, rapaz?
— Droga, claro, sou classe D: Manoplas da Força.
— É isso, foi o grupo formado há poucos dias. A inspiração do nome, se não estou enganado, é o Grande Urso.
Guilve pensou por um segundo e então disse:
— Não é vergonha para um aventureiro cometer um erro, vergonha é permanecer nesse erro. Dê esse assunto por finalizado, sem provas, não há nada a ser feito contra aquele rapaz.
Guilherme arregalou os olhos por causa da surpresa e respirou aliviado. Acabou de tirar mil quilos de preocupações de suas costas.
— Eu não estou errado — insistiu Liel. — Vão para o inferno todos vocês. Não vou ouvir o líder bicha de um covarde.
— Você é calmo demais, Guilve, e junto desse pomposo cabelo amarelado, nossa, é o pior de tudo. Por isso fracotes vivem te chamando de afeminado. Já falei para raspar a cabeça.
— Acho que você pode ter razão, meu amigo — Guilve disse rindo. — Mas eu gosto do meu cabelo. Você sabe o quanto gasto com poções hidratantes.
— Nesse caso, só há uma coisa a fazer…
Leon deixou a poderosa Bigorna cair no chão, todo lugar tremeu, e depois agarrou a cabeça de Liel com apenas uma das imensas mãos e o suspendeu como se não fosse nada; um saco de lixo. Então bateu com violência a cara dele contra uma das mesas redondas.
As mesas daquele lugar eram grossas e de madeira resistente, mesmo assim, aquela se partiu ao meio com facilidade, como se fosse apenas uma fina folha de papel.
Guilherme sentiu uma vontade imensa de rir, mas se conteve.
— Escute, classe D — disse Guilve, tão calmo como um lago no inverno, mas deu para ouvir o metal das luvas ranger quando estalou os dedos —, respeite o nosso ofício…
“Os aventureiros são os heróis deste mundo, são a última esperança quando tudo falha e os monstros sentem fome, por isso uma acusação sem provas reais é inaceitável. Uma afirmação inconsequente pode acabar com a vida de um inocente.”
Ao ouvir a palavra inocente, Guilherme sentiu um profundo aperto no coração. Ele gostou do que aconteceu com Liel, mas não podia mudar o fato que o grande mentiroso naquela encenação era ele.
— Provas? — continuou Guilve. — Escravos são obrigados a usarem as vestes da escravidão, correntes e cadeados. Eles podem se livrar disso tudo? É claro que podem…
“Ainda assim, se o retrato do escravo não estiver no quadro de recompensas, esse assunto não será da conta da guilda.
“Além do mais, é evidente que esse rapaz acusado nada tem de escravo, é nítido que é bem instruído e educado.
“Por sua vez, senhor da verdade, só é um camponês descomedido, que só sabe apelar para violência e gritos. Se não mudar seus modos, não irá demorar para ser expulso da guilda. E com muito menos tempo, será seu retrato que irá parar no quadro de recompensas.
“Esse assunto está encerrado. Não volte a envergonhar a boa reputação da guilda com acusações sem provas...viva como um herói, ou morra como um vilão!”
Ramsdale e Clint ajudaram Liel a se levantar, e independente de qualquer coisa, eles permaneceram unidos. O nariz do loiro estava quebrado e sangue jorrava dele, e também escorria da testa e dos ouvidos.
Guilherme sentiu inveja porque queria companheiros dedicados daquela forma, mas acima de tudo, se impressionou como Liel ainda conseguia se levantar, e tinha a certeza que se estivesse no lugar dele, já poderia encomendar um caixão.
Liel sussurrou alguma coisa para os companheiros. Eles o ajudaram a ficar de joelhos, e depois Ramsdale junto de Clint também se ajoelharam. Liel olhou desesperado, suplicando clemência ao Guilve.
O líder do grupo Gaviões Prateados olhou os três jovens prostrados, com a sua expressão séria e concentrada, olhos fixos em um ponto distante.
Seus lábios um pouco cerrados transmitiam compreensão, enquanto suas sobrancelhas levemente franzidas revelavam o nível de atenção que ele estava dedicando ao que estivesse o incomodando em sua mente.
— Por favor, peço perdão por minha ignorância. Meu grupo não tem nada a ver com meus atos.
Os três do Manopla da Força abaixaram as cabeças juntos.
— Fico feliz que ainda há homens de valor nesse mundo — comentou a pedra. — Cada um sabe onde a botina de ferro aperta.
Até quando esse pedregulho vai ficar babando o saco desse cara.
Tá chato isso.
Só espero que não se esqueça quem é o protagonista dessa história.
É o meu isekai!
Guilve estreitou um sorriso, cerrando os olhos e disse:
— Claro, vocês são jovens, têm o direito de errar, mas desde que aprendam. Porque no próximo erro, talvez não encontrem pelo caminho alguém tão gentil como o Leon.
Liel soltou um suspiro. Ramsdale e Clint ajudaram o companheiro a ficar de pé.
O garoto loiro com a cara ensanguentada olhou para Guilherme, não fez nenhum gesto, e não tinha raiva, não tinha expressão, ele apenas olhou por um momento, longo demais.
Guilherme viu naquele olhar uma fonte de água cristalina que refletia o seu verdadeiro eu, é isso, para aquele garoto de outro mundo, foi pior que qualquer surra.
Então os três membros do grupo Manoplas da Força se afastaram em silêncio.
Guilherme abraçou a sua bolsa de aventureiro e permaneceu parado, encostado no balcão, limitando-se apenas a abaixar a cabeça com um humilhante gesto de vergonha.
Ele poderia pular, sorrir, gozar de alguma forma daquele desfecho, afinal, havia assistido a queda de um inimigo, mas não conseguiu, o gosto amargo na boca acabou com o prazer do merecido castigo do Liel.
Droga!
Vim para um mundo novo para continuar sendo o mesmo?
Quero mudar!
— Espero que aceite meus votos de desculpa, em nome da guilda. — Guilve direcionou um sorriso para Guilherme. — Qual é seu nome, rapaz?
— Ele é um homem poderoso — comentou a pedra. — Seria um grande companheiro de batalha.
Guilherme não percebeu que suas ações contradisseram seu desejo de ser uma pessoa melhor, de certa forma, quem poderia culpá-lo por isso?
Ele viu uma oportunidade de ouro para conseguir proteção para os perigos desse mundo, e ter uma vida fácil, então não perdeu tempo.
— Meu nome é Guilherme, meu bom senhor. Meu sonho é ser um herói como você, o grande Guilve. A fama dos Gaviões Dourados ultrapassaram os céus. Peço que me aceite como companheiro de vocês, em tão estimado e fabuloso grupo de aventureiros; será uma honra.
— Em Bajular, o rapaz é bom. — Leon sorriu.
— Leon, sem piadas! — Guilve colocou a mão sobre o ombro de Guilherme, que sentiu o peso da luva de metal. — Não será possível porque já temos o Cristã, o escudeiro do grupo.
Não seja idiota.
Não percebeu que eu sou melhor que esse franguinho?
Tudo que ele sabe fazer é pedir desculpas.
Eu sou um herói e tenho uma besta lendária.
Aff, se pelo menos pudesse dizer isso.
Vou ser superado por um medroso.
Droga!
— Mas não desanime, porque seu sonho é justo. — Guilve tirou a mão do ombro do desolado rapaz.
Em seguida, ele deu um passo à frente e encarou o salão. O lugar silenciou, deixando Guilherme tenso.
— Caros aventureiros, haverá lugar no grupo dos senhores para esse bom rapaz que tem o sonho de ser como nós.
— Pra merda, Guilve rapariguento, tenho cara de senhora de orfanato — alguém gritou do canto esquerdo.
— Não é sonho, é pesadelo, Guilve, seu maldito. Pois se é tão bom, que fique com você essa ponta de flecha quebrada — outro gritou da direita e depois se acabou na gargalhada.
— Ele morrerá na primeira missão, não vê? É desperdício!
No último escárnio, Guilherme nem tentou localizar, já que não importava mesmo, ninguém queria aceitá-lo.
O homem de cabelo azul encarou Guilherme, esboçou um sorriso, mas depois de arrotar, voltou a beber sua cerveja.
— Desculpe, seria bom ter alguém como eu no grupo para dividir os cascudos do Leon.
— Maldito cabeça de funil. — Leon deu outro cascudo no escudeiro.
Cristã foi mais esperto e protegeu a cabeça com o escudo. Leon apertou a força do golpe e bateu com tudo na chapa de madeira, criando um alto estalo. Com a pressão da pancada, o escudo bateu três vezes mais forte contra a cabeça de cristã.
— Guilherme… — Os galos se multiplicaram na cabeça do escudeiro bocudo. —, você ainda pode criar seu próprio grupo na guilda.
— O chorão tem razão — disse Leon ao levantar a Bigorna e colocá-la sobre o ombro. — Só precisa passar pelo teste.
— Teste, qual teste? — Guilherme coçou a cabeça.
— O teste de poder mágico. Isso é comigo. — A atendente colocou um grande cristal sobre o balcão. — Obrigada, Guilve! A guilda sempre pode contar com o grupo Gaviões Prateados.
— Não se preocupe com a mesa quebrada, pode descontar do soldo da próxima missão — disse Guilve, e depois se ofereceu para explicar o teste: — É só colocar sua mão sobre o cristal. Ele mostrará o nível do seu poder mágico e se for suficiente para os padrões, poderá criar um grupo com a benção e a proteção da guilda.
Para demonstrar, Guilve tirou a luva de metal e colocou a mão sobre o cristal, que em seguida brilhou numa intensa luz branca.
— Claro, o poder mágico negativo não será aceito — ele concluiu e tirou a mão do cristal, cedendo a vez para Guilherme.
O rapaz nervoso, com os olhos esbugalhados, encarou o cristal no balcão com muito cuidado.
Poder mágico negativo?
Trevas?
Puta merda!
...