Last Downfall Brasileira

Autor(a): VALHALLA


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 6.5: O Caminho do Aventureiro para a Glória

― Essa foi a última ― disse colocando a saca na pilha.

O dia está bem aberto, quase não há nuvens, mesmo nessa época do ano, refletiu Liel, olhando para o céu, que até as aves de verão iriam gostar de bater as asas um pouco.

O jovem loiro era uma pessoa forte e confiável. Veio de um vilarejo pobre ao norte do império, Fio de Aço. Ele tinha defeitos, sim, mas nada que qualquer outro não tivesse, e que em nada iria atrapalhar seu grande sonho: seguir os passos do seu herói, o Grande Urso.

Quer ser o maior aventureiro do país.

Liel gostava do calor e por algum motivo, decidiu começar sua jornada nessa época do ano, embora fosse o fim dos dias quentes e início do solstício da lua azul, tempo das baixas temperaturas. Talvez fosse a forte ambição e a possibilidade que nunca viesse concretizar caso permitisse procrastinar, ainda mais no início de sua aventura.

Ou só queria viver livre. Em todo caso, agora, tão longe de casa, o rapaz tinha o coração cheio de alegria e disposição.

— Jovens tão prestativos. Eu não sei como agradecer por me ajudarem a guardar minhas sacas de grãos. — Um velho entregou um jarro de barro com água. — Depois das guerras, minhas costas nunca mais foram as mesmas.

— Com água fresca, será o suficiente, bom ancião — disse um rapaz de cabelo esverdeado, pegando o jarro, bebendo um bom gole de água, e depois passando para o amigo.

Ramsdale, um jovem de boa aparência, que após beber a água, bateu as mãos nas roupas para tirar a poeira. Amigo de infância de Liel. Os dois deixaram juntos o vilarejo natal.

Ele olhou para o velho e perguntou:

— Bom ancião, aquela é a sequência sul da União de Ferro? — Ele apontou para uma estrada que serpenteava para além das colinas.

— Sim. Mas isso não me agrada. O que bons jovens vão fazer naquela região? Vão para o reino dos traidores, aqueles malditos adoradores de árvores?

Liel franziu a testa, incomodado, mas não falou nada, já que o amigo era melhor para lidar com as pessoas.

Os anos que Ramsdale passou vivendo com os filhos do Barão, senhor das terras e do condado onde localizava o vilarejo natal, lhe deram uma grande habilidade em extrair informação.

— Longe disso, bom ancião, vamos para a guilda dos heróis — ele disse, com solicitude. — Vamos nos inscrever como aventureiros!

— Vocês vieram do Norte. Havia tantas outras guildas, por que enfrentar a estrada para vir para essas bandas?

— Foi a cidade onde ele derrotou a Rainha Vermelha. Eu quero que meu grupo tenha a benção do grande herói. — Liel olhava para a estrada, admirando as colinas.

— Oh... — Os olhos do velho se encheram de lágrimas. — A honra e coragem vivem nos corações do nosso povo. A estrada é favorável para vocês. Nessa parte não há postos de pedágio, então será caminho livre.

Os olhos castanhos de Liel não conseguiam enxergar além das colinas, mas confiava que além delas iria realizar seu sonho. Caminhou até sua espada, a pegou e colocou na cintura, então passou a mão pelo cabelo loiro, e depois bebeu o restante da água do jarro de barro.

— Cuidado no restante do caminho. Seria horrível se algo acontecesse com jovens bons — inteirou o velho. — Peregrinos do Círculo Dourado relataram ter visto uma matilha de lobos cinzentos caçando no bosque.

— Esses cães dourados não conseguem ver as próprias bolas quando vão urinar. — Liel se virou e encarou o velho, sua expressão era de completo desdém. — O que essa gente diz, não vale de nada!

— Eu também não concordo com a negação dos antigos deuses que eles pregam — o velho se manteve firme —, no entanto, quem quer ser tornar aventureiro, precisará ouvir todos os avisos, principalmente, das pessoas desprezíveis.

◈◈◈◈◈◈

A dupla de companheiros já tinha viajado por quase meio dia.

Nesta parte deserta da estrada a falta de outras pessoas era preocupante, e Liel tinha dúvidas que o amigo, responsável pela orientação, não teria errado o caminho.

— Pelo deus Krig, tem certeza que não confundiu as bifurcações?

— Você viu a rocha de granito que a gente passou, bem onde o ancião avisou que estaria — explicou Ramsdale, enquanto o companheiro estudava algumas árvores do bosque. — Esse é o caminho certo!

Liel sentiu o ar frio do início da tarde. Com apenas um dia do verão do Norte, pensou, seria suficiente para esquentar toda essa terra gelada.

O som de uma colisão ecoou através da cerração do bosque. Quando a dupla de amigos percebeu, os animais das redondezas já estavam fugindo apavorados. A floresta tremia ao som de gritos desesperados.

A dupla avançava devagar e com cuidado, e Liel bufou quando viu carruagens tombadas mais adiante na estrada. Era um comboio de comerciantes.

As pessoas daquela caravana que haviam sido atacadas lutavam por suas vidas contra terríveis agressores.

— É a matilha de lobos cinzentos?

— Não — disse Liel, deixando a raiva ressaltar as feições do rosto. — É uma matilha muito pior!

◈◈◈◈◈◈

Uma mística e densa neblina, vinda com os ventos gelados do Sul, vestiu o bosque por completo. A batalha estava quase perdida para a caravana, que além de estar em menor número, os inimigos tinham agora onde se esconderem.

Por alguns intensos segundos, todas aquelas pessoas lutaram contra o medo, tanto homens comuns, quanto as mulheres, todos unidos, esforçando-se para se concentrar na defesa contra o grupo agressor.

A caravana possuía guardas armados com espadas, mas o número era insuficiente para a vitória.

Os agressores, homens brutos armados com porretes, emergiram do véu da neblina, controlados por uma descomunal agressividade. Eram fortes, com avantajados músculos, o resultado de uma vida dura, e suas peles estavam cobertas por hematomas e sujeira.

Suas roupas eram todas brancas, rasgadas, o que deixava fácil definir os responsáveis por aquele violento ataque.

As armas deles eram porretes feitos com pedaços das carruagens tombadas e destruídas, alguns tinham pregos e outros tinham as pontas pontiagudas como terríveis estacas.

Espalharam-se por todas as direções, descontrolados e bizarros, deslocando-se sem uma formação de combate, pareciam bestas furiosas, e sobrepujaram as pessoas de bem, que em menor número, não aguentaram se defender.

Uma garota caiu no chão exausta. Um agressor viu a oportunidade e desferiu um golpe para acertar a cabeça dela. No exato momento, Liel brandiu sua espada e bloqueou o golpe.

— O que iria fazer, maldito? — gritou ele. — São tão covardes assim?

Ele avançou contra o adversário furioso. Era evidente que tinha mais habilidades que aquele desesperado maltrapilho. Jogando o corpo para o lado, passou a rasteira no adversário, e esse veio a cair no chão indefeso.

O agressor não tinha a menor noção de batalha.

— Devia conhecer seu lugar, cão. — Liel ia cravar a espada no peito do agressor.

— Não o mate, bravo aventureiro — disse um homem gordo e bem vestido, franzindo a testa de preocupação, e que era protegido por três guardas armados com espadas. — Eles são a esperança da minha família. Todo o meu bronze está nesse lote.

Liel usou o cabo da espada para golpear com força a cabeça do agressor, isso o fez desmaiar.

Um grupo de outros agressores, vendo a habilidade do rapaz loiro, avançou contra ele. O grupo, mesmo sem noção de batalha, entendeu que precisaria derrubá-lo se quisesse vencer.

Ramsdale se uniu ao amigo e juntos conseguiram lidar com o grupo de agressores, os nocauteando, ora com os cabos das espadas, ora os batendo contra as árvores. Os dois amigos formavam um bom time.

Uma pequena multidão se formou em volta deles. Ao contrário dos outros que atacaram desprevenidos, aqueles estavam mais cautelosos.

— Estamos na desvantagem, o que vamos fazer, Liel?

— Lutar até que nossas espadas caiam de nossas mãos. — O loiro lançou um terrível olhar. — Venham beijar minha lâmina seus malditos!

Com um berro profundo, o loiro avançou contra os inimigos, tentando derrubar com apenas um golpe o máximo que conseguia.

Ramsdale entrou naquela corrida insana com o companheiro, era leal a amizades deles, e pularia no abismo escuro se fosse para acompanhá-lo.

Os agressores estavam mais espertos para lidar com os dois guerreiros, e mesmo com muitos deles caindo diante das habilidades dos dois amigos, restavam um bom número com resistência que poderiam virar a batalha.

Liel e Ramsdale ficaram cansados. Com a longa viagem e poucas horas de sono, parecia que aquela luta não teria um fim, em muitos momentos, pareceu-lhes que os inimigos estavam brotando do chão como ervas daninhas.

Foi então que uma figura emergiu da neblina, gritando e lutando. Pegou um porrete que estava caído no chão e desferiu poderosos golpes contra os agressores. Era uma pancada dele e um dos inimigos caia desacordado.

Tratava-se de um guerreiro diferente dos agressores e das outras pessoas da caravana. Sua aparência selvagem deixou os inimigos aterrorizados. Era um rapaz alto, bem forte, e que tinha uma vasta cabeleira, preta e desarrumada. A barba estava por fazer. Suas roupas eram as de um camponês simples, camisa bege, calças de lã e sandálias de couro.

Os agressores se voltaram contra ele, mas não faziam efeito os golpes com os porretes na sua cabeça. A vasta cabeleira funcionava como um capacete natural.

Liel e Ramsdale motivado pelo vigor do rapaz, avançaram também. Os três juntos, somados com as forças restantes da caravana, conseguiram virar a batalha.

— Quem é você, estranho? O guardião dos bosques? — perguntou Ramsdale, com um largo sorriso, ao misterioso rapaz descabelado. — Seus braços salvaram a todos nós desses malditos covardes.

— Sou apenas um viajante que não ignorou a batalha.

A partir daquele momento, a batalha já havia sido decidida a favor da caravana. Os poucos agressores que ainda estavam de pé, largaram seus bastões e se ajoelharam, colocando as mãos para cima e suplicando misericórdia.

Menos um deles, um bem forte e o único que estava segurando uma espada. Ele era o líder. Se recusou a aceitar a derrota balançando a cabeça, desesperado. Então avistou o homem gordo com sua guarda não muito longe.

Deixou cair lágrimas que cobriram o rosto, correndo na direção do pançudo, brandindo a espada, buscou-o através da neblina do bosque. Desesperado, atacou como se sua vida dependesse disso.

— Ele quer tomar de sequestro o chefe da caravana — avisou Ramsdale, a certa altura, olhando o líder dos agressores correndo.

— Os cães não sabem a hora de abanar os rabos — concordou Liel. — Eu cuido dele.

— É o líder dessa revolta. Não pode matá-lo, sabe disso. O castigo dele será o exemplo para os demais. Eu vou com você.

— Vou cuidar dele sozinho, é fraco demais. Você pode ajudar os guardas a acorrentar os cães soltos.

Liel havia recuperado o fôlego e conseguiu correr numa boa velocidade sem dificuldades.

O pulsar acelerado do coração do líder da revolta confundiu-se com o bater do coração de uma fera, até que ele conseguiu alcançar o pançudo, e com um ataque desesperado conseguiu empurrar os guardas, ficando cara a cara com o seu alvo.

— Não pode fugir. — O homem gordo levantou as mãos. — O que você pensa conseguir com isso?

— É… é tudo sua culpa. — A intenção assassina era clara ao levantar a espada. — Não somos animais.

Para parar aquele homem, Liel não podia aplicar um golpe letal, então saltou jogando o corpo contra as costas do agressor, e esse foi arremessado para longe do homem gordo.

— Você está bem?

— Sim — respondeu o pançudo. — Esse maldito queria me matar.

O agressor bateu contra a carruagem, conseguindo se manter em pé, porém, cambaleava um pouco. Mas não podia se render. Segurou forte a espada para encontrar confiança e encarou o rapaz loiro.

— Miserável, miserável, não tinha nada que atrapalhar, esse assunto não era da sua conta. Ele destruiu nossas vidas.

— A sua vida não é da minha conta — disse Liel. — Mas quando os escravos se levantam contra homens livres, eu não vou me abster de fazer justiça.

O líder não estava mais tão determinado agora. Ficou silencioso, como se não tivesse que aceitar a verdade. Ele viu o loiro lutando e sabia que não tinha chance de vencer. Apenas levantou a espada.

— Vocês são um povo podre. Esse império é podre. Um dia uma pessoa irá trazer justiça de verdade!

— Cão, são vocês que sacodem o rabo por migalhas, não são dignos de justiça. — Liel olhou-o com deboche. — Você sabe usar essa espada?

— Não mate. O castigo dele será o exemplo para os demais. — O homem gordo afrouxou a gola da luxuosa camisa.

Não tendo outra escolha, o agressor atacou o rapaz loiro, mirando a espada na altura do pescoço.

Os músculos de Liel vibraram como as cordas de um violão. Com isso, conseguiu mover o corpo de forma flexível e foi capaz de se esquivar por baixo da espada do inimigo.

O escravo só conseguiu assistir a ação impotente.

Liel girou a espada e a segurou pela lâmina, jogando o cabo para cima, acertando um violento golpe por baixo do queixo do inimigo, o fazendo voar para trás e caindo desacordado.

A revolta terminou com a completa derrota dos escravos.

◈◈◈◈◈◈

Liel, meio a neblina e confusão, andava de um lado para outro naquele campo de batalha ajudando os feridos, com o olhar fixo nos escravos acorrentados que eram colocados, espremidos, dentro de uma carruagem de transporte; praticamente uma carroça de carga gradeada de lado a lado.

Não conseguiu mais ficar parado desde que se recobrou da tensão que sentiu ao enfrentar a batalha que lhe trouxeram lembranças dolorosas, esses cães são piores que as pragas, pensou.

Ele encontrou o homem gordo, que era o senhor dos escravos e chefe da caravana, um cossaco que gerenciava um pequeno condado, em nome de um barão, ao Leste. Seu nome era Boris Vasiliev.

Ele estava concentrado, junto de seu escrivão, contabilizando os prejuízos.

— Se você e seus companheiros não tivessem aparecido, camaradas, minhas perdas seriam irreparáveis — ele disse. — Não perdi nenhuma das minhas mercadorias. Sou muito grato. — Conferiu as correntes de um escravo e o chutou para dentro da carroça de carga. — São aventureiros?

— Nenhum membro inocente da sua caravana morreu, isso é bom. Eu e meu companheiro ainda não somos aventureiros, mas estávamos indo para a guilda dos heróis para a inscrição, quando nos deparamos com a revolta.

— Mais uma vez grato por não ignorar minha desventura. Serão bons aventureiros.

— Nós não temos educação, meu senhor, ainda mais no que diz respeito às boas finanças. — Ramsdale se aproximou. — Vamos, agora, nenhum dano foi feito. Diga-nos, como ocorreu a rebelião?

Boris olhou para o escrivão, e depois para dentro da carroça de carga, para os escravos que eram postos uns em cima dos outros.

— Os malditos sempre pensam em alguma forma de roer as correntes. No tempo de um voo de andorinha, eles já haviam desmontado umas das minhas carruagens e feito dela, os porretes que usavam. Meus capatazes foram neutralizados e o caos foi completo. O problema, camaradas, das mercadorias com pernas, e que nunca se sabe quando vão lhe chutar o traseiro.

A neblina começou a dissipar, deixando assim, o sol da tarde esquentar um pouco aquele lugar sombrio.

— Essa gente adoradora de árvores, supersticiosos e miseráveis — comentou o senhor de escravo. — Os supersticiosos acreditam que as orações deles são capazes de alterar o clima. — Ele sorriu, seus olhos grandes deformavam seu rosto que era confiante, de um jeito que desagradou Liel — É por causa do solstício da lua azul, da mesma forma que a neblina surge, irá desaparecer.

Dois guardas trouxeram um homem acorrentado e o jogaram aos pés do senhor de escravos.

O rapaz descabelado, que foi fundamental para a reviravolta da batalha, também se uniu naquela roda de eventos.

Liel olhou o homem, o reconheceu, apesar do estado, era o escravo que derrotou por último. O corpo do infeliz estava cheio de hematomas, a cara toda arrebentada. Havia levado uma longa surra.

— É esse, meu senhor. — Um dos guardas chutou o escravo na barriga, que o fez cuspir sangue. — É o líder da revolta. Um dos homens achou um prego amarrado em suas roupas, muito se deve, ele foi o responsável pela ruptura das correntes dos demais da sua laia dentro da carga.

Outros dois guardas trouxeram uma mulher e um menino, ambos acorrentados. — São a esposa e o filho dele, meu senhor — concluiu o guarda. — Tentaram subir o bosque, mas não foram longe.

O escravo chorou. A mulher e o menino encostaram no homem tentando consolar sua dor.

— Grande senhor, por seus deuses, meu povo não é escravo. Minha família não é escrava. Vivíamos em paz, na terra dos meus avôs, além da muralha de rubi. Homens malignos nos raptaram, e nos venderam como botinas velhas. Eu imploro, nos permita voltar para nossa casa.

— Deuses não existem. Seu povo supersticioso vive no passado, por isso são fracos e ideais para a escravidão. São piores que os elfos, ou os homens-feras. Não vou me desfazer da minha mercadoria. O Círculo Dourado determinou que os homens livres são superiores às demais raças.

Liel, como devoto do deus Krig, não gostou de ouvir aquelas palavras sobre os deuses antigos e o Círculo Dourado. Porém, o mundo estava mudando, e homens de fé eram caçados, além do mais, concordava que escravos não podiam se levantar contra seus senhores.

Abafou seu aborrecimento e passou a mão pelo cabelo loiro. Ele cumprimentou os guardas e olhou para o escravo chorando, sem piscar. Acreditava que ele tinha cometido um crime terrível contra o seu senhor, dono da sua vida, e por esse erro merecia sofrer, da pior forma possível.

— Você é o responsável, e como tal, será o exemplo para os demais. — Boris apontou o dedo carnudo para a criança. — Matem o menino, e amarrem o corpo na carruagem de carga, será o meu aviso final até chegarmos no condado!

No momento em que o senhor dos escravos disse aquilo, tanto o homem quanto a mulher romperam em desespero, chorando e implorando por perdão. Diante a inexorável crueldade do senhor, o escravo olhou para o rapaz de cabelo loiro e disse:

— Por favor... meu filho não completou a sétima lua. É inocente. Eu lutei com você, vi que é um guerreiro forte e valente. Concorda com a morte de uma criança?

O sentimento de ira que invadiu Liel foi avassalador, por um momento lembrou de uma terrível cena; a cena do corpo de uma menina, tão pequena, definhando, jogado num canto escuro, ela também era inocente, pensou.

— Você está bem? — perguntou Ramsdale.

O rapaz descabelado também olhava para o loiro, tentando compreender aqueles sinais de ira em sua face.

— Estou bem — disse Liel encarando o escravo. — Cães não podem reclamar do fio da espada depois que morderam a mão do dono!

Ele não sentia remorso nenhum, pois a justiça teria que ser feita.

— Meu senhor — chamou o rapaz da cabeleira. — Me permita expressar minha opinião.

— Você também é um dos heróis desse dia. Claro, vamos, camarada, diga-nos sua vontade... quer ter o prazer de decapitar o menino?

— Por minha opinião, se matar o menino, terá um prejuízo considerável. Todos sabem o quanto pode valer uma criança saudável para o nobre certo.

— É verdade, disse bem, meu rapaz. Coloquei a raiva acima dos negócios. E já tinha até bons planos para a criança. — O senhor de escravos refletiu por um momento. — Pois bem... eu sou um senhor misericordioso. A afronta do pai não ficará sem castigo, por isso, escravo, a escolha será sua. Quem irá pagar por seus pecados, a criança ou a mulher, qual deles perderá a cabeça?

O escravo se jogou no chão, desesperado demais para falar, mesmo se tivesse algo a dizer. Ele entendeu o preço pela tentativa de fuga.

Aquelas pessoas recusaram-lhe a liberdade, e agora, estavam tomando sua razão de viver. Só queria ver mais uma vez a árvore sagrada e tudo terminou num sangrento espetáculo angustiante, e ele foi quem puxou as cortinas.

— Querido, não é sua culpa, escolha a mim — disse a mulher, chorando. — Você, junto do nosso filho, irá viver. Eu vou descansar com nossos antepassados.

— Será essa vadia, escravo? — Um dos guardas agarrou pelo cabelo do homem, e o suspendeu, colocando-o outra vez de joelhos.

— Não! — O escravo olhou para o senhor de escravos. — Imploro por sua bondade, meu senhor. Eu fui o responsável. Ofereço minha cabeça para salvar minha esposa e meu filho.

— Você... — Boris disse surpreso.

— Isso é inaceitável, bom senhor, a solução que esse escravo está encontrando. — O escrivão foi até o chefe. — Meu senhor, preciso lembrá-lo que esse escravo é a melhor mercadoria de vossa carga, o mais forte, por isso o mais caro. Será um péssimo negócio!

— Seus cálculos, senhor escrivão, estão errados — afirmou Ramsdale.

— E quem é você para dizer o que é certo ou errado, rapaz?

— Que isso, ficou sentido pelo escravo? — Liel perguntou, indignado.

— Eu gosto tanto desses escravos, quanto você, meu amigo. Mas não vou ignorar a lógica.

— Esse rapaz também é um dos heróis do dia, vamos, diga, por que as palavras do meu escrivão são errôneas?

— Meu senhor, se escolher matar a mulher ou o menino, só irá nutrir o desejo de liberdade desses escravos, e agravado pelo desejo de vingança. Esse cão já mostrou que é engenhoso para as fugas, e também todos os outros cães o seguem como uma matilha de lobos. Se escolher essa opção, receio por vossa vida, porque não tardará para acordar com uma faca furiosa cortando-lhe a garganta.

— Oh não! Vendo por esse lado. Qual é sua sugestão, matar o líder?

— Sim! Se não estourar a cabeça de uma aranha bolha-amarela, ela dará um jeito de lhe ferroar. Se matar esse escravo, terá uma boa quantia de prejuízo, porém, ao longo prazo não terá perdas piores. Com a morte dele, sendo o mais forte, os demais ficarão desmotivados e submissos. Terá paz, que a meu ver, é um negócio vantajoso.

— Maldição, não fique com a boca fechada. Vou lhe arrancar o livro caixa, e dá-lo a esse rapaz. O que devo fazer?

— Receio, senhor, que as palavras são lógicas. Para evitar perdas maiores, o descarte dessa mercadoria é a melhor opção — concordou o escrivão.

— Muito bem, será assim então. Levem o menino e a mulher para a carruagem de carga, os tranquem com os demais. Dois dias inteiros sem ração e água para todos. O escravo responsável pela rebelião será decapitado imediatamente.

O escravo acompanhou, silencioso, até onde pode, sua esposa e filhos sendo levados, enquanto ele era arrastado para uma pedra de granito, preta e quadricular; uma pedra perfeita para apoiar a cabeça de uma pessoa.

Liel observou o infeliz sendo arrastado, e considerando seus sentimentos naquele momento, ele esboçou um tímido sorriso.

Ramsdale e o rapaz descabelado, também em silêncio, foram acompanhar a execução.

◈◈◈◈◈◈

Liel precisava de uma bebida alcoólica. Desde que deixou o vilarejo natal, só bebeu água ou leite de porca, e agora, depois das emoções desse dia, sentia a boca seca demais. E ainda tinha que lidar com as ideias de Ramsdale.

Ele encarou o rapaz descabelado tentando decifrar o tipo de pessoa que tinha por baixo de todo aquele cabelo revoltado.

Sobressaltou-se em seguida quando uma metralhadora de perguntas rompeu o silêncio. Ramsdale, havia começado a conversar com o rapaz como se fossem velhos amigos.

— Isso me surpreende, o amigo que o meu companheiro está arrumando — disse Liel, trazendo de volta a sua habitual tensão. — Você esperava por isso? Qual é seu nome? Estava viajando sozinho numa estrada perigosa?

— Quem é o preocupado entre nós, sou eu, seu cabeça dura. Eu tive uma boa conversa com o nosso estiloso amigo. Descobri que também estava indo para a guilda dos heróis para se inscrever como aventureiro. Eu convidei ele para vim com a gente.

— Meu nome é Clint, sou de um vilarejo não muito longe daqui, sabe, é pequeno. Quero me tornar um aventureiro para ter uma vida melhor.

— Isso não alivia o fato do Ramsdale convidar você sem falar comigo. No entanto, você mostrou que é forte e corajoso. Eu tinha vontade de convidar você. É bom ter outro companheiro para dividir a falação desse aqui. — Liel apontou para Ramsdale, e depois estendeu a mão para Clint. — Meu nome é Liel, bem-vindo ao grupo de aventureiros, Manopla da Força.

— Obrigado. Acredito que vamos ser bons companheiros. Ramsdale contou que o nome do nosso grupo é uma homenagem ao grande herói. Isso me alegrou muito.

— Foi mesmo — disse Ramsdale, empolgado. — Quando éramos crianças, o herói passou por nosso vilarejo…

Liel olhava os companheiros conversarem enquanto imaginava como seria a próxima cidade, percorrendo os dedos pelo cabelo loiro, confiante que estava num bom caminho porque seu grupo de aventureiro conseguiu um novo e forte membro.

◈◈◈◈◈◈

Os guardas amarraram o escravo executado atrás da carroça de carga, enquanto o filho do pobre infeliz, assistia toda à ação, e sem espaço para mover o corpo, não podia sequer virar o rosto.

Primeiro os guardas traspassaram a cabeça decapitada com um arame e a prenderam nas grades de ferro, de uma forma que ficasse olhando para dentro. Em seguida penduraram o restante do corpo, e também o prendeu com arame.

A criança viu tudo. A mãe dele, que não estava no local porque havia sido levada por alguns guardas para algum outro lugar, nem poderia imaginar a dor que o filho enfrentava sozinho.

— Menino, seu pai lutou e perdeu — falou Clint, do outro lado das grades e na frente do garoto. — Sobreviva, não pela vingança, mas pela vida que ele lhe presenteou.

O garoto direcionou apenas os olhos para o rapaz descabelado. Estavam secos e fundos. Suas retinas não tinham nenhum tipo de brilho. — Eu vou matar vocês!

— A dor vai rasgar você, mas…

— Eu vou matar vocês, eu vou matar vocês, eu vou matar vocês, eu vou matar vocês…

Clint percebeu que não podia fazer nada por aquele garoto. Ele ouviu Liel gritar por seu nome. Então correu passando as carruagens e as pessoas que terminavam de consertar os últimos estragos da batalha. A caravana se encontrava estabelecida e pronta para seguir a viagem.

Encontrou Liel e Ramsdale junto do chefe da caravana, próximos de uma carruagem que era bem mais reforçada que as outras.

— Hum? Onde você se enfiou, cabeludo? — Liel o encarou. — Tive que gritar um monte de vezes.

— Eu estava olhando umas coisas. — Clint olhou para os lados. — Os guardas penduraram o corpo do escravo executado na carruagem de carga. Queria ver.

Liel franziu a testa, sem compreender direito o que o novo companheiro estava dizendo, de alguma forma, ele parecia incomodado.

Ramsdale olhou para ele, analisando-o, enquanto ajeitava a camisa bege que estava escorregando para o lado. Algo lhe veio à mente, uma possibilidade, uma coceira atrás da orelha, mas não disse nada porque suspeitas infundadas não eram boas para um grupo de aventureiros recém-formado.

— Agora que o outro herói do dia chegou, quero agradecer apropriadamente tudo o que fizeram por minha caravana e meus negócios.

— Não é necessário, meu senhor — disse Ramsdale. — Só fizemos o que qualquer um faria.

— Meu companheiro está certo. Os escravos estão cada vez mais audaciosos. É apenas o dever de um homem livre reagir. Hoje mais cedo, um escravo de língua grande nos afrontou nos nossos direitos. Tive que discipliná-lo. Mas agora vejo que foi pouco, como queria encontrá-lo de novo para aliviar toda essa revolta que estou sentindo.

— Vocês querem ser aventureiros, camaradas, não é isso? Eu sei recompensar meus amigos. — O chefe tirou uma chave de aço e enfiou dentro da fechadura da carruagem. — Eu faço questão que aceitem!

Ele abriu as pesadas e reforçadas porta.

Um tesouro, essas foram as palavras que Liel pensou no mesmo instante, após ver o arsenal dentro da carroça, que o fez suspirar de excitação.

Tinha de tudo um pouco: espadas, lanças, maças, arcos, balizas, cravas, escudos, coletes, malhas.

— Esse armamento é para fortalecer a guarda do condado que sou o responsável. Os escravos são burros, se tivessem arrombado essa carruagem em vez de destruir um carro de carga, agora estaríamos todos alimentando os abutres.

— Os cães pensam com a bunda — comentou Liel.

— É uma bela coleção, meu senhor. — Ramsdale viu um arco que fizeram seus olhos brilharem.

— Podemos mesmo escolher qualquer uma daquelas armas? — Clint perguntou surpreso.

— Vão em frente. Os tempos são difíceis e boa parte dos meus recursos foram gastos com o lote de escravos. Por isso essas armas são de baixa qualidade, mas acredito que são muito melhores que os equipamentos que um grupo de aventureiros iniciantes poderiam pagar. Vão, peguem o que quiserem, até se sentirem satisfeitos.

Os três companheiros, cada um com sua preferência, não desperdiçaram aquela incrível recompensa.

Não haveria neste mundo, um começo melhor para aventureiros iniciantes, já que se fossem comprar equipamentos feitos com aço, custaria caro, até mesmo os de baixa qualidade. O grupo Manoplas da Força deu um grande passo para a glória.



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