Last Downfall Brasileira

Autor(a): VALHALLA


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 10: O Protagonista Não Sabe Jogar

A visão do brilhante cristal abalou a confiança de Guilherme.

Permaneceu plantado como uma bananeira na frente do balcão, limitando-se apenas a suspirar o ar dos pulmões com um certo toque de desespero.

Os olhos trêmulos fitaram a atendente.

— Que cara é essa, vamos, você quer ou não quer criar um grupo de aventureiros? — Impaciente, a atendente bateu no balcão. — Coloque uma das mãos sobre o cristal.

Guilherme fingiu tossir, num gesto disfarçado.

Ele era o que se podia comparar com a imagem de um gatuno pego com as calças arriadas. Custava-lhe muito admitir, mas havia cometido um erro.

O pedregulho vai torrar a minha paciência.

— Herói, é outro adversário — perguntou a pedra —, o que está acontecendo?

— Não é nada — sussurrou.

O conhecimento das melhores histórias de isekai e horas dos difíceis jogos de RPG, não o prepararam para uma sequência complicada de acontecimentos como a que esteve enfrentando nesse mundo.

O clichê dessas histórias seria: uma situação difícil para dar um pouco de carga emocional e uma sequência de situações fáceis para inflar os egos dos comodistas.

Simplificando: mamão com açúcar.

Desde que cheguei nessa cidade só estou me lascando.

Taunt… 

chega né, cadê minha recompensa?

Não podendo recuar e torcendo como louco por uma grata surpresa, Guilherme colocou a mão esquerda sobre o cristal.

O cristal, apesar de ser da cor branca opaca, tinha uma aparência de um vidro polido. O seu interior se clareou primeiro, que lhe estendeu o brilho para cada uma das partes pontudas e arredondadas, não muito forte, lembrando um lampião já sem gás.

Um fraco brilho que não causou espanto. O que deixou todos desnorteados foi a intensa e profunda cor escura.

Uma cor escura linda.

Sim, era essa a primeira impressão.

Mas os olhos de todos em volta se estreitaram e começaram a se afastar.

— Nunca vi poder mágico com escuridão tão intensa, e essa textura, parece que está viva — comentou surpresa a Atendente. — É o próprio alcatrão vindo das profundezas da terra.

— É isso, sinto muito garoto — disse Leon se afastando e arrastando o Cristã junto.

— Espera, espera. — O bom escudeiro parecia triste enquanto era arrastado pela gola do colete. — Desculpe!

— A valhalla não é justa. Nem todos os sonhos podem ser realizados. Você ainda pode ter uma fazenda, plantar batatas, criar porcos.

Guilve apertou de forma amigável o ombro do rapaz, porém usou força considerável, foi como um aviso para se manter na linha certa.

Guilherme sentiu a pressão da luva de metal daquele homem, e estremeceu.

Depois, o líder dos gaviões prateados sorriu, mostrando seus dentes bem alinhados, e se afastou aos poucos com gestos melancólicos. Então seguiu os passos dos companheiros para longe.

Porcos e batatas? Bataaaaatas?

Vá você plantar batatas!

Não enfrentei o caminhão assassino e vim para um mundo novo e plantas batatas.

Vou ser o herói!

A atendente guardou o cristal. Suas feições eram pesadas e nada convidativas, não que antes fossem, mas agora ela parecia perigosa.

— O que isso significa?

— Você não pode fazer a inscrição na guilda. Se afaste do balcão, dê espaço para os aventureiros de verdade. Lhe aconselho deixar esse prédio rápido, os de almas sujas não são bem vindos.

— O que? Só por causa do cristal. Ele pode estar errado.

— Não, o cristal não está errado. Você já causou muito problema para a guilda, seu lugar não é aqui. Se insistir, vou encontrar três bons aventureiros para lhe aplicar uma lição. Vá, vá, não quero ver mais sua cara.

A garota ajeitou as suas luvas brancas e lançou um olhar de desprezo.

— Eu queria ver o seu rosto, herói — disse a pedra —, agora deverá estar rachado ao meio.

Guilherme engoliu a seco.

Ele se afastou do balcão que estava todas suas esperanças e mesmo se fazendo de desentendido sobre aquela situação, sabia bem dos motivos de sua queda. Cumprimentou a atendente com um aceno de cabeça e um sorriso frio, contendo o restante do seu orgulho.

Na verdade, até pensou em contar que era da classe dos sábios, sobre sua besta lendária e Last Downfall, e toda aquela loucura dos últimos três dias.

Imaginou contente a cara de espanto de todos eles.

Mas lembrou da pedra dizendo FAÇA ISSO; NÃO FAÇA AQUILO e tudo mais sobre DESTINO DE HERÓI.

O pedregulho estava certo sobre o perigo do poder mágico das trevas.

Droga…

Pode estar certa o tempo todo.

O quanto estupido eu sou?

Além do que, se eu falar qualquer coisa, decerto, quando mostrar a pedra, só iriam me chutar para fora nas gargalhadas.

Sou noob?

Ainda há muito o que posso fazer.

Não vou arriscar!

Decidiu não falar nada e se afastar do grande balcão de madeira, caminhando na direção do quadro de recompensas.

O rapaz, cabisbaixo, trombou numa garota, que quase derrubou a bebida dela. Ela não era uma das garçonetes, porque estava vestida como uma aventureira.

Ele não se apegou nos detalhes, já que ficou hipnotizado pela sua beleza. Longo cabelo negro e um olhar encantador; uma garota charmosa.

— O lugar de homens fracos é atrás das saias das suas mães — ela disse sem piscar. Parecia conhecer aquele pobre miserável, então, depois desapareceu em meio ao tumulto do salão.

É charmosa.

Mas tem a doçura de um ouriço.

Tô fora! 

— Não é pedra?

— O que?

— Esquece… — Sorriu de leve.

Guilherme não podia continuar a perder a concentração fácil, devido a situação, então focou apenas no quadro de missões.

Examinou-o com calma, viu alguns retratos e nomes de procurados, só que todas eram missões com o valor de moedas de bronze. Anotou alguns nomes interessantes no seu pergaminho.

Nossa, tem até uma cigana...

Vou pedir a ela para ler minha mão, talvez essas coisas funcionem nesse mundo.

Bosta, o pior é que nem vou poder reclamar para mim as recompensas desses fracotes.

Mas poderei jogar outro jogo, é isso!

Sou das trevas, né, bando de idiotas?

Esses bandidos são todos de nível bronze, apenas galos de crista baixa, e devem ser uns manés bêbados, ladrões de migalhas.

Podem ser transformados em bons peões no meu tabuleiro.

Não sou digno?

Vão se arrepender!

— Tem algo de errado em você, além do vasto campo de mentiras.

Uma voz familiar retirou Guilherme da toca do coelho.

Era a voz de Ramsdale que junto de Clint, davam apoio para Liel conseguir ficar de pé, os danos do ataque de Leon foram mais profundos do que se podia imaginar.

— Vocês estão felizes com a minha ruína?

— Engana-se novamente, escravo. Eu sei o que vi no vilarejo. Você é maligno e não vai demorar para seu retrato estar nesse quadro. Nesse dia, vamos buscar sua cabeça.

— Minha cabeça? — Um longo suspiro. — Talvez tenha razão.

Liel e os companheiros ficaram em silêncio durante alguns segundos. Tentaram enfrentar o olhar estranho daquele rapaz, mas foram obrigados a desviar os olhos, já que naquele momento não podiam fazer nada. Então se afastaram.

— Quero pedir desculpas, não é justo. — Cristã se aproximou de Guilherme.

— Você? Como assim?

— Desculpa, mas não é justo, pessoas como Liel ter fonte mágica positiva e você ter fonte negativa. Não é culpa sua, não podemos escolher como nascemos.

Guilherme sentiu uma pontada no peito e sorriu ironicamente.

Bosta!

Ele se recompôs e voltou a concentração no quadro de recompensa, coçando a cabeça.

— Guilve não vai te castigar por vir falar comigo?

— Não, não… Guilve é um homem justo. O admiro muito. Só deve se preocupar com ele, caso o seu retrato esteja neste quadro.

— Nesse quadro, aqui só tem recompensas no valor de moedas de bronze?

— Sim, porque são as missões de nível bronze. As missões prata e ouro, estão separadas, só podem acessar os aventureiros de classe alta.

— Por que?

— Ah, desculpe, não sabe? É para evitar o suicídio dos grupos D e C. Muitos deles, a ganância é maior que o poder. O que você pensa: Liel iria se contentar com moedas de bronze, ou iria atrás de uma prata, ou até ouro?

— Verdade! — Guilherme riu. — Mas Liel é forte, eu sei, é tão difícil assim?

— O que, as de ouro? — Cristã estranhou. — As de prata são difíceis para Guilve e Leon, e você viu como são fortes. As de ouro, seriam suicídios até mesmo para os aventureiros do nível deles.

Guilherme se surpreendeu. Liel era muito mais forte que ele, e Leon lidou com aquele infeliz como se não fosse nada. Se para pessoas fortes como eles, havia missões inalcançáveis, não dava nem para imaginar o poder das criaturas nível ouro.

De repente, Cristã ficou estranho, seus lábios estremeceram, enquanto o rosto se contorcia no espanto. Dava para perceber o tremor das mãos por baixo das luvas de couro.

— O bando de mercenários, Circo Horror, é um exemplo — continuou o bondoso escudeiro. — Os membros de alto escalão, valem em média uma moeda de ouro cada. O valor do líder é ainda maior.

— Eles são tão perigosos assim?

— É difícil lidar com esse bando porque suas identidades são um mistério. Ninguém nunca sobreviveu depois de ver o rosto de um deles.

— Que perigo. Não há nada sobre eles?

— Apenas uma tatuagem: O Pierrot. Olha que eles nem são os piores, há bandos tão perigosos, que só de mencionar o nome deles é má sorte. Isso sem mencionar os vilões de nível esmeralda; esses são verdadeiros demônios.

— Nossa!

— Desculpe, mas vocês não faz nem ideia. Por isso a arrogância das classes baixas é fatal.

— Sobre isso, posso fazer uma pergunta?

— Claro, pode sim.

— É sobre o sistema das classes, em especial, a do papai smur… digo, o homem de cabelo azul, apesar de ser classe G, ele estava bem à vontade? Também, você não mencionou a classe G junto das classe D e C, para determinar a inferioridade, por que?

— Eu não conheço esse aventureiro, mas Guilve e Leon o respeitam. Desculpe, mas você não pode usar a classe G como referência, mesmo que na teoria seja a mais baixa, porque nem sempre é a verdade, entende?

— Não!

— Desculpe, não expliquei direito. A classe D é a iniciante, depois dela se escala para as superiores: C, B, A, S, SS.

Cristã olhou para o homem de cabelo azul, ele estava se engraçando com outra garçonete enquanto secava mais uma caneca de cerveja. A atendente, raivosa, jogou um pedaço de madeira na cabeça dele.

— A classe G é um castigo — continuou o escudeiro. — E não irá importar o nível, se fizer algo de errado, vai parar na classe G e perder muito dos privilégios, e ainda tem a vergonha.

— Quais privilégios?

Cristã não respondeu. Nesse momento, suas mãos tremeram. Olhou por todo o salão.

— A vida no mundo fora da guilda não é fácil. Fome e guerras. Violência e morte. Muitos aqui não queriam ser aventureiros. Mas a guilda concede comida e bebida para todos os membros, independente da classe. Se um aventureiro de classe D conseguir cuidar de uma missão de nível bronze uma vez ou outra, poderá viver com fatura e sem preocupações.

Ele voltou a olhar o quadro de missão.

— Há a convocação dos Heróis da Cruzada, onde todos os aventureiros são obrigados a lutar, mas eu nunca vi uma. O teste do cristal serve para evitar sobrecarregar o sistema da guilda.

— O que aconteceu com esse mundo? E errado — perguntou a pedra —, por que estão separando os heróis numa forma tão desonrosa? Os alimentando como porcos. 

Guilherme suspirou resignado.

— Não é justo.

— Desculpe, o verdadeiro motivo é que o sol não brilhará para todos. Há outra forma de entrar, eu entrei assim, através de um convite de um grupo já consolidado. Desculpe, não pensei direito, você viu que não é assim tão simples.

— O problema não é esse.

— Desculpe, só tome cuidado para não parar nesse quadro.

Com um sistema tão injusto, não seria difícil para qualquer um acabar com uma recompensa pela cabeça.

— Quem toma todas as decisões?

— Eles são inalcançáveis. Podem criar nações e desfazerem reinos. Dizem que são os aventureiros mais fortes do mundo: o concelho das Guildas.

O Concelho das Guildas é responsável por conectar e manter a união das guildas espalhadas pelo mundo. Além de ser a guardiã do código do aventureiro: viva como um herói, ou morra como um vilão. O código é a lei das guildas.

◈◈◈

— Cristã, basta, cabeça de funil. Guilve quer partir, vamos para o sul — chamou Leon.

— Desculpe, certo, estava dando algumas dicas para ele.

Cristã olhou fixamente para Guilherme, tremendo e todo encolhido.

— Muito bem, Cristã falou a verdade, obrigado por se importar comigo. Não me apresentei direito, meu nome é Guilherme. Desde já, garanto, se um dia te encontrar com dificuldades, vou te ajudar. MINHA PALAVRA É MINHA HONRA!

Droga!

Queria usar: ESSE É O MEU JEITO NINJA!

Mas não ia combinar para esse mundo.

Nah… paciência, o que vale é a ideia!

Vou poder usar a frase do meu anime favorito da infância.

Ficou irado!

 vou adotar como a minha frase de impacto.

Não posso esquecer de anotar.

Cristã sorriu e depois correu até Leon. O garoto estava prevenido, sem sombra de dúvidas, não queria levar outro cascudo e não disse mais nada, apenas se virou e saiu andando na direção onde estava o restante do grupo Gavião Prateados com um brilho orgulhoso nos olhos.

— Maldito garoto molenga, coração mole, por isso Guilve gosta tanto dele — ilustrou Leon olhando o escudeiro que já ia à frente e depois ele parou por um momento, encarou Guilherme e disse: — Não esquecer suas promessas é a forma de mostrar honra. Boa sorte, rapaz.

Leon se juntou com seus companheiros.

Se eu tivesse entrado no grupo deles, tudo seria mais fácil.

Eu preciso de companheiros, ou preciso de poderosos equipamentos, não sei. 

Sozinho vai ser difícil.

— Ei, pedra, eu preciso de companheiros, o que você acha?

— O velho tolo é pior que o velho cego. Se continuar a tomar decisões erradas, receio que nossa aventura não vá durar.

— Não acho, veja o tanto de informações que consegui.

— Conseguiu? É algum tipo de brincadeira? O bondoso escudeiro praticamente jogou tudo em cima de você.

— Vai reclamar? Esqueceu dos meus pontos de carisma? Agora é fácil torrar a minha paciência, mas aposto que muitas dessas informações, você nem fazia ideia. Besta da sabedoria, sei… é isso a piada.

— Herói! Por qual razão me tomas como um tolo, hein? — A pedra gaguejou — Não é minha culpa, estive distante…

— Tá, tá, tá... chega de choramingar. Eu ainda tenho que pensar numa forma para sobrevivermos, já que a ideia da guilda desceu pelo ralo. Tantos benefícios, tudo seria tão mais fácil.

— De quem é a culpa?

Sem maiores explicações, Guilherme sacudiu a pedra por dentro da camisa, encaminhando-se à porta de saída.

— Cala a boca, pedra!

Ao pensar que o pior já havia passado, Guilherme se enganou redondamente.

Saiu da guilda, o sol a pino era como os verões escaldantes do cerrado de Tocantins, e imediatamente sentiu sede e fome, sendo que só lhe restava uma moeda de bronze. O coração se apertou de angústia.

Arranjar uma forma de ganhar moedas será a fórmula para sobreviver.

A guilda tinha poder e dinheiro, entrar numa sempre foi o básico dos Isekais, só que para aquele rapaz de outro mundo, não iria funcionar dessa forma e precisaria arranjar outras opções.

Talvez posso ser um carpinteiro já que no fichário do jogador tinha a opção arte: carpintaria.

Criar porcos numa choupana?

Nem pensar, o cheiro desses bichos é horrível.

Plantar batatas?

De forma alguma!

Só opções terríveis, ninguém iria gostar de uma história sobre um criador de porcos ou plantador de batatas.

Quero ser o herói!

Sou o herói!

Guilherme saiu da toca do coelho despreocupado e olhou, admirado, a grande cidade diante dos seus olhos.

Carrasco Bonito já se havia mostrado movimentada e cheia de vida. Quem sabe o que tinha reservado em suas ruas e vielas para ele, enquanto for capaz de manter sua esperança.

Só que de nada irá adiantar para livrar seu coração da dor.

Guilherme foi uma pessoa fria e distante, parecendo impaciente para ignorar os conselhos de sua besta. Por isso, não havia mais esperanças, apenas não conseguia perceber.

Teria de aprender a sobreviver, embora o coração lhe doesse ao simples pensamento de que perdeu a oportunidade de entrar na guilda dos heróis e toda a vida fácil, que nunca mais veria aqueles fantásticos olhos azuis cheios de energia e disposição da Atendente.

Era tão bonito ver a azulzinha lidar com aqueles bandos de brucutus, a garota sabia como impor sua autoridade, que era quase insuportável pensar que aquelas cenas de companheirismo nunca mais voltaria a testemunhar.

Olhou para os prédios da cidade, a luz do sol iluminava os tijolos de barro.

Bem, não posso fazer mais nada.

Chorar sobre o leite derramado não vai lhe transformar em queijo.

Não mesmo.

Eu consigo lidar com essa cidade, eu consigo!

Guilherme sorriu.

...



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