Volume 1 – Arco 1
Capítulo 8: O Conflito do Protagonista
Guilherme continuava entre Liel e o escudeiro Cristã.
Os segundos naquela enrascada sucediam cinzentos. Depois do embate dos garotos e das promessas de ossos quebrados, a guilda, vestida de brutalidade, estava mais animada. O ar tenso tomava conta do lugar, tornando impossível um desfecho pacífico.
A Atendente encontrava-se possessa e, para aliviar-se, batia com as mãos contra o balcão de madeira, chamando pelo encrenqueiro e o pequeno escudeiro assustado.
O choque das suas luvas emborrachadas contra a madeira criava um som abafado e engraçado. Não dava para afirmar quantos insultos haviam sido pronunciados desde o primeiro murro no balcão.
A Atendente nada lembrava a garota disposta de alguns minutos atrás.
— Se afasta dele, Cristã. Guilve não vai gostar disso. — Ela fez uma careta para Guilherme. — Droga, é culpa sua, e não vai fazer nada?
Guilherme até pensou em fazer alguma coisa, mas suas opções eram: falar a verdade ou enfrentar Liel. Então se encolheu atrás do escudo de madeira do escudeiro, evitando qualquer contato visual.
Vou ficar na minha, quieto, deixar que esses patetas se resolvam.
Sabia que a minha jogada ia ferver o bule.
Nesse mundo não há gravações e nem fotos; os celulares não existem.
Não dá para o Liel provar nada.
Mas se tiver? Não tem!
Fiz bem trocar de roupa.
O tal Cristã veio se intrometer nos assuntos dos outros.
Não, veio te defender!
Que se foda, se tiver que levar uma surra, que seja ele.
É só eu ficar quieto e dá o fora pianinho, depois vejo isso de Guilda.
Você é um covarde…
Tifuder, consciência!
Não posso usar minhas habilidades, não posso vencer… sou inocente!
— Desculpe, senhorita Atendente, mas não vou recuar — Cristã tremia mais que vara verde. — Ele errou em acusar uma pessoa sem provas. Não é a forma de um aventureiro agir.
— Liel, chega, você está errado! — A Atendente socou com força o balcão, criando um alto estalo.
Liel parou por um momento.
— Tenho meu direito. Sou um aventureiro da classe D: Manoplas da Força. Tenho provas que falo a verdade.
Liel, junto dos companheiros Ramsdale e Clint haviam fundado o grupo de aventureiros Manopla da Força há menos de um dia. O orgulhoso símbolo do grupo: as manoplas cruzadas. O modelo era uma réplica das manobras de um grande aventureiro do Império Tusso do Norte: O Grande Urso.
✫ MANOPLAS DA FORÇA ✫
Classe D
Manoplas da Força: Grupo de aventureiros da classe D.
Glória: Ainda não há feitos para serem mencionados.
Grupo novato de aventureiros. Criado por Liel e os companheiros, Ramsdale e Clint.
◈◈◈
O QUEEE!
Pera, pera, pera…
Provas, como assim?
Guilherme, na Terra, participou de muitas mesas de poker, e se lembrou da expressão — é a cara de jogador de poker que entrega as fichas — mas, nesse caso, a sua falta de expressão parecia pouco humana e aumentava a sensação de fragilidade que ela transmitia.
Liel olhou para uma mesa próxima.
— Ramsdale, venha aqui, e traga Clint junto, vocês vão dizer para todos que minhas palavras são verdadeiras.
✫ MANOPLAS DA FORÇA ✫
Classe D
✫ LIEL ✫
Grupo: Manoplas da Força.
Posição no bando: Líder.
Função: Combatente.
Glória: Ainda não possui fama.
Um rapaz de cabelo loiro, com o corte baixo. Pele clara. Olhos castanhos. 17 anos. 1,88 de altura. Usava uma camisa branca de mangas compridas, calças marrons e botinas de couro. Um cinto de couro com uma pequena bolsa acoplada. A sua arma era uma espada média de punho de uma mão.
Ele não mostrou uma centelha sequer de arrependimento pela inegável confusão na guilda. Liel não havia chegado aos 17 anos sem acreditar que o orgulho era a palavra de um aventureiro.
E a absoluta indiferença que os fortes demonstravam com os fracos deram-lhe uma ferroada no amor-próprio, ainda muito novo, e mesmo assim se ergueu para buscar seu lugar entre os grandes heróis da história. Para ele era inaceitável ter sua palavra questionada, ainda que fosse numa situação desfavorável, já que tinha plena certeza da verdade.
◈◈◈
✫ RAMSDALE ✫
Grupo: Manoplas da Força.
Posição no bando: Arqueiro.
Função: Atirador.
Glória: Ainda não possui fama.
Um rapaz bonito. 17 anos. 1,75 de altura. Pele clara. O cabelo era de tom esverdeado, cortado baixo. Sua vestimenta era: camisa escura, calças brancas e botas de couro com cano longo que iam até perto dos joelhos. A arma era um arco simples e uma pequena aljava com meia dúzia de flechas.
Na guilda, Ramsdale examinou os aventureiros, procurando a melhor forma para lidar com esse problema. Era alguém acostumado, com as confusões do amigo, as quais na maioria das vezes pessoas terminavam seriamente feridas. Mas nunca recuou, porque aprendeu cedo junto do amigo de infância, Liel, uma importante lição: no mundo não há espaço para fracos.
◈◈◈
✫ CLINT ✫
Grupo: Manoplas da Força.
Posição no bando: Tank.
Função: Combatente.
Glória: Ainda não possui fama.
Um rapaz alto, 1,90 de altura. 19 anos. Forte, de cabelo escuro, grande e desarrumado, e com a barba por fazer, criava uma figura selvagem. Pele clara, mas queimada pelo sol. Suas vestes eram apenas, calças escuras, botinas de couro e um cinto, também de couro. Sua arma era uma maça de globo único e liso.
A barba rala do Clint estava ligada a duas mechas de cabelo que escorriam de cada lado e não adiantava ele puxar tentando arrumar. Até que desistiu, depois de muitos puxões, o cabelo parecia ter vontade própria, querendo ressaltar a aparência do dono.
◈◈◈
Uma expressão de leve agrado surgiu no rosto de Liel vendo os companheiros, como se achasse divertido aquele lampejo de orgulho. Mas logo voltou a mostrar-se impassível.
Ramsdale pediu passagem e, com dificuldades, conseguiu avançar. Os olhos claros olhavam para todos sem transmitir emoção alguma.
Os cantos dos lábios de Clint se curvaram ligeiramente, mas não chegou a ser um sorriso. Ele notou que os companheiros não iam recuar, como se esperasse por isso. A maça escorregou entre a mão e a segurou forte, após uma ligeira hesitação, levantou a arma apoiando com a outra mão e apresentou um olhar confiante, que parecia consciente, que precisaria suportar a encrenca.
Não faço ideia quem é o cabeludo.
Mas Liel e Ramsdale estavam melhor equipados.
Os itens eram simples e fracos, mas estavam mais fortes, e já haviam até fundado o próprio grupo de aventureiros.
Não posso negar.
Droga!
Esses miseráveis, até isso são melhores que eu, malditos!
A presença de Ramsdale e Clint deixou Guilherme mais assustado. A sensação primitiva que tornava todas as pessoas um pouco gatas ariscas, fazendo-as temerem situações tensas ou o confronto diário contra o desconhecido, surgiu dentro dele ao ouvir a palavra: provas.
O destino era algo em que não acreditava e quase sempre fazia chacota dos méritos da mão poderosa tecendo teias invisíveis entre sua jornada.
Quando ele pensou sobre os acontecimentos, até podia arrepiar.
Esse miserável quer fuder comigo.
A pedra estava certa.
Tenho que dar meu jeito.
Negar, e negar até o fim, é o remédio para todas as nossas cagadas.
É isso!
Ramsdale e Clint se aproximaram.
— O que meu companheiro, tão entusiasmado compartilhou, é a verdade, senhores.
Ramsdale encarou Guilherme, seu olhar era gelado.
— A três dias atrás, ao Norte, encontramos esse escravo num vilarejo. Era estranho e agia de forma desrespeitosa. Além de vestir as vestes da escravidão, ele próprio confirmou ser um escravo a serviço de um poderoso senhor de terras distantes. Essa é a verdade!
O que Ryuichi Naruhodo faria agora?
A base deles é frágil, é só afirmações.
Posso vencer!
É só continuar refutando.
— Você é amigo dele, não é? Por isso sua palavra é falha. Essas afirmações não são provas. — Guilherme controlou a ansiedade. — Apenas está confirmando a confusão do companheiro.
— Desculpa, mas penso que o testemunho do seu companheiro não é suficiente. — Cristã continuava tremendo, mas se recusava a recuar.
Pull inútil.
Droga, esse frango assustado não presta para nada, e é o único que está do meu lado, não vai ser suficiente.
Preciso matar a jogada agora!
— Eu nunca vi a cara desses homens. Vim de uma cidade ao leste. Por isso, estão me confundindo com outra pessoa.
— Qual é o nome dessa cidade? — Ramsdale parecia um inquisidor, buscando as menores falhas para uma acusação.
Maldito!
Quer me pegar, não é isso?
Mas quando você vem com o fubá, eu já vou com a polenta.
Otário!
— A nossa gloriosa capital, Vale do Aço!
— Vale de Aço… — corrigiu Cristã, de forma rápida e sutil. — Desculpem, mas a confusão foi resolvida. Penso que podemos finalizar esse assunto.
— Vá para o inferno, o que acha ou deixa de achar não vale de nada para mim. — Liel empurrou o escudeiro. — Ele está mentindo na nossa cara. Sei o que vi, é suficiente para dar um fim nesse escravo miserável.
— Ei, ei... não aceito isso — gritou o Homem de cabelo azul e depois levantou sua caneca. — Isso está furado. Quero mais cerveja.
Do nada, o estabanado homem espirrou, então pegou um lenço negro do bolso e assoou o nariz. Segundos depois entrou em pânico.
— O que, que, que, que? — De forma desepera, o homem tentava limpar a meleca na mesa. — Aquele monstro vai me matar se eu estragar outro lenço!
— Maldito, não vai limpar a kaka na mesa — gritou furiosa a Atendente.
Todos no salão olharam surpresos, e depois começaram a rir. O clima que era tenso se tornou leve. Aquele homem parecia querer chamar a atenção de todos.
Cristã aproveitou para levantar seu escudo e ajustar suas luvas de couro.
— Você só arranja confusão. Cala a boca, seu sem noção. — A Atendente tinha chamas de furor nos olhos. — Os aventureiros de classe G não podem se envolver nos assuntos internos da guilda. Se o rapaz for um escravo, não vê que é um caso importante, não pode atrapalhar!
— Com todo prazer, estimada senhorita, é só providenciar mais cevada para minha caneca que irei me calar. Sou classe G, mas ainda sou um aventureiro.
A atendente olhou buchada para uma garçonete com um jarro de barro que estava espremida no meio do salão.
A garçonete correu com o jarro para o lado do homem de cabelo azul e encheu a caneca com uma cerveja escura e espumosa. O homem deu uma poderosa golada.
— Fresca e saborosa, fico feliz… não se afaste muito, viu, gracinha.
Ele beliscou de leve a perna da garçonete, estendeu o lenço negro, fez uma cara depravada e disse:
— Pode lavar esse lenço para mim, mais tarde levo você para ver a lua azul. Por favor, por favor, por favor.
— Aaaaaah! Pervertido! — A garçonete pegou o lenço e correu. Antes de desaparecer no salão, olhou para trás, piscou e disse: — Não esquece!
— Ah, falando nisso, esqueci de vocês. — O homem deu atenção para Liel e fez uma reverência com a caneca. — Não se incomodem comigo, podem continuar. Se aquele lenço não ficar limpo, ela vai… ah, esquece essa porra.
Ele bebeu mais da sua cerveja.
O que há de errado com esse papai smurf.
Metido, filho de uma puta.
Chamou toda a atenção e não vai me ajudar.
Que merda de isekai é esse?
Cadê o poderoso que vai salvar o protagonista.
Hein? Oi!
Sou eu!
— Esses malditos bêbados vagabundos, são como pragas. Não tem o valor do Grande Urso. Os de classe G são aventureiros sem honra, teriam que ser expulsos da guilda. — Liel agarrou o colete de Cristã. — Você também vai apanhar para aprender a não se intrometer nos assuntos dos outros.
Quando Guilherme viu que o Cristã iria apanhar por sua culpa, algo dentro dele se retorceu, e lembrou da carreta assassina, quando pulou para salvar o garotinho pela primeira vez.
Ele ainda não tinha resposta do porquê tinha feito aquilo, mas ao ver o cristã naquela enrascada, agiu da mesma forma instintiva: empurrou Liel com toda a força do seu corpo.
O que estou fazendo?
O quanto posso elevar meu nível noob?
Acabei de tentar reagir, mas nem mesmo consegui dar um soco.
Sou tão inútil assim.
Se continuar dessa forma, vou morrer mesmo.
— Herói — disse a pedra. — Todo o tipo de coragem merece respeito.
— Escravo maldito. — Liel ficou ainda mais furioso com a iniciativa do rapaz.
— Não é certo falar isso, desculpa, não há provas suficientes. — Cristã parecia que iria desmaiar, mas se mantinha em pé, sem arredar um passo.
— Calma, Liel, você já foi longe demais — disse Ramsdale.
— Você viu o que aconteceu na estrada. Se os homens livres permitirem, os escravos vão tomar tudo que termos. E esse se atreveu a mentir no salão dos heróis. É afronta demais!
— A mentira é uma verdade que não pode ser provada. — O cabelo verde de Ramsdale, caído de lado, criou uma sensação de abatimento para sua fala. — Desista meu amigo, já perdemos essa luta.
— É a honra do nosso grupo que está em jogo. Eu não vou ser taxado como mentiroso!
Liel fez movimento para sacar a espada.
— Ei, ei… fala sério, cabeça esquentada? — A caneca do papai Smurf já estava vazia. — Ouça o cabeça de grama. Se sacar a espada dentro de uma guilda, não haverá volta. O franguinho com tremeliques está certo: não há provas!
— Deixe de teimosia, Liel. Será melhor para o nosso grupo — disse o outro membro do Manoplas da Força.
— Vá se ferrar, Clint, você é o nosso tank, aja como um. Eu não vou aceitar ordens de ninguém. Estou na minha razão, sei o que vi, não é, Ramsdale?
— A verdade está com você, amigo, mas…
— Pro inferno com o mas, até você vai se acovardar, maldito. Já se esqueceu de tudo? Quem está com a verdade não pode recuar diante da mentira.
— Valor, honra e um espírito inexorável — comentou a pedra —, é impressionante. Você tinha que ser como ele, herói.
— cala a boca, pedra — sussurrou Guilherme.
Liel encarou o homem de cabelo azul e disse:
— Não é um bêbado vagabundo da classe G que vai determinar o que posso fazer ou não!
— O que há de errado com os aventureiros novatos de hoje, hein, Leon? — perguntou um sensível homem de longas madeixas douradas.
— Eles são cegos, Guilve, não conseguem reconhecer um adversário absurdamente mais forte que eles — respondeu o outro, de aparência intimidadora, carregando um imenso martelo de guerra. — Por isso tantos morrem antes de chegarem na classe B.
Com a chegada de dois membros dos gaviões prateados, a situação guinou para um desfecho imprevisível.
Guilherme olhou para as duas figuras imponentes e sentiu o ar ficar pesado. Seu corpo estremeceu. Ele não sabia se seriam aliados ou inimigos.
Só me faltava isso, mais dois brucutus.
Como vou transformar esse lugar na minha base de apoio?
Só tem gente doida.
...